sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Primeira Parte – Harry Morgan (Primavera)


[…]

A essa altura, já havíamos ultrapassado o lugar onde as sumacas descarregavam diante de Cabanas e os esquifes ancorados pescavam palometas no fundo rochoso ao lado de El Morro. Conduzi o barco para fora, onde a corrente do Golfo traçava uma linha escura. Eddy colocou na água dois grandes chamarizes e o negro já tinha iscas em três varas.
A corrente não estava muito profunda e, quando nos aproximamos de sua orla, pudemos vê-la tornando-se quase vermelha, formando redemoinhos aqui e ali. Havia uma ligeira brisa do leste e nosso barco assustou numerosos peixes-voadores, daqueles grandes, com asas negras, que, quando levantam voo, parecem com os que estão na fotografia de Lindbergh cruzando o Atlântico.
Esses peixes-voadores grandes são o melhor indício que poderíamos encontrar. Até onde se podia ver, estendia-se aquele sargaço amarelo pálido, em pequenos blocos, o que significava que a corrente principal se movia regularmente, e havia pássaros revoando à nossa frente sobre um cardume de filhotes de atum. Era possível vê-los saltando, nenhum deles pesando mais do que um quilo.
Pode lançar o anzol assim que quiser — avisei a Johnson.
Johnson afivelou o cinturão de segurança e os arneses dos ombros, lançando então a grande vara com o resistente molinete Hardy com seiscentas jardas de fio trinta e seis. Olhei para trás e sua isca estava girando bem, deslizando pouco abaixo da superfície. Os dois chamarizes mergulhavam e saltavam. Estávamos navegando com a velocidade conveniente e embiquei para a corrente.
Conserve o cabo da vara no soquete da cadeira — recomendei a Johnson. — Assim a vara não vai ficar tão pesada nas suas mãos. Não deixe a linha afundar muito e conserve a trava solta, para poder dar corda quando ele morder. Se ela estiver presa, o bicho vai arrastar você para a água.
Todo dia tinha de repetir os mesmos conselhos, mas isso não me incomodava muito. De cada cinquenta pessoas que a gente leva, apenas uma sabe pescar direito. E os que sabem pescar fazem besteira pelo menos na metade do tempo e ficam querendo usar uma linha que não é forte o bastante para resistir a um peixe de bom tamanho.
Que tal o tempo? — perguntou-me.
Não podia ser melhor — respondi, pois estava realmente fazendo um belo dia.
Passei a roda do leme ao negro, dizendo para ele conduzir o barco ao longo da borda da corrente, sempre para leste, e voltei para onde Johnson estava sentado, observando suas iscas saltarem sobre as ondas.
Quer que lance outra vara? — perguntei.
Acho que não — respondeu. — Quero fisgar meu peixe, lutar com ele e embarcá-lo sozinho.
Certo — disse eu. — Mas não quer que o Eddy lance uma vara e a entregue ao senhor, se algum peixe morder, para que possa fisgá-lo?
Não — insistiu. — Prefiro que haja apenas uma vara de cada vez.
Muito bem.
O negro ainda estava levando o barco para fora. Olhei na direção dele e percebi que ele avistara um cardume de peixes-voadores saltando bem à nossa frente, corrente acima. Olhando para trás, pude ver Havana, resplandecente sob o sol da manhã. Um navio estava saindo da baía e passando ao lado do morro.
Acho que hoje vai ser o seu dia, senhor Johnson — disse-lhe eu.
Já não é sem tempo — respondeu. — Há quantos dias estamos pescando?
Faz três semanas hoje.
É muito tempo para nada.
São uns peixes engraçados — disse eu. — Aparecem quando bem entendem! Mas, quando chegam, vem um bocado deles. E estão sempre chegando. Se não vierem agora, não vêm mais. O tempo é o ideal, a lua também. A corrente está boa e vamos ter uma boa brisa.
Não havia alguns daqueles pequenos, quando viemos na primeira vez?
Havia — respondi. — É como lhe disse. Quando os pequenos dão o fora, é sinal de que os grandes estão chegando.
Vocês, capitães de barcos de pesca, têm sempre esse papo furado. Ou está muito cedo, ou tarde demais, ou então o vento não está ajudando, ou é a lua errada. Mas o dinheiro da gente, que é bom, vocês cobram da mesma forma.
Bem — repliquei —, o diabo dessa coisa é que geralmente é mesmo muito cedo, ou então tarde demais, e na maior parte do tempo o vento está contra nós. Daí, quando se consegue um dia perfeito, a gente está ancorado, sem um cliente.
Mas, afinal, hoje é ou não é um bom dia para pescar?
Bem, para mim, já foi um dia agitado até demais. Mas estou apostando que o senhor não vai ter nada do que se queixar.
Espero que sim — disse ele.
Ajeitamos tudo para pescar de corrico. Eddy foi para a proa e deitou-se. Fiquei em pé, observando, esperando avistar uma nadadeira. A todo momento, o negro adormecia, mas eu o estava vigiando também. Aposto que suas noites eram bem animadas.
Não se importa de pegar uma garrafa de cerveja para mim, capitão? — perguntou-me Johnson.
Pois não, senhor — respondi, enfiando a mão no gelo para pegar para ele uma bem gelada.
Não quer tomar uma? — perguntou-me.
Não, senhor — respondi. — Só à noite.
Abri a garrafa e a estava passando a Johnson, quando vi um grande peixe castanho, com uma espada mais comprida do que um braço, pôr a cabeça e as costas fora d’água, avançando para a cavalinha. Parecia ter a espessura de uma tora de madeira.
Afrouxe a linha! — gritei.
Ele não a mordeu ainda — respondeu Johnson.
Aguente firme, então.
O bicho subira rapidamente do fundo e errara o bote. Eu sabia que voltaria para agarrar a isca.
Prepare-se para afrouxar a linha no momento em que ele morder.
Então, eu o vi vindo por baixo d’água. Dava para enxergar suas barbatanas, largas como asas de cor púrpura e as listras avermelhadas no corpo castanho. Ele subiu como um submarino e sua enorme nadadeira dorsal emergiu, começando a cortar a água como um periscópio. Avançou diretamente por trás da isca e sua espada também emergiu, oscilando, completamente fora d’água.
Deixe a isca entrar toda na boca dele — disse eu. Johnson destravou o carretel do molinete, que começou a zunir, e o velho marlim voltou-se e mergulhou. Pude ver todo o seu corpo brilhando como prata resplandecente quando se virou de costas e rumou rapidamente em direção à praia. — Prenda um pouco a trava — disse eu. — Mas não muito.
Johnson apertou a trava.
Não muito — repeti.
Vi a linha inclinar-se e acrescentei:
Abaixe um pouco a vara e dê um tranco firme nele. Precisa dar um tranco! Já, já ele vai pular fora d’água.
Johnson apertou de uma vez a trava e agarrou a vara com força, puxando-a para trás.
Dê um puxão, agora! — disse eu. — Uma meia dúzia de puxões para o anzol ficar bem preso.
Ele deu um puxão e tanto, e repetiu o golpe algumas vezes, ferindo o peixe. Então a vara vergou-se e o molinete começou a zunir. O enorme peixe apareceu, espetacularmente, num longo pulo, brilhando como prata ao sol e caindo sobre a água como um cavalo que tivesse sido lançado de um penhasco.
Solte a trava — disse eu.
Fugiu! — exclamou Johnson.
Fugiu, uma ova! — respondi. — Solte depressa a catraca.
Pude distinguir a curva da linha e, na vez seguinte que o marlim saltou, estava ao lado da popa, dessa vez rumando para mar alto. Depois disso saltou, e saltou novamente, caindo de lado numa explosão de espuma. Pude ver que estava fisgado do lado da boca. As listras escarlates mostravam-se vivas em seu corpo. Era um belo peixe prateado, tão grosso quanto uma tora de madeira.
Desta vez fugiu mesmo — disse Johnson. — A linha estava frouxa.
Gire o molinete — recomendei. — Ele está bem fisgado. — Voltando-me para o negro, gritei: — Faça o barco avançar a toda!
Dito e feito! Uma, duas vezes, o monstro saltou emergindo rijo como um poste, projetando todo o seu comprimento em nossa direção, e lançando água para o alto cada vez que caía sobre o mar. A linha esticou-se de novo e percebi que o marlim se dirigia para terra, preparando uma meia-volta.
É agora que ele vai disparar — disse eu. — Se estiver bem fisgado, a gente o persegue com o barco. Fique com a trava solta. Temos linha de sobra.
O marlim rumou para noroeste, como fazem todos os grandes peixes. Meu irmão, como corcoveava! Começou a dar aqueles grandes saltos, fazendo voltas no ar, e cada vez que caía sobre a água era como uma lancha voando sobre o mar. Nós o seguimos, perseguindo-o de perto depois de eu ter feito a volta. Fiquei no leme e continuava gritando para o Johnson conservar sua trava solta e dar linha depressa.
De repente, vi sua vara dar um tranco seco e a linha ficar frouxa. Só quem conhecesse bem a coisa perceberia que a linha estava solta, já que a sua barriga mergulhada na água pesava um bocado. Mas eu sabia muito bem o que tinha acontecido.
O senhor o perdeu — avisei a Johnson.
O peixe ainda estava saltando e continuou a saltar até que sumiu de vista. Era de fato um belo peixe.
Ainda posso senti-lo puxando — disse Johnson.
É só o peso da linha.
Mal posso enrolar a linha. Talvez ele esteja morto.
Morto? — exclamei. — Peixe morto não pula.
Dava para vê-lo a um quilômetro de distância do barco, ainda lançando jatos de água.
Examinei a catraca. Johnson a havia travado de vez.
Não dava para puxar linha nenhuma, e só podia mesmo se partir.
Não disse para manter a trava solta?
Mas ele continuava a puxar a linha.
E daí?
Daí, eu quis detê-lo.
Escute — disse a ele. — Se a gente não dá linha quando ele começa a corcovear daquele jeito, o que acontece é que a linha arrebenta. Não há linha que o segure. Quando um bicho desses puxa, o que se tem a fazer é dar-lhe linha. E a gente tem de manter a trava solta. Nem os pescadores profissionais conseguem manter esses peixes presos numa situação dessas, e mesmo usando uma linha de arpão. O que a gente tem de fazer é usar o barco para perseguir o bicho, para ele não puxar a linha toda, quando tentam nadar em disparada. Depois que ele se cansa, então a gente pode apertar a trava e tentar puxar a linha de volta.
Quer dizer que, se a linha não tivesse se partido, eu o teria apanhado?
É, você teve uma boa chance.
E ele não ia aguentar muito tempo mais, ia?
Esses bichos são cheios de truques! Somente depois de ter dado aquela arrancada é que a luta ia começar.
Bem, vamos sair para outra — disse Johnson.
Vamos, mas primeiro o senhor vai ter de enrolar aquela linha — respondi.
Havíamos fisgado o peixe e o havíamos perdido sem acordar o Eddy. Agora o velho Eddy vinha voltando para a popa.
Que foi que aconteceu? — perguntou.
Tempos atrás, Eddy era um ótimo homem para se ter a bordo, quando ainda não era um bêbado. Agora não servia mais para nada. Fiquei olhando para ele, parado ali, um sujeito alto e de faces encovadas, com a boca frouxa e remelas esbranquiçadas no canto dos olhos. Seu cabelo parecia todo desbotado ao sol. Sabia que ele tinha acordado morto de vontade de tomar um gole.
É melhor você beber uma garrafa de cerveja — disse eu.
Eddy apanhou uma garrafa e bebeu-a.
Bem, senhor Johnson — disse ele. — Acho melhor terminar minha soneca. Muito obrigado pela cerveja, senhor.
Era mesmo o velho Eddy!… O raio do peixe não importava nem um pouco para ele.
Bem, fisgamos outro, mais ou menos ao meio-dia, e ele conseguiu fugir também. Pudemos ver o anzol voar a dez metros de altura quando o peixe o lançou fora.
O que eu fiz de errado desta vez? — perguntou Johnson.
Nada. Ele apenas se livrou do anzol.
Senhor Johnson — disse Eddy, que acordara para tomar outra garrafa de cerveja. — Senhor Johnson, o senhor apenas não teve sorte. Quem sabe tem sorte com mulheres? Que tal sairmos juntos esta noite?
Em seguida, voltou a deitar-se de novo.
[…]

Ernest Hemingway, em Ter e não ter

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