sexta-feira, 6 de setembro de 2024

O Ator

O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto, ouve uma voz que grita:
Corta!
O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver se a sua maquilagem está bem e põe um pouco de pó no seu nariz.
Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar as crianças.
O que é isso? – pergunta o homem. – Quem são vocês? O que estão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas?
O que, enlouqueceu? – pergunta o diretor. – Vamos ter que repetir a cena.
Eu sei que você está cansado, mas...
Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam!
O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz:
Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e...
Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos!
O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O diretor e um assistente tentam segurá-lo. E então ouve-se uma voz que grita:
Corta!
Aproxima-se outro homem com um script na mão descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz:
Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
Que-quem é você?
Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada.
Eu não entendo...
Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.
Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa?
Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para a sua marca. Atenção, luzes...
Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas...
Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.
Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo, ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores... Porcaria!
Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...
O homem agarra o diretor pela frente da camisa.
Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.
O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que grita:
Corta!

Luís Fernando Veríssimo, em Comédias para se ler na escola

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