Em
relação à Análise do homem, de Erich Fromm, o comentário
mais do que nunca terá que girar em torno de “talvez” e “quem
sabe”. A irresponsável por este texto – não se trata de erro, a
palavra é mesmo irresponsável – se não entende de crítica de
literatura, que dirá de livro de ciência. Se bem que em se tratando
de psicanálise, ética, situação humana, relações de si para
consigo, e com os outros, todo mundo crê entender alguma coisa
provavelmente com o argumento implícito de que, se somos personagens
vivos deste gênero de estudo, a nós cabe acareá-lo com o nosso
testemunho, esquecidos de que também nossos ossos são personagens
principais de livros de anatomia e no entanto... De antemão, ao
iniciar essa conversa, sentimos que o “talvez” dominará pouco a
pouco, e que o futuro leitor de Erich Fromm é quem se encarregará
de positivar alguma coisa, se não lhe ocorrer acrescentar ainda
outras dúvidas. A menos que no decorrer da máquina de escrever, o
tom inteiro mude, e que algum vago entusiasmo de
polêmica-em-solilóquio inspire afirmações quase categóricas.
Enfim, não se perde por esperar muito, pois seguem-se apenas algumas
laudas em espaço dois, onde o remédio é adotar um falso ar de
desenvoltura.
As
interrogações começaram até antes de abrirmos o livro. Quando
folheamos, lembramo-nos vagamente de que já o havíamos lido sob o
título de Man for Himself, que é melhor que Análise do
homem, mas realmente muito difícil de traduzir. É que, de
passagem, numa conversa sobre Fromm, alguém se indagara alto, sem
pedir resposta: não será um vigarista? Não nos tinha ocorrido,
inclusive porque havíamos gostado muito de Escape from Fredom,
do mesmo autor. Mas a indagação despertou ecos, provocou vários
outros, concernentes ao vigarismo em matéria de livro científico.
Uma das interrogações, por exemplo; até que ponto um leigo – nós
– desconfia de um livro científico quando este não é difícil?
Quem passa por escolas habituou-se a que o mais respeitado e elogiado
é tão ininteligível e sonolento que um dos critérios mais
garantidos parece ser o da nobre caceteação ou o do não
entendimento total. Sério é aquilo de que não se gosta; e daí
também, o de que não se gosta não será ruim? E daí o cuidado de
não gostar “errado”.
Talvez
não seja totalmente absurdo que, sob a genuína vontade de consultar
o próprio gosto individual, esteja todo esse passado de receio, de
sentir que o rei está nu, não ter coragem de denunciá-lo; ou mais
angustiante ainda, o receio de que todos tenham concordado em que o
rei está nu, e ninguém tenha se lembrado de nos avisar para
concordarmos também. Esta hipótese geral pôs, assim, em dúvida a
nossa dúvida sobre o vigarismo.
De
onde pode vir a ideia de vigarismo a respeito de um homem sério como
Fromm? Pegue-se qualquer livro dele. Será sempre o estudo de um
homem devotado à sua tarefa. Mas acontece que se trata também de um
escritor, no sentido em que ele gosta de escrever, o que ele escreve
nada tem de seco relatório, sente-se que ele ama o ser humano de
quem fala, e não só não tem receio de gostar, como não cuida de
que de vez em quando a compreensão-compaixão não escape pelas
frestas. Cita Kant, Sófocles, Spinoza, Aristóteles, Platão, em vez
de casos patológicos. Virá daí a nossa leve desconfiança? Mas é
que não é incomum um psicanalista ligar-se a coisas de arte e
imaginação, o que se explica: pois um homem entender outro homem,
que é isto? Senão criação artística também senão o grande uso
da imaginação? Assim, portanto, mais uma dúvida quanto à dúvida
do vigarismo.
E
também a questão do perigo de popularizar-se. Até que ponto o que
se torna conhecido provoca algum descrédito? Suspeita-se daquilo de
que todos gostam, e do sucesso. Verdade é que, pelas muitas vezes em
que essa desconfiança acerta, há muitas vezes em que não. Mas, à
parte o natural esnobismo a que temos direito – por termos tantas
vezes sido vítimas de nossos próprios enganos – à parte isso, a
verdade, que nem por ser imponderável deixa de ser real, é que a
popularização afeta a coisa escrita. O desvirtuamento feito pela
interpretação de muitos agrega-se à obra como um pó, e a partir
de certo ponto ninguém mais tem oportunidade de ler o livro no seu
original. O que X entende de um livro altera dele intimamente o
sentido quando chega a vez de Y. Minimamente é condição
inescapável, e a adulteração vem até de mais longe, vem do autor
já alterando o que quis dizer, por exemplo. Mas multiplicai
minimamente por um número alto, e tereis um livro escrito pelos
leitores. Fromm é muito comprado, e a verdade é que Harry Stack
Sullivan não se encontra tão à mão nas livrarias, resguarda-se
nas estantes especializadas. O que suscita a pergunta: será que, a
essa altura, Erich Fromm já foi reescrito por nós? Ou será que ele
é mais um muito bom divulgador que, portanto, atrai?
Mas
veja-se o capítulo “Egoísmo, Amor-próprio e interesse próprio”,
deste livro de Fromm. É uma beleza de estudo, de cuidar em
diferenciar coisas sutis de um modo preciso. Esse capítulo foi
publicado pela primeira vez na revista Psychiatry, o que vale como
argumento de autoridade, e já o vimos reproduzido nas antologias
mais sérias, como a organizada por Carla Thompson, ao lado de Ernest
Jones, Michael Balint, Mabel Blake Cohen etc. Será que nossa
desconfiança vem do fato de que o tom de Fromm é o de um humanista,
sua terminologia não é estritamente psicanalítica, em vez de
documentar casos clínicos, prova com citações? Bom, mas também é
verdade que se trata mais de um livro de ensaísta e pensador, que de
consulta médica.
Até
que ponto exigimos que letra de médico só seja legível por
farmacêuticos? Até que ponto perdemos o respeito pela magia que
deveria pertencer apenas aos iniciados? E deveria mesmo. A verdade é
que a “ciência ao alcance de todos” só não terminaria fazendo
mal se se mantivesse em campo estritamente informativo, o que é
impossível. Mas é que saber pouco, em matéria de ciência,
atrapalha muito, é pior do que não saber. Inclusive, numa sadia
ignorância, numa ignorância inteligente, ainda podemos contar com a
intuição agindo e com uma sensatez natural. E de mais do que isso,
para viver, não precisamos. Se de mais precisamos, não será de
leitura científica, pois um leigo nem está equipado para
compreender que um estudo sobre o ser humano não é um apanhado de
normas rígidas, onde ele tem que caber por perplexidade, mas o
estudo de um processo em ação, cuja fluidez só é plenamente
vivenciada pelos que se dedicam a entender.
Acontece
também que a suspeita de vigarismo vem também de que certo tom de
ensinamento tem sido inesgotável mina de ouro: em jornais e livros
aprende-se a viver, salvar-se, a ajustar-se – não importa a que,
mas ajustar-se é a vaga ordem do dia. E esse tom – que vem da
descoberta de que a insegurança das pessoas é comercialmente
explorável nos vacina até contra o verdadeiro ensinamento, aquele
que é um ensinamento em profundidade, e não fórmula ou simples
consolo. Esse novo ensinamento também nos encontra de ouvidos
rebeldes. No primeiro capítulo, por exemplo, Fromm se propõe a esse
tipo de pesquisa: “Procurarei patentear que a estrutura do caráter
da personalidade amadurecida e integrada, o caráter produtivo,
constitua a fonte e a base da ‘virtude’, e que o ‘vício’, em
última instância, vem a ser a indiferença para com o próprio eu,
uma automutilação.”Este, aliás, é o “enredo” do livro de
Erich Fromm, enredo intenso, vasto, atentamente debruçado sobre esta
coisa desconfiada demais ou excessivamente confiante – uma pessoa.
Não,
ele não é um vigarista. Nem eu.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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