sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Análise do homem

Em relação à Análise do homem, de Erich Fromm, o comentário mais do que nunca terá que girar em torno de “talvez” e “quem sabe”. A irresponsável por este texto – não se trata de erro, a palavra é mesmo irresponsável – se não entende de crítica de literatura, que dirá de livro de ciência. Se bem que em se tratando de psicanálise, ética, situação humana, relações de si para consigo, e com os outros, todo mundo crê entender alguma coisa provavelmente com o argumento implícito de que, se somos personagens vivos deste gênero de estudo, a nós cabe acareá-lo com o nosso testemunho, esquecidos de que também nossos ossos são personagens principais de livros de anatomia e no entanto... De antemão, ao iniciar essa conversa, sentimos que o “talvez” dominará pouco a pouco, e que o futuro leitor de Erich Fromm é quem se encarregará de positivar alguma coisa, se não lhe ocorrer acrescentar ainda outras dúvidas. A menos que no decorrer da máquina de escrever, o tom inteiro mude, e que algum vago entusiasmo de polêmica-em-solilóquio inspire afirmações quase categóricas. Enfim, não se perde por esperar muito, pois seguem-se apenas algumas laudas em espaço dois, onde o remédio é adotar um falso ar de desenvoltura.
As interrogações começaram até antes de abrirmos o livro. Quando folheamos, lembramo-nos vagamente de que já o havíamos lido sob o título de Man for Himself, que é melhor que Análise do homem, mas realmente muito difícil de traduzir. É que, de passagem, numa conversa sobre Fromm, alguém se indagara alto, sem pedir resposta: não será um vigarista? Não nos tinha ocorrido, inclusive porque havíamos gostado muito de Escape from Fredom, do mesmo autor. Mas a indagação despertou ecos, provocou vários outros, concernentes ao vigarismo em matéria de livro científico. Uma das interrogações, por exemplo; até que ponto um leigo – nós – desconfia de um livro científico quando este não é difícil? Quem passa por escolas habituou-se a que o mais respeitado e elogiado é tão ininteligível e sonolento que um dos critérios mais garantidos parece ser o da nobre caceteação ou o do não entendimento total. Sério é aquilo de que não se gosta; e daí também, o de que não se gosta não será ruim? E daí o cuidado de não gostar “errado”.
Talvez não seja totalmente absurdo que, sob a genuína vontade de consultar o próprio gosto individual, esteja todo esse passado de receio, de sentir que o rei está nu, não ter coragem de denunciá-lo; ou mais angustiante ainda, o receio de que todos tenham concordado em que o rei está nu, e ninguém tenha se lembrado de nos avisar para concordarmos também. Esta hipótese geral pôs, assim, em dúvida a nossa dúvida sobre o vigarismo.
De onde pode vir a ideia de vigarismo a respeito de um homem sério como Fromm? Pegue-se qualquer livro dele. Será sempre o estudo de um homem devotado à sua tarefa. Mas acontece que se trata também de um escritor, no sentido em que ele gosta de escrever, o que ele escreve nada tem de seco relatório, sente-se que ele ama o ser humano de quem fala, e não só não tem receio de gostar, como não cuida de que de vez em quando a compreensão-compaixão não escape pelas frestas. Cita Kant, Sófocles, Spinoza, Aristóteles, Platão, em vez de casos patológicos. Virá daí a nossa leve desconfiança? Mas é que não é incomum um psicanalista ligar-se a coisas de arte e imaginação, o que se explica: pois um homem entender outro homem, que é isto? Senão criação artística também senão o grande uso da imaginação? Assim, portanto, mais uma dúvida quanto à dúvida do vigarismo.
E também a questão do perigo de popularizar-se. Até que ponto o que se torna conhecido provoca algum descrédito? Suspeita-se daquilo de que todos gostam, e do sucesso. Verdade é que, pelas muitas vezes em que essa desconfiança acerta, há muitas vezes em que não. Mas, à parte o natural esnobismo a que temos direito – por termos tantas vezes sido vítimas de nossos próprios enganos – à parte isso, a verdade, que nem por ser imponderável deixa de ser real, é que a popularização afeta a coisa escrita. O desvirtuamento feito pela interpretação de muitos agrega-se à obra como um pó, e a partir de certo ponto ninguém mais tem oportunidade de ler o livro no seu original. O que X entende de um livro altera dele intimamente o sentido quando chega a vez de Y. Minimamente é condição inescapável, e a adulteração vem até de mais longe, vem do autor já alterando o que quis dizer, por exemplo. Mas multiplicai minimamente por um número alto, e tereis um livro escrito pelos leitores. Fromm é muito comprado, e a verdade é que Harry Stack Sullivan não se encontra tão à mão nas livrarias, resguarda-se nas estantes especializadas. O que suscita a pergunta: será que, a essa altura, Erich Fromm já foi reescrito por nós? Ou será que ele é mais um muito bom divulgador que, portanto, atrai?
Mas veja-se o capítulo “Egoísmo, Amor-próprio e interesse próprio”, deste livro de Fromm. É uma beleza de estudo, de cuidar em diferenciar coisas sutis de um modo preciso. Esse capítulo foi publicado pela primeira vez na revista Psychiatry, o que vale como argumento de autoridade, e já o vimos reproduzido nas antologias mais sérias, como a organizada por Carla Thompson, ao lado de Ernest Jones, Michael Balint, Mabel Blake Cohen etc. Será que nossa desconfiança vem do fato de que o tom de Fromm é o de um humanista, sua terminologia não é estritamente psicanalítica, em vez de documentar casos clínicos, prova com citações? Bom, mas também é verdade que se trata mais de um livro de ensaísta e pensador, que de consulta médica.
Até que ponto exigimos que letra de médico só seja legível por farmacêuticos? Até que ponto perdemos o respeito pela magia que deveria pertencer apenas aos iniciados? E deveria mesmo. A verdade é que a “ciência ao alcance de todos” só não terminaria fazendo mal se se mantivesse em campo estritamente informativo, o que é impossível. Mas é que saber pouco, em matéria de ciência, atrapalha muito, é pior do que não saber. Inclusive, numa sadia ignorância, numa ignorância inteligente, ainda podemos contar com a intuição agindo e com uma sensatez natural. E de mais do que isso, para viver, não precisamos. Se de mais precisamos, não será de leitura científica, pois um leigo nem está equipado para compreender que um estudo sobre o ser humano não é um apanhado de normas rígidas, onde ele tem que caber por perplexidade, mas o estudo de um processo em ação, cuja fluidez só é plenamente vivenciada pelos que se dedicam a entender.
Acontece também que a suspeita de vigarismo vem também de que certo tom de ensinamento tem sido inesgotável mina de ouro: em jornais e livros aprende-se a viver, salvar-se, a ajustar-se – não importa a que, mas ajustar-se é a vaga ordem do dia. E esse tom – que vem da descoberta de que a insegurança das pessoas é comercialmente explorável nos vacina até contra o verdadeiro ensinamento, aquele que é um ensinamento em profundidade, e não fórmula ou simples consolo. Esse novo ensinamento também nos encontra de ouvidos rebeldes. No primeiro capítulo, por exemplo, Fromm se propõe a esse tipo de pesquisa: “Procurarei patentear que a estrutura do caráter da personalidade amadurecida e integrada, o caráter produtivo, constitua a fonte e a base da ‘virtude’, e que o ‘vício’, em última instância, vem a ser a indiferença para com o próprio eu, uma automutilação.”Este, aliás, é o “enredo” do livro de Erich Fromm, enredo intenso, vasto, atentamente debruçado sobre esta coisa desconfiada demais ou excessivamente confiante – uma pessoa.
Não, ele não é um vigarista. Nem eu.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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