Um
homem — um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito
pequeno — decide convidá-lo para conhecer suas filhas, a fim de
escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes
começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-las em
casa e tenta travar uma conversa civilizada, mas não consegue evitar
que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando
piadas indecentes, que são recebidas com um silêncio glacial. No
escuro, você murmura palavras sedutoras para a mais bonita das A;
quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a
A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu
guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
Isso
tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de
um vienense devidamente habilitado para interpretá-los, como por
exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu
respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na
vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance
de Italo Svevo (1861-1928). Se Svevo é de fato um romancista
freudiano, será freudiano na medida em que mostra o quanto a vida
das pessoas comuns é repleta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou
na medida em que, usando como fontes A interpretação dos sonhos,
O chiste e sua relação com o inconsciente e Sobre a psicopatologia
da vida cotidiana, ele cria uma personagem cuja vida interior
obedece às linhas descritas pelos manuais freudianos? Ou será ainda
que tanto Freud quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos,
charutos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significados
secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas um
cachimbo?
“Italo
Svevo” (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudônimo. O nome
original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô paterno era um
judeu vindo da Hungria e estabelecido em Trieste. Seu pai começou a
vida como mascate e acabou como um bem-sucedido comerciante de
artigos de vidro; sua mãe vinha de uma família judaica de Trieste.
Os Schmitz eram judeus praticantes, mas de observância não muito
rígida. Aron Ettore casou-se com uma convertida ao catolicismo, e
por pressão dela acabou se convertendo ele também (um tanto a
contragosto, vale dizer). A breve autobiografia publicada sob seu
nome num momento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte
da Itália e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a
seus antecedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua
mulher Livia publicou a seu respeito — com uma certa tendência
hagiográfica, embora plenamente legíveis — são igualmente
discretas na matéria.1 Em seus escritos, não se encontram
personagens ou temas abertamente judaicos.
O
pai de Svevo — uma influência dominante em sua vida — mandou os
filhos para um colégo interno de comércio na Alemanha, onde em suas
horas vagas Svevo mergulhou nos românticos alemães. Não obstante
as vantagens que seu aprendizado alemão podia trazer a seus negócios
no Império Austro-Húngaro, acabaram por privá-lo de uma formação
literária italiana.
De
volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos no Instituto
Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se ator tiveram fim
quando foi recusado num teste devido à sua elocução defeituosa do
italiano.
Em
1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho precisou
interromper os estudos. Obteve um emprego na filial em Trieste do
Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos seguintes, trabalhou no
banco. Fora do expediente, lia os clássicos italianos e a vanguarda
europeia em geral. Zola tornou-se o seu ídolo. Frequentava salons
artísticos e escrevia para um jornal simpático ao nacionalismo
italiano.
Entre
os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado o sabor de publicar
um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por conta
própria e vê-lo ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a
experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma
representante da proeminente família Veneziani, proprietários de um
estabelecimento que revestia cascos de navios com uma substância
patenteada que retardava a corrosão e impedia o crescimento de
cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era encarregado da
preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta e
supervisionava os demais funcionários.
Os
Veneziani já eram contratados por várias forças navais de todo o
mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou seu interesse,
apressaram-se em abrir uma representação em Londres, gerenciada por
Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo teve aulas com um
irlandês chamado James Joyce, que lecionava no curso Berlitz de
Trieste. Depois do fracasso de Senilidade, desistira de
escrever a sério. Agora, porém, no novo professor, encontrou alguém
que gostava dos seus livros e entendia as suas intenções. Animado,
retomou o que chamava de suas garatujas, embora só voltasse a
publicar alguma coisa na década de 1920.
Predominantemente
italiana em sua cultura, a Trieste dos tempos de Svevo ainda assim
fazia parte do império dos Habsburgo. Era uma cidade próspera, o
principal porto marítimo de Viena, onde uma classe média
esclarecida tocava uma economia baseada na navegação, nos seguros e
nas finanças. A imigração levara para lá gregos, alemães e
judeus; o trabalho braçal era feito por eslovenos e croatas. Em sua
heterogeneidade, Trieste era um microcosmo de um império etnicamente
variado em que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob
controle inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios
explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastando a
Europa consigo.
Embora
acompanhassem Florença nas questões culturais, os intelectuais
triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às correntes do norte
que seus equivalentes da Itália. No caso de Svevo, primeiro
Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, destacam-se como as
principais influências filosóficas.
Como
qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preocupava-se muito com sua
saúde: o que constituiria a boa saúde, de que modo podia ser
adquirida, e como mantê-la? Em sua obra, a saúde acabou assumindo
uma ampla gama de sentidos, indo do físico e do psíquico ao social
e ético. De onde vem a sensação insatisfeita, própria da
humanidade, que nos diz que não estamos bem e de que tanto
desejaríamos ver-nos curados? E essa cura, será possível? E se nos
obrigar a nos conformarmos com a maneira como as coisas são, será
essa cura necessariamente uma coisa boa?
Aos
olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a tratar as
pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo como uma espécie à
parte, coexistindo às turras com os tipos saudáveis e irreflexivos
que poderiam ser definidos como os “mais aptos” do jargão
darwiniano. Com Darwin — lido através de uma lente
schopenhaueriana — Svevo manteve uma teimosa implicância a vida
inteira. Seu primeiro romance pretendia trazer no título uma alusão
a Darwin: Un inetto, “um
inepto”, ou “mal-adaptado”. Mas seu editor foi contrário, e
ele acabou escolhendo o bem mais inexpressivo Una vita.
Num estilo exemplarmente naturalista, o livro acompanha a história
de um jovem bancário que, quando finalmente se vê obrigado a
admitir que sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição,
toma a providência correta do ponto de vista evolucionário, e se
suicida.
Num
ensaio posterior, intitulado “O homem e a teoria darwiniana”,
Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que acaba conduzindo
às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca estarmos à
vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo inacabamento da
evolução humana. Para fugir a essa triste condição, há os que
tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem o contrário. De fora,
os inadaptados podem parecer formas rejeitadas pela natureza, mas,
paradoxalmente, podem mostrar-se mais aptos que seus vizinhos
bem-adaptados para enfrentar o que o futuro imprevisível possa nos
trazer.
A
língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do dialeto
veneziano. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar o italiano
literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcançou o
domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades, tinha pouca
sensibilidade para as qualidades estéticas da linguagem, e
especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava seu amigo, o
jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe parecia um desperdício
usar apenas uma parte da página em branco quando pagara por toda
ela. P. N. Furbank, um dos melhores tradutores de Svevo [para o
inglês], rotula sua prosa de “uma espécie de italiano
‘comercial’, quase um esperanto — uma linguagem bastarda e
desgraciosa, totalmente desprovida de poesia ou ressonância”. Logo
depois do seu lançamento, Una vita foi criticado por seus
erros gramaticais, por seu uso indiscriminado do dialeto e pela
pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na mesma linha sobre
Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e Senilidade
foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto e corrigir seu
italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa. De si para si,
parecia duvidar de que meras alterações editoriais pudessem
produzir algum efeito.
Até
certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italiano por Svevo
pode ser ignorada como uma questão que só interessa aos italianos,
irrelevante para estrangeiros que o leem em tradução. Para o
tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma substancial questão
de princípio. Será que seus defeitos, numa gama que vai do uso de
preposições erradas ao emprego de um fraseado arcaico ou livresco e
a um estilo em geral laborioso, devem ser reproduzidos ou corrigidos
em silêncio? Ou, para formular a questão na forma inversa, como é
que, sem lançar mão de uma prosa deliberadamente truncada, o
tradutor poderá transmitir uma ideia do que Montale chama de
“esclerose” do mundo de Svevo, impregnada em sua própria
linguagem?
Svevo
não era indiferente ao problema. Sua recomendação ao tradutor de
Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por um alemão
gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou melhorar seu texto.
Svevo
costumava definir o triestino, em tom de desprezo, como um
dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma
sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convincente é
Zeno quando deplora que os estrangeiros “não sabem o que
representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto]
escrever em italiano. [...] Com cada palavra toscana que empregamos,
nós mentimos!”. Aqui, Svevo trata a passagem de um dialeto a
outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano em que
escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore traduttore).
Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que tanto os
não italianos quanto os italianos devem ponderar é se existiriam de
fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais conseguir traçar na
página em italiano.
A
origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo manteve em
1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um dos seus críticos,
de profissão indeterminada, que mais tarde se transformaria em
equestrienne de circo. No livro, ela se chama Angiolina.
Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como uma inocente que
ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida enquanto ela, em
contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar. Mas é Angiolina
quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que ela
proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida erótica bem
valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não estivesse ele
envolvido demais no autoengano da sua fantasia para absorvê-la
devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com um escriturário
de banco, Emilio irá relembrar o tempo que passou com ela
filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor as maravilhosas
últimas páginas do livro, banhadas em clichês românticos e ironia
impiedosa, e chegou a recitá-las para Svevo). A verdade é que esse
caso amoroso fora senil desde o início, no sentido único que Svevo
dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vital, mas antes subsistindo
desde o início graças à mentira egoísta.
Em
Senilidade, o autoengano é um estado da existência
deliberado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para
si mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quanto ao
que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina dormir
promiscuamente com outros homens e mostrar-se incompetente,
indiferente ou maliciosa demais para escondê-lo. Ao lado de A
sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é
um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explorando o
repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores para
entrar e sair da consciência de uma personagem com um mínimo de
incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-lo. A maneira como Svevo
mostra as relações entre Emilio e seus rivais é especialmente
perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não quer que seus amigos
cortejem sua amante; quanto mais claramente consegue visualizar
Angiolina com outro homem, mais intensamente ele a deseja, a ponto de
chegar a desejá-la porque ela esteve com outro homem. (A
presença de correntes homossexuais no triângulo do ciúme foi
evidentemente assinalada por Freud, mas só anos depois de Tolstói e
Svevo.)
As
traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno
são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendência
holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta mais famosa
é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da dança balinesa.
Na apresentação da sua nova tradução de Zeno, William Weaver
discute as soluções de De Zoete e sugere, com a delicadeza
possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-las de
circulação.
A
tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932, com o
título As a Man Grows Older [Enquanto um homem envelhece], é
particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo; o sexo
usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como mercadoria
negociada. Embora sua linguagem nunca seja exatamente imprópria,
Svevo tampouco pisa em ovos em torno da questão. A versão de De
Zoete, porém, é de um decoro excessivo. Por exemplo, Emilio pensa
nos feitos sexuais de Angiolina e imagina que ela deixa a cama do
rico mas repulsivo Volponi, e, a fim de livrar-se da “infamia”
(a desonra, mas também o horror) do toque desse homem, mergulha
imediatamente na cama com outro. O texto de Svevo quase não é
metafórico: com um segundo ato sexual Angiolina tentaria limpar-se
(“nettarsi”) dos vestígios que Volpini deixara nela. De
Zoete omite a limpeza: Angiolina “busca refugiar-se daquele enlace
infame”.
Noutros
pontos, De Zoete simplesmente elide ou sintetiza trechos que — com
ou sem razão — julga não terem contribuição para o sentido do
texto, ou serem coloquiais demais para funcionarem em inglês. Também
acontece de superinterpretar, acrescentando o que ela acha estar
acontecendo entre as personagens quando o próprio original se cala.
As metáforas comerciais que caracterizam a relação entre Emilio e
as mulheres às vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o
sentido de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo
a Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual (“ele
a possui”), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem
seria seu proprietário (“ele é seu possuidor”).
A
nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer
Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente,
recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar. Seu
inglês, embora claramente datado do final do século XX, tem uma
formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se alguma
crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para mostrar-se
atualizada ela emprega expressões que tendem a envelhecer em pouco
tempo.
Os
títulos de Svevo sempre representaram uma dor de cabeça para seus
tradutores e editores. Como título, Una vita é simplesmente
banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade foi lançado em
inglês com o título As a Man Grows Older, embora o romance
nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth Brombert reverte a um
título de trabalho anterior, Emilio’s Carnival [A orgia de
Emilio], apesar de na edição revista em italiano Svevo se ter
recusado a abrir mão de Senilidade: “Eu teria a sensação
de estar mutilando o livro... Esse título foi o meu guia, era ele
que me orientava”.
A
carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas
turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo
pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente, em sua
obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros,
ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia imaginar
que àquela época a classe média italiana de Trieste vivia entregue
a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando a união com a
pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno tenham sido
supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o conflito só vai
lançar alguma sombra sobre a obra em suas últimas páginas.
Graças
aos contratos com o governo de Viena, a família Veneziani ganhou
muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo, seus membros
apresentavam-se em Trieste como irredentistas apaixonados,
partidários da incorporação ao solo italiano de todos os
territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, biógrafo de
Svevo, classifica essa atitude de “farsa hipócrita”, e acredita
que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação.
Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo
durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em 1922.
Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoiaram
Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime de um
modo que Gatt-Rutter define como “de perfeita má-fé”,
considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em 1925, na
pessoa de Ettore Schmitz, ele aceitou uma comenda menor do Estado
pelos serviços que prestou à indústria nacional.
Embora
nunca se tenha tornado um fascista de carteira, pertencia como
industrial à Confederação Fascista das Indústrias. E sua mulher
foi participante ativa do “Fascio das Mulheres”.
Se
ficou moralmente comprometido devido à sua associação com os
Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia isso de si mesmo, a
julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do velho do conto “La
novella del buon vecchio e della bella fanciulla” [A história do
bom velho e da moça bonita], escrito em 1926 mas ambientado durante
a Primeira Guerra: “Todos os sinais da guerra lhe lembravam,
dolorosamente, que, graças a ela, ele ganhava tanto dinheiro. A
guerra lhe trouxera riqueza e humilhação... Já estava acostumado
ao remorso causado por seu sucesso nos negócios, e continuava
ganhando dinheiro a despeito do seu remorso”.
A
atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria, e a
autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencialmente
cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de sombra ou
potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filosofia ética do
Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfico. No
entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor do caminho
apontado por Schopenhauer, um indivíduo acredita que o caráter se
baseia num substrato de vontade, e duvida que a vontade queira mudar?
Zeno
Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua obra-prima da
maturidade, é um homem de meia-idade, confortavelmente casado,
próspero, ocioso, vivendo de uma renda que recebe do negócio
fundado por seu pai. Por um capricho, a fim de ver se consegue
curar-se de seja lá qual for o seu problema, submete-se à
psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S., pede-lhe que
escreva suas memórias da maneira como lhe ocorrerem. Zeno obedece,
produzindo cinco capítulos da extensão de um conto cada, cujos
temas são: o fumo; a morte do seu pai; seu namoro; um dos seus casos
amorosos; uma das suas sociedades comerciais.
Decepcionado
com o dr. S., que considera obtuso e dogmático, Zeno para de manter
suas notas sistemáticas. Visando indenizar-se pelos honorários
perdidos, o dr. S. publica o manuscrito de Zeno. E eis o que
constitui o livro que temos à nossa frente: as memórias de Zeno
mais a narrativa que lhe serve de moldura, sobre como elas foram
escritas, “uma autobiografia, mas não a minha”, como diz Svevo
numa carta a Montale. E Svevo ainda explica como sonhava aventuras
para Zeno, plantava-as em seu próprio passado e depois, ignorando
deliberadamente a divisa entre a fantasia e a memória,
“‘lembrava-se’ delas”.
Zeno
é um fumante compulsivo que quer parar de fumar, embora sem força
de vontade suficiente para consegui-lo de fato. Não duvida que fumar
lhe faça mal, e sonha com os pulmões cheios de ar fresco — as
três grandes cenas de morte em Svevo, uma em cada romance, mostram
pessoas que morrem arquejando e lutando desesperadas para respirar —,
mas ainda assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe
ele em algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas
como a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções,
gostariam de transformá-lo num cidadão comum e saudável,
subtraindo-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o
poder de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo
Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam
representando uns aos outros. O conto “La novella del buon vecchio
e della bella fanciulla” termina com o velho morto em sua
escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados.
Dizer
que Zeno é ambivalente sobre o fumo e, portanto, sobre a
possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa de um
arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém engraçado de
Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento. Zeno tem dúvidas
quanto aos poderes terapêuticos da psicanálise, assim como tem suas
dúvidas diante da própria ideia da cura; no entanto, quem se
atreveria a dizer que o paradoxo que acaba adotando ao final da sua
história — de que a suposta doença é parte da condição humana,
de que a verdadeira saúde consiste em aceitar quem você é (“ao
contrário das outras moléstias... não existe cura para a vida”)
— não instiga ele próprio uma interrogação cética e
zenoniana?
A
psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época em que
Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor triestino:
“Aderentes fanáticos à psicanálise [...] viviam trocando
histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos,
produzindo eles próprios seus diagnósticos amadores” (p. 306). O
próprio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos
sonhos, de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse
um ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões
curativas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual,
dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o domínio
do inconsciente sobre a vida consciente; considerava seu livro fiel
ao espírito cético da psicanálise da maneira como era praticada
pelo próprio Freud, embora não por seus discípulos, e chegou a
enviar um exemplar a Freud (que entretanto não acusou o
recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais ampla, Zeno é
mais que uma simples aplicação da psicanálise a uma vida
ficcional, ou que um mero questionamento cômico da psicanálise. É
uma exploração das paixões, inclusive as mais mesquinhas, como a
cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do romance europeu,
paixões para as quais a psicanálise acaba sendo apenas um guia
muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer ser curado é,
no fim das contas, não menos que o mal du siècle da própria
Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria freudiana
como A consciência de Zeno procuram responder.
*
* *
A
consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um dos
títulos difíceis de Svevo. “Coscienza” pode significar o
que modernamente se chama de “consciência”; mas também pode
significar o que em inglês se chama de “self-consciousness”
[a “consciência de si mesmo” ou “o embaraço”], como na
frase de Hamlet “A consciência nos converte a todos em covardes”
[Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo
alterna o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o
inglês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De Zoete
deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions of Zeno.
Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambiguidade e
usa Zeno’s Conscience.
Weaver
publicou traduções, entre outros escritores italianos, de Luigi
Pirandello, Carlo Emilio Gadda, Elsa Morante, Italo Calvino e Umberto
Eco. Sua tradução de Zeno numa prosa inglesa devidamente
comedida e discreta é do melhor padrão. Num detalhe, porém, é a
própria língua inglesa que trai o seu trabalho. Zeno costuma
contrastar muito o malato immaginario com o sano
immaginario, traduzidos por Weaver como “imaginary sick man”
e “imaginary healthy man”. (pp. 171, 176; capítulo 6 do
original) No entanto, “immaginario”, aqui, não
corresponde estritamente ao inglês “imaginary”, mas a
“self-imaginedly”, e um malato immaginario não é,
no sentido próprio, um imaginário homem doente (“imaginary
sick man”), mas um homem que se imagina doente (“a man who
imagines himself sick”).
O
malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que o malade
imaginaire de Molière, e é sem dúvida Molière que a mulher de
Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-lo falar durante horas sobre
os seus males, explode numa risada e diz-lhe que ele não passa de um
malato immaginario. Ao invocar Molière em vez de mais
atualizados teóricos da psique, na verdade ela atribui os males do
marido a uma predisposição de caráter. E essa sua intervenção
leva Zeno e seus amigos a longas conversas de muitas páginas sobre o
fenômeno do malato immaginario em contraposição ao malato
reale ou malato vero: não pode uma doença provinda da
imaginação ser mais grave que uma doença “verdadeira” ou
“real”, embora não seja genuína? E Zeno leva a interrogação
ainda mais além quando pergunta se, em nosso tempo, o mais doente de
todos pode não ser o sano immaginario, o homem que se imagina
são.
Toda
a disquisição é conduzida com muito mais precisão e humor no
italiano de Svevo do que seria possível num inglês circunlocutório.
Aqui, De Zoete está um passo à frente de Weaver ao desistir do
inglês e recorrer ao francês: “malade imaginaire” para
“malato immaginario”.
Publicado
às expensas do próprio Svevo em 1923, quando contava 62 anos de
idade, Zeno foi resenhado em algumas publicações, mas nunca por
algum dos líderes da opinião crítica. Um resenhista triestino
declarou ter sido pressionado a ignorar o livro, posto que, fosse o
que fosse, era um insulto evidente à cidade.
Em
nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar para Joyce em Paris.
Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e outras figuras influentes
da cena literária francesa. A reação foi de entusiasmo. Gallimard
encomendou uma tradução, com a condição de serem feitos certos
cortes; uma revista literária publicou todo um número sobre Svevo;
o PEN clube organizou um banquete em homenagem a Svevo em Paris.
Em
Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da obra de
Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relançado em
versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente Svevo; uma
nova geração de romancistas adotou-o como patrono. A direita reagiu
com hostilidade. “Na vida real, Italo Svevo tem um nome semita —
Ettore Schmitz”, escreveu La Sera, e sugeriu que toda aquela
onda em torno de Svevo fazia parte de uma vasta conspiração
judaica.
Envaidecido
com o sucesso inesperado de Zeno, exultante com sua nova fama,
Svevo pôs-se a trabalhar numa série de textos cujo tema comum era o
envelhecimento e os apetites insaciados da velhice. Talvez
pretendesse usá-los num quarto romance, uma continuação de Zeno.
Em inglês, podem ser encontrados, em traduções de P. N. Furbank e
outros, nos volumes 4 e 5 da edição uniformizada em cinco volumes
das obras de Svevo publicada na década de 1960 pela University of
California Press nos Estados Unidos e por Secker & Warburg na
Grã-Bretanha, mas hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de
uma reedição.
O
volume 5 contém ainda uma tradução da peça teatral La
Rigenerazione [Regeneração], obra tardia. Svevo nunca perdeu o
interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos anos,
mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma delas, Terzetto
spezzato [O triângulo partido], foi encenada durante a sua vida.
Svevo
morreu em 1928 de complicações provocadas por um acidente
automobilístico sem importância. Foi enterrado no cemitério
católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz. Livia
Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos da guerra,
juntamente com a filha do casal e o terceiro filho desta, escondida
dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho foi morto pelos
alemães por ocasião do levante triestino de 1945. A essa altura,
seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na frente russa,
lutando pela Itália e pelo Eixo.
J. M. Coetzee, em Mecanismos internos
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