Uma
amiga erudita, mas que não foi afetada pela erudição, me conta um
boato, em leve censura por eu não corresponder ao boato que deveria
ser mais certo que a realidade: muitos pensam que eu sou altamente
intelectualizada e que tenho grande cultura. “Mas você”, diz ela
com carinho, “devia pelo menos, só para não se envergonhar diante
dos outros, dar um jeito melhor na sua estante, é uma biblioteca
muito desfalcada demais.” Conto-lhe então que um homem de letras
me disse: “Gostaria de ver sua biblioteca para entender finalmente
onde você se inspira para as suas coisas.” Diz minha amiga: “Você
vê que tenho razão.”
Mas
realmente je m’en fiche. Brinco toda secreta de deixar que
pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser realmente uma
“desfalcada” – em outras coisas me dói – estou pura para
sentir o gosto do logro. É que também é muito bom enganar,
conquanto que a pessoa não engane a si mesma. Só a poucos conto a
verdade. No começo tentei dizer a verdade: mas tomavam como
modéstia, mentira ou “esquisitice”. E desse tipo de contar a
verdade não gostei. De modo que passei a me calar. Só a poucos digo
a verdade. Essa minha amiga já me diz hoje tranquila: “O escritor
tal, no seu livro...”, interrompe-se e sem escândalo me pergunta:
“Você já ouviu falar nele?”
Mas
bem queria deixar um testamentozinho exatamente para as pessoas
involuntariamente logradas por mim: Deixo-lhe minha incultividade que
em si não me deu nenhum gosto e até muita falta me fez, mas deixo-a
[para o senhor], pois foi tão bom que o senhor não a supusesse:
deixo-a intacta, pronta para ser transmitida. A cultura não se lega
porque a pessoa mesma tem que trabalhá-la, mas a vantagem de uma
relativa incultura é que se pode entregá-la toda a outra pessoa...
eu bem sei que triste legado.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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