Sentou-se
de modo que seu próprio peso “passasse a ferro” a saia
amarrotada. Endireitou os cabelos, a blusa. Agora, só esperar.
Lá
fora, tudo muito bom. Podia ver os telhados das casas, as flores
vermelhas duma janela, o sol amarelo derramado sobre tudo. Não havia
hora melhor que duas da tarde.
Não
queria esperar porque ficaria com medo. E assim não daria à doutora
a impressão que desejava causar. Não pensar na entrevista, não
pensar. Inventar depressa uma história, contar até mil, recordar-se
das coisas boas. O pior é que só se lembrava da carta que mandara.
“Minha senhora, eu tenho dezessete anos e queria...” Idiota,
absolutamente idiota. “Estou cansada de andar de um lado para
outro. Às vezes não consigo dormir, mesmo porque minhas irmãs
dormem no mesmo quarto e se remexem muito. Mas não consigo dormir
porque fico pensando nas coisas. Já resolvi me suicidar, mas não
quero mais. A senhora não pode me ajudar? Gertrudes.”
E
as outras cartas? “Não gosto de nada, sou como os poetas...” Oh,
não pensar. Que vergonha! Até que a doutora terminou por lhe
escrever, chamando-a para o escritório. Mas, afinal, o que iria
dizer? Tudo tão vago. E a doutora riria... Não, não, a doutora,
encarregada de menores abandonados, escrevendo conselhos nas
revistas, tinha que entender, mesmo sem ela falar.
Hoje
ia acontecer alguma coisa! Não pensar 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... Não
servia. Era uma vez um rapaz cego que... Cego por quê? Não, ele não
era cego. Tinha até a vista muito boa. Agora é que sabia por que
Deus, podendo tanto, inventava pessoas aleijadas, cegas, ruins. Só
por distração. Enquanto esperava? Não, Deus nunca precisa esperar.
Que é que ele faz então? Está aí, mesmo que ainda acreditasse
n’Ele (eu não acreditava em Deus, tomava banho bem em cima do
almoço, não usava o uniforme do colégio e resolvera fumar), mesmo
que ainda acreditasse em fantasmas, não poderia achar graça na
eternidade. Se fosse Deus até já teria esquecido de como
principiara o mundo. Já há tanto tempo e com séculos à frente...
A eternidade não começa, não termina. Sentia uma pequena vertigem,
quando procurava imaginá-la, e Deus, sempre em toda a parte,
invisível, sem forma definida. Riu, lembrando-se de quando bebia
avidamente as histórias que lhe contavam. Tornara-se bem livre...
Mas isso não significava estar contente. E era exatamente o que a
doutora ia explicar.
De
fato, nos últimos tempos, Tuda não passava nada bem. Ora sentia uma
inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha
frequentemente vontade de chorar, e o que em geral se reduzia à
vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias,
cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata,
embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um
grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta
felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse
propriamente em que consistia essa felicidade. Caía num choro
abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava,
a não sei quem e não sei de que forma.
Às
lágrimas sucedia-se, acompanhando os olhos inchados, um estado de
suave convalescença, de aquiescência a tudo. Surpreendia a todos
com sua doçura e transparência e, ainda mais, forçava uma leveza
de passarinho. Dava esmolas a todos os pobres, com a graça de quem
joga flores.
De
outras vezes, enchia-se de força. Seu olhar tornava-se duro como
aço, áspero como espinhos. Sentia que “podia”. Fora feita para
“libertar”.
“Libertar”
era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena
há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era
confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos
pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia
até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava,
propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa
e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé
quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma
meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida,
uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la.
Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se
interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com
irritante despreocupação.
Vivia
então os seus dias gloriosos. E chegavam ao auge com algum
pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente:
“Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!”
Imaginava-se já vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos
piedosos e humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas
e largas, emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então,
com a touca alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas.
Entregando ao médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar.
Ele a miraria com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas,
impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com
as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão,
o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído,
completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem
poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E
além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas
tragédias...
Até
que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia.
De noite, mantinha longas conversas imaginárias com a desconhecida.
De dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que
ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até
o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa
atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma
aventura.
Não
tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os
cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda.
Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de
visitas.
Ela
sorri. Eu fico séria.
– Boa-tarde.
– Boa-tarde,
minha filha (não seria melhor: boa-tarde, irmã? Não, não se usa).
– Vim
aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da
senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava
que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a
ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia
trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados
sobre... sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os
salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
– Gertrudes,
você terá papel muito maior na vida. Você fará...
O
quê? Afinal o que é grande? Tudo acaba... Não sei, a doutora vai
falar.
De
repente... O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as
pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
– Pode
entrar...
Tuda
atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava
sentada junto à mesa, rodeada de livros e papéis. Uma estranha,
séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu
arrumar a mesa.
– Então?
– disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes... – Riu. –
Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? –
iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda,
cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom pintado
um pouco para fora dos lábios, numa tentativa de sensualidade. O
rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu vontade de fugir.
…
Há
muitos anos saíra de casa.
A
doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre
diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem
orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também
falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos
uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos,
sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse
à noite, alegando o sereno. Precisava operar a garganta e vivia
sempre resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e
que as amígdalas eram uma defesa do organismo. E também, o que a
natureza criara tinha sua função.
A
doutora brincava com o lápis.
– Bem,
agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num
apelido? Tudes, Tuda…
Tuda
corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem
porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos
ouvidos. “Idade difícil... todos são... quando menos se
espera...”
– Essa
inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai
passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe
explicar. A puberdade traz distúrbios e...
Não,
doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas
coisas, o que sentia era mais belo e mesmo...
– Isto
vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de
extraordinário. Se quiser – ia usar seu velho “truc” e sorriu
–, se quiser arranje um namorado. Então...
Ela
era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A
doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma
nuvem tapou o sol e o escritório ficou de repente sombrio e úmido.
Daí a um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a
mover-se.
A
conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara
tanto...
– Então?
Mais alguma coisa? Fale, fale sem medo...
Tuda
pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não
sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer
uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
A
doutora inclinara a cabeça para um lado e desenhava pequenos riscos
simétricos sobre uma folha de papel. Depois rodeava os riscos com um
círculo um pouco torto. Como sempre, não conseguia manter a mesma
atitude por muito tempo. Começava a fraquejar e a deixar-se invadir
pelos próprios pensamentos. Notou-o, irritou-se e transferiu a
irritação para Tuda: “Tanta gente morrendo, tantas ‘crianças
sem lar’, tantos problemas irresolúveis (seus problemas) e aquela
guria, com família, boa vida burguesa, a dar-se importância.”
Vagamente observou que isso contrariava sua tese individualista:
“Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a
dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por
distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que
sobrenada e que não é o vital; o ‘mal de muitos’ é consolo,
mas não é solução.” Justamente porque observou que se
contradizia e porque lhe ocorreu a frase do colega sobre a
inconsistência das mulheres e porque achou-a injusta, ainda mais se
impacientou, querendo, com raiva de si mesma, como para punir-se,
afundar na contradição. Um minuto ainda e diria à menina: por que
não visita o cemitério? Vagamente porém notou-se as unhas sujas de
Tuda e refletiu: é muito turbulenta ainda para tirar lições do
cemitério. E além disso lembrava-se do seu próprio tempo de unhas
sujas e imaginou que desprezo não teria por alguém que então lhe
falasse do cemitério como de uma realidade.
De
repente, Tuda sentiu que a doutora não gostava dela. E, assim, junto
daquela mulher que nada tinha a ver com todas as coisas familiares,
naquela sala que nunca vira e que subitamente era “um lugar”,
pensou estar sonhando. Que viera fazer ali? Perguntou-se assustada.
Tudo perdia a realidade em relação à sua mãe, à casa, ao último
almoço, tão pacato, e não só a confissão como o inexplicável
motivo que a conduzira à doutora, pareceram-lhe mentira, uma
monstruosa mentira, que ela inventara gratuitamente, só para se
divertir... A prova é que ninguém dela se utilizava, como de uma
coisa que existe. Diziam: “o vestido de Tuda, as aulas de Tuda, as
amígdalas de Tuda...”, mas não diziam: “a infelicidade de
Tuda...” Caminhara tão depressa com essa mentira! Agora estava
perdida, não podia voltar atrás! Roubara um doce e não queria
comê-lo... Mas a doutora a obrigaria a mastigá-lo, a engoli-lo,
como castigo... Ah, escapulir do escritório e andar de novo sozinha,
sem a compreensão inútil e humilhante da doutora.
– Olhe,
Tuda, o que me agradaria dizer-lhe é que você um dia terá o que
agora procura tão confusamente. É uma espécie de calma que vem do
conhecimento de si própria e dos outros. Mas não se pode apressar a
vinda desse estado. Há coisas que só se aprende quando ninguém as
ensina. E com a vida é assim. Mesmo há mais beleza em descobri-la
sozinha, apesar do sofrimento. – A doutora sentiu um súbito
cansaço, tinha a impressão de que a ruga nº 3, do nariz aos
lábios, afundara. Aquela menina fazia-lhe mal e ela queria estar de
novo só. – Olhe, tenho certeza de que você ainda terá muita
felicidade. Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e
felizes que outros. Mas dê tempo ao tempo! – Como era vulgar com
facilidade, refletiu sem amargura. – Vá vivendo...
Sorriu.
E de repente Tuda sentiu aquele rosto entrando bem na sua alma. Não
era da boca, nem dos olhos que vinha aquele ar... ar divino. Era como
uma sombra terrivelmente simpática, vacilando sobre a doutora. E, no
mesmo instante, Tuda soube que não mentira, ah, não! Uma alegria,
uma vontade de chorar. Ah, ajoelhar-se diante da doutora, esconder o
rosto no seu regaço, gritar: é isso que eu tenho, é isso! Só
lágrimas!
A
doutora já não sorria. Pensava. Olhando-a, assim, de perfil, Tuda
já não a entendia mais. De novo, uma estranha. Buscou-a depressa, à
outra, a divina:
– Por
que a senhora disse: “o que me agradaria dizer-lhe...”? Então
não é a verdade?
A
menina era mais perspicaz do que pensara. Não, não era a verdade. A
doutora sabia que se pode passar a vida inteira buscando qualquer
coisa atrás da neblina, sabia também da perplexidade que traz o
conhecimento de si própria e dos outros. Sabia que a beleza de
descobrir a vida é pequena para quem procura principalmente a beleza
nas coisas. Oh, sabia muito. Mas estava cansada do duelo. O
escritório novamente vazio, afundar no divã, fechar as janelas –
a repousante escuridão. Pois se aquele era o seu refúgio, apenas
dela, onde até ele, com sua enervante e calma aceitação da
felicidade, era um intruso!
Olharam-se
e Tuda, decepcionada, sentiu que estava em posição superior à da
doutora, era mais forte do que ela.
A
conselheira não notara que já se havia denunciado com os olhos e
emendou, pensativa, a voz arrastada:
– Eu
disse isso? Acho que não... (Que deseja afinal essa guria? Quem sou
eu para dar conselhos? Por que é que ela não telefonou? Não,
melhor que não telefone, estou cansada. Oh, que me deixem, sobretudo
isto!)
Novamente
tudo flutuando no escritório. Não havia mais o que dizer. Tuda
levantou-se, com os olhos úmidos.
– Espere
– a doutora pareceu meditar um instante. – Olhe, vamos fazer um
contrato? Você continua estudando, sem preocupar-se muito consigo. E
quando completar... digamos... vinte anos, sim, vinte anos, você vem
cá... – Animou-se sinceramente: simpatizava com a menina, haveria
de ajudá-la, dar-lhe talvez um trabalho que a ocupasse e distraísse,
enquanto não passasse o período de desadaptação. Era bem viva,
inteligente até. – Aceita? Vamos, Tuda, seja uma boa menina e
concorde...
Sim,
concordava, concordava! Tudo era de novo possível! Ah, só que não
poderia falar, dizer quanto concordava, quanto se entregava à
doutora. Porque se falasse, poderia chorar, não queria chorar.
– Mas
Tuda... – A sombra divina no seu rosto. – Você não precisa
chorar... Vamos, prometa que será uma mulherzinha corajosa... –
Sim, vou ajudá-la. Mas agora, o divã, isso sim, depressa, mergulhar
nele.
Tuda
enxugou o rosto com as mãos.
Na
rua, tudo era mais fácil, sólido e simples. Caminhara depressa,
depressa. Não queria – a desgraça de sempre perceber –
lembrar-se do gesto mole e cansado com que a doutora lhe estendera a
mão. E mesmo o ligeiro suspiro... Não, não. Que loucura! Mas aos
poucos o pensamento instalou-se: fora uma indesejada... Corou.
Entrou
numa sorveteria e comprou um sorvete.
Passaram
duas mocinhas de uniforme de colégio, conversando e rindo alto.
Olharam para Tuda com a animosidade que as pessoas sentem umas pelas
outras e que os jovens ainda não disfarçam. Tuda estava sozinha e
foi vencida. Pensou, sem ligar o pensamento ao olhar das meninas: que
tenho a ver com elas? Quem esteve junto à doutora, falando de coisas
misteriosas e profundas? E se elas soubessem da aventura nem
entenderiam...
De
repente pareceu-lhe que depois de ter vivido aquela tarde, não
poderia continuar a mesma, estudando, indo ao cinema, passeando com
as amiguinhas, simplesmente... Distanciara-se de todos, mesmo da
antiga Tuda... Alguma coisa se desenrolara nela, a sua própria
personalidade que se afirmara com a certeza de que no mundo havia
correspondência para ela... Surpreendera-se: podia-se então falar
no... “naquilo” como de algo palpável, na sua insatisfação que
ela escondera com vergonha e medo... Agora... Alguém tocara
levemente nas névoas misteriosas de que vivia há algum tempo e de
repente elas se solidificavam, formavam um bloco, existiam.
Faltara-lhe até o momento quem a reconhecesse, para ela própria
reconhecer-se... Transformava-se tudo! Como? Não sabia...
Continuou
a andar, os olhos muito abertos, cada vez mais lúcida. Pensava:
antes era daquelas que existem, que se movem, casam, têm filhos
simplesmente. E d’agora em diante um dos elementos constantes de
sua vida seria Tuda, consciente, vigilante, sempre presente...
Seu
destino modificara-se, parecia-lhe. Mas como? Oh, não conseguir
pensar com clareza e não poderem as palavras conhecidas exprimir o
que se sente! Um pouco orgulhosa, deslumbrada, meio decepcionada,
repetia-se: vou ter outra vida, diferente da de Amélia, mamãe,
papai... Procurava ter uma visão de seu novo futuro e apenas
conseguia ver-se andando sozinha sobre largas planícies
desconhecidas, os passos resolutos, os olhos dolorosos, caminhando,
caminhando... Para onde?
Já
não se apressava para casa. Possuía um segredo do qual as pessoas
nunca poderiam partilhar. E ela própria, pensou, só participaria da
vida comum com algumas partículas de si mesma, algumas apenas, mas
não com a nova Tuda, a Tuda de hoje... Estaria sempre à margem?...
– Revelações sucediam-se rápidas, acendendo repentinas e
iluminando-a como pequenos raios. – Isolada...
Sentiu-se
subitamente deprimida, sem apoio. Tornara-se de um momento para outro
sozinha... Vacilou, desorientada. Onde está mamãe? Não, mamãe
não. Ah, voltar para o escritório, procurar o ar divino da doutora,
pedir-lhe que ela não a abandonasse, porque tinha medo, medo!
Mas
a doutora vivia uma vida própria e – outra revelação – ninguém
saía inteiramente para fora de si para ajudar... “Só” volte aos
vinte anos... Não empresto o vestido, não empresto coisa alguma,
você vive pedindo... E nem era possível ser compreendida! “A
puberdade traz distúrbios...” “Essa menina não está passando
bem, João, aposto como as amígdalas...”
– Oh,
perdão, senhorita... Machuquei-a?
Quase
perdeu o equilíbrio com o choque. Ficou um instante atordoada.
– Não
enxerga? – O homem tinha dentes brancos, pontudos. – Não há de
que... Não foi nada...
O
rapaz se afastou, com ligeiro sorriso no rosto redondo.
Abrindo
os olhos, Tuda percebeu a rua cheia de sol. A brisa forte arrepiou-a.
Que sorriso engraçado, o do homem. Lambeu o finzinho do sorvete e
como ninguém reparava comeu a casquinha (os homens de mãos sujas é
que fazem as casquinhas, Tuda). Franziu as sobrancelhas. Diabo! (Não
diga diabo, Tuda). Diria o que quisesse, comeria todas as casquinhas
do mundo, faria o que bem entendesse.
Lembrou-se
subitamente: a doutora... Não... Não. Nem aos vinte anos... Aos
vinte anos seria uma mulher caminhando sobre a planície
desconhecida... Uma mulher! O poder oculto desta palavra. Porque
afinal, pensou, ela... ela existia! Acompanhou o pensamento a
sensação de que tinha um corpo seu, o corpo que o homem olhara, uma
alma sua, a alma que a doutora tocara. Apertou os lábios com
firmeza, cheia de súbita violência:
– Eu
lá preciso de doutora! Lá preciso de ninguém!
Continuou
a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria.
Clarice Lispector, em Todos os contos
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