sábado, 14 de setembro de 2024

Gertrudes pede um conselho


Sentou-se de modo que seu próprio peso “passasse a ferro” a saia amarrotada. Endireitou os cabelos, a blusa. Agora, só esperar.
Lá fora, tudo muito bom. Podia ver os telhados das casas, as flores vermelhas duma janela, o sol amarelo derramado sobre tudo. Não havia hora melhor que duas da tarde.
Não queria esperar porque ficaria com medo. E assim não daria à doutora a impressão que desejava causar. Não pensar na entrevista, não pensar. Inventar depressa uma história, contar até mil, recordar-se das coisas boas. O pior é que só se lembrava da carta que mandara. “Minha senhora, eu tenho dezessete anos e queria...” Idiota, absolutamente idiota. “Estou cansada de andar de um lado para outro. Às vezes não consigo dormir, mesmo porque minhas irmãs dormem no mesmo quarto e se remexem muito. Mas não consigo dormir porque fico pensando nas coisas. Já resolvi me suicidar, mas não quero mais. A senhora não pode me ajudar? Gertrudes.”
E as outras cartas? “Não gosto de nada, sou como os poetas...” Oh, não pensar. Que vergonha! Até que a doutora terminou por lhe escrever, chamando-a para o escritório. Mas, afinal, o que iria dizer? Tudo tão vago. E a doutora riria... Não, não, a doutora, encarregada de menores abandonados, escrevendo conselhos nas revistas, tinha que entender, mesmo sem ela falar.
Hoje ia acontecer alguma coisa! Não pensar 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... Não servia. Era uma vez um rapaz cego que... Cego por quê? Não, ele não era cego. Tinha até a vista muito boa. Agora é que sabia por que Deus, podendo tanto, inventava pessoas aleijadas, cegas, ruins. Só por distração. Enquanto esperava? Não, Deus nunca precisa esperar. Que é que ele faz então? Está aí, mesmo que ainda acreditasse n’Ele (eu não acreditava em Deus, tomava banho bem em cima do almoço, não usava o uniforme do colégio e resolvera fumar), mesmo que ainda acreditasse em fantasmas, não poderia achar graça na eternidade. Se fosse Deus até já teria esquecido de como principiara o mundo. Já há tanto tempo e com séculos à frente... A eternidade não começa, não termina. Sentia uma pequena vertigem, quando procurava imaginá-la, e Deus, sempre em toda a parte, invisível, sem forma definida. Riu, lembrando-se de quando bebia avidamente as histórias que lhe contavam. Tornara-se bem livre... Mas isso não significava estar contente. E era exatamente o que a doutora ia explicar.
De fato, nos últimos tempos, Tuda não passava nada bem. Ora sentia uma inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha frequentemente vontade de chorar, e o que em geral se reduzia à vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias, cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse propriamente em que consistia essa felicidade. Caía num choro abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava, a não sei quem e não sei de que forma.
Às lágrimas sucedia-se, acompanhando os olhos inchados, um estado de suave convalescença, de aquiescência a tudo. Surpreendia a todos com sua doçura e transparência e, ainda mais, forçava uma leveza de passarinho. Dava esmolas a todos os pobres, com a graça de quem joga flores.
De outras vezes, enchia-se de força. Seu olhar tornava-se duro como aço, áspero como espinhos. Sentia que “podia”. Fora feita para “libertar”.
Libertar” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava, propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida, uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la. Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com irritante despreocupação.
Vivia então os seus dias gloriosos. E chegavam ao auge com algum pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!” Imaginava-se já vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos piedosos e humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas e largas, emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então, com a touca alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas. Entregando ao médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar. Ele a miraria com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas, impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão, o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído, completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas tragédias...
Até que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia. De noite, mantinha longas conversas imaginárias com a desconhecida. De dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma aventura.
Não tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda. Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de visitas.
Ela sorri. Eu fico séria.
Boa-tarde.
Boa-tarde, minha filha (não seria melhor: boa-tarde, irmã? Não, não se usa).
Vim aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados sobre... sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
Gertrudes, você terá papel muito maior na vida. Você fará...
O quê? Afinal o que é grande? Tudo acaba... Não sei, a doutora vai falar.
De repente... O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
Pode entrar...
Tuda atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava sentada junto à mesa, rodeada de livros e papéis. Uma estranha, séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu arrumar a mesa.
Então? – disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes... – Riu. – Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? – iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda, cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom pintado um pouco para fora dos lábios, numa tentativa de sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu vontade de fugir.


Há muitos anos saíra de casa.
A doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos, sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse à noite, alegando o sereno. Precisava operar a garganta e vivia sempre resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e que as amígdalas eram uma defesa do organismo. E também, o que a natureza criara tinha sua função.
A doutora brincava com o lápis.
Bem, agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num apelido? Tudes, Tuda…
Tuda corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos ouvidos. “Idade difícil... todos são... quando menos se espera...”
Essa inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe explicar. A puberdade traz distúrbios e...
Não, doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas coisas, o que sentia era mais belo e mesmo...
Isto vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de extraordinário. Se quiser – ia usar seu velho “truc” e sorriu –, se quiser arranje um namorado. Então...
Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma nuvem tapou o sol e o escritório ficou de repente sombrio e úmido. Daí a um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a mover-se.
A conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara tanto...
Então? Mais alguma coisa? Fale, fale sem medo...
Tuda pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
A doutora inclinara a cabeça para um lado e desenhava pequenos riscos simétricos sobre uma folha de papel. Depois rodeava os riscos com um círculo um pouco torto. Como sempre, não conseguia manter a mesma atitude por muito tempo. Começava a fraquejar e a deixar-se invadir pelos próprios pensamentos. Notou-o, irritou-se e transferiu a irritação para Tuda: “Tanta gente morrendo, tantas ‘crianças sem lar’, tantos problemas irresolúveis (seus problemas) e aquela guria, com família, boa vida burguesa, a dar-se importância.” Vagamente observou que isso contrariava sua tese individualista: “Cada pessoa é um mundo, cada pessoa tem sua própria chave e a dos outros nada resolve; só se olha para o mundo alheio por distração, por interesse, por qualquer outro sentimento que sobrenada e que não é o vital; o ‘mal de muitos’ é consolo, mas não é solução.” Justamente porque observou que se contradizia e porque lhe ocorreu a frase do colega sobre a inconsistência das mulheres e porque achou-a injusta, ainda mais se impacientou, querendo, com raiva de si mesma, como para punir-se, afundar na contradição. Um minuto ainda e diria à menina: por que não visita o cemitério? Vagamente porém notou-se as unhas sujas de Tuda e refletiu: é muito turbulenta ainda para tirar lições do cemitério. E além disso lembrava-se do seu próprio tempo de unhas sujas e imaginou que desprezo não teria por alguém que então lhe falasse do cemitério como de uma realidade.
De repente, Tuda sentiu que a doutora não gostava dela. E, assim, junto daquela mulher que nada tinha a ver com todas as coisas familiares, naquela sala que nunca vira e que subitamente era “um lugar”, pensou estar sonhando. Que viera fazer ali? Perguntou-se assustada. Tudo perdia a realidade em relação à sua mãe, à casa, ao último almoço, tão pacato, e não só a confissão como o inexplicável motivo que a conduzira à doutora, pareceram-lhe mentira, uma monstruosa mentira, que ela inventara gratuitamente, só para se divertir... A prova é que ninguém dela se utilizava, como de uma coisa que existe. Diziam: “o vestido de Tuda, as aulas de Tuda, as amígdalas de Tuda...”, mas não diziam: “a infelicidade de Tuda...” Caminhara tão depressa com essa mentira! Agora estava perdida, não podia voltar atrás! Roubara um doce e não queria comê-lo... Mas a doutora a obrigaria a mastigá-lo, a engoli-lo, como castigo... Ah, escapulir do escritório e andar de novo sozinha, sem a compreensão inútil e humilhante da doutora.
Olhe, Tuda, o que me agradaria dizer-lhe é que você um dia terá o que agora procura tão confusamente. É uma espécie de calma que vem do conhecimento de si própria e dos outros. Mas não se pode apressar a vinda desse estado. Há coisas que só se aprende quando ninguém as ensina. E com a vida é assim. Mesmo há mais beleza em descobri-la sozinha, apesar do sofrimento. – A doutora sentiu um súbito cansaço, tinha a impressão de que a ruga nº 3, do nariz aos lábios, afundara. Aquela menina fazia-lhe mal e ela queria estar de novo só. – Olhe, tenho certeza de que você ainda terá muita felicidade. Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e felizes que outros. Mas dê tempo ao tempo! – Como era vulgar com facilidade, refletiu sem amargura. – Vá vivendo...
Sorriu. E de repente Tuda sentiu aquele rosto entrando bem na sua alma. Não era da boca, nem dos olhos que vinha aquele ar... ar divino. Era como uma sombra terrivelmente simpática, vacilando sobre a doutora. E, no mesmo instante, Tuda soube que não mentira, ah, não! Uma alegria, uma vontade de chorar. Ah, ajoelhar-se diante da doutora, esconder o rosto no seu regaço, gritar: é isso que eu tenho, é isso! Só lágrimas!
A doutora já não sorria. Pensava. Olhando-a, assim, de perfil, Tuda já não a entendia mais. De novo, uma estranha. Buscou-a depressa, à outra, a divina:
Por que a senhora disse: “o que me agradaria dizer-lhe...”? Então não é a verdade?
A menina era mais perspicaz do que pensara. Não, não era a verdade. A doutora sabia que se pode passar a vida inteira buscando qualquer coisa atrás da neblina, sabia também da perplexidade que traz o conhecimento de si própria e dos outros. Sabia que a beleza de descobrir a vida é pequena para quem procura principalmente a beleza nas coisas. Oh, sabia muito. Mas estava cansada do duelo. O escritório novamente vazio, afundar no divã, fechar as janelas – a repousante escuridão. Pois se aquele era o seu refúgio, apenas dela, onde até ele, com sua enervante e calma aceitação da felicidade, era um intruso!
Olharam-se e Tuda, decepcionada, sentiu que estava em posição superior à da doutora, era mais forte do que ela.
A conselheira não notara que já se havia denunciado com os olhos e emendou, pensativa, a voz arrastada:
Eu disse isso? Acho que não... (Que deseja afinal essa guria? Quem sou eu para dar conselhos? Por que é que ela não telefonou? Não, melhor que não telefone, estou cansada. Oh, que me deixem, sobretudo isto!)
Novamente tudo flutuando no escritório. Não havia mais o que dizer. Tuda levantou-se, com os olhos úmidos.
Espere – a doutora pareceu meditar um instante. – Olhe, vamos fazer um contrato? Você continua estudando, sem preocupar-se muito consigo. E quando completar... digamos... vinte anos, sim, vinte anos, você vem cá... – Animou-se sinceramente: simpatizava com a menina, haveria de ajudá-la, dar-lhe talvez um trabalho que a ocupasse e distraísse, enquanto não passasse o período de desadaptação. Era bem viva, inteligente até. – Aceita? Vamos, Tuda, seja uma boa menina e concorde...
Sim, concordava, concordava! Tudo era de novo possível! Ah, só que não poderia falar, dizer quanto concordava, quanto se entregava à doutora. Porque se falasse, poderia chorar, não queria chorar.
Mas Tuda... – A sombra divina no seu rosto. – Você não precisa chorar... Vamos, prometa que será uma mulherzinha corajosa... – Sim, vou ajudá-la. Mas agora, o divã, isso sim, depressa, mergulhar nele.
Tuda enxugou o rosto com as mãos.
Na rua, tudo era mais fácil, sólido e simples. Caminhara depressa, depressa. Não queria – a desgraça de sempre perceber – lembrar-se do gesto mole e cansado com que a doutora lhe estendera a mão. E mesmo o ligeiro suspiro... Não, não. Que loucura! Mas aos poucos o pensamento instalou-se: fora uma indesejada... Corou.
Entrou numa sorveteria e comprou um sorvete.
Passaram duas mocinhas de uniforme de colégio, conversando e rindo alto. Olharam para Tuda com a animosidade que as pessoas sentem umas pelas outras e que os jovens ainda não disfarçam. Tuda estava sozinha e foi vencida. Pensou, sem ligar o pensamento ao olhar das meninas: que tenho a ver com elas? Quem esteve junto à doutora, falando de coisas misteriosas e profundas? E se elas soubessem da aventura nem entenderiam...
De repente pareceu-lhe que depois de ter vivido aquela tarde, não poderia continuar a mesma, estudando, indo ao cinema, passeando com as amiguinhas, simplesmente... Distanciara-se de todos, mesmo da antiga Tuda... Alguma coisa se desenrolara nela, a sua própria personalidade que se afirmara com a certeza de que no mundo havia correspondência para ela... Surpreendera-se: podia-se então falar no... “naquilo” como de algo palpável, na sua insatisfação que ela escondera com vergonha e medo... Agora... Alguém tocara levemente nas névoas misteriosas de que vivia há algum tempo e de repente elas se solidificavam, formavam um bloco, existiam. Faltara-lhe até o momento quem a reconhecesse, para ela própria reconhecer-se... Transformava-se tudo! Como? Não sabia...
Continuou a andar, os olhos muito abertos, cada vez mais lúcida. Pensava: antes era daquelas que existem, que se movem, casam, têm filhos simplesmente. E d’agora em diante um dos elementos constantes de sua vida seria Tuda, consciente, vigilante, sempre presente...
Seu destino modificara-se, parecia-lhe. Mas como? Oh, não conseguir pensar com clareza e não poderem as palavras conhecidas exprimir o que se sente! Um pouco orgulhosa, deslumbrada, meio decepcionada, repetia-se: vou ter outra vida, diferente da de Amélia, mamãe, papai... Procurava ter uma visão de seu novo futuro e apenas conseguia ver-se andando sozinha sobre largas planícies desconhecidas, os passos resolutos, os olhos dolorosos, caminhando, caminhando... Para onde?
Já não se apressava para casa. Possuía um segredo do qual as pessoas nunca poderiam partilhar. E ela própria, pensou, só participaria da vida comum com algumas partículas de si mesma, algumas apenas, mas não com a nova Tuda, a Tuda de hoje... Estaria sempre à margem?... – Revelações sucediam-se rápidas, acendendo repentinas e iluminando-a como pequenos raios. – Isolada...
Sentiu-se subitamente deprimida, sem apoio. Tornara-se de um momento para outro sozinha... Vacilou, desorientada. Onde está mamãe? Não, mamãe não. Ah, voltar para o escritório, procurar o ar divino da doutora, pedir-lhe que ela não a abandonasse, porque tinha medo, medo!
Mas a doutora vivia uma vida própria e – outra revelação – ninguém saía inteiramente para fora de si para ajudar... “Só” volte aos vinte anos... Não empresto o vestido, não empresto coisa alguma, você vive pedindo... E nem era possível ser compreendida! “A puberdade traz distúrbios...” “Essa menina não está passando bem, João, aposto como as amígdalas...”
Oh, perdão, senhorita... Machuquei-a?
Quase perdeu o equilíbrio com o choque. Ficou um instante atordoada.
Não enxerga? – O homem tinha dentes brancos, pontudos. – Não há de que... Não foi nada...
O rapaz se afastou, com ligeiro sorriso no rosto redondo.
Abrindo os olhos, Tuda percebeu a rua cheia de sol. A brisa forte arrepiou-a. Que sorriso engraçado, o do homem. Lambeu o finzinho do sorvete e como ninguém reparava comeu a casquinha (os homens de mãos sujas é que fazem as casquinhas, Tuda). Franziu as sobrancelhas. Diabo! (Não diga diabo, Tuda). Diria o que quisesse, comeria todas as casquinhas do mundo, faria o que bem entendesse.
Lembrou-se subitamente: a doutora... Não... Não. Nem aos vinte anos... Aos vinte anos seria uma mulher caminhando sobre a planície desconhecida... Uma mulher! O poder oculto desta palavra. Porque afinal, pensou, ela... ela existia! Acompanhou o pensamento a sensação de que tinha um corpo seu, o corpo que o homem olhara, uma alma sua, a alma que a doutora tocara. Apertou os lábios com firmeza, cheia de súbita violência:
Eu lá preciso de doutora! Lá preciso de ninguém!
Continuou a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria.

Clarice Lispector, em Todos os contos

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