Enquanto
estou aqui sentada, com um pé em cada lado do parapeito, observando
as ruas de Boston a doze andares abaixo, pensar em suicídio é
inevitável.
Não
no meu. Gosto o suficiente de minha vida para querer vivê-la.
Estou
pensando em outras pessoas e em como decidem simplesmente acabar com
a própria vida. Será que elas se arrependem em algum momento?
No instante depois de se jogar, e no segundo antes do impacto deve
haver algum remorso durante aquela breve queda livre. Será que veem
o chão se aproximando depressa e pensam: Ah, que droga, que ideia
péssima!
Por
algum motivo, acho que não.
Penso
muito na morte. Ainda mais hoje, considerando que acabei de — doze
horas antes — fazer um dos discursos fúnebres mais épicos que o
povo de Plethora, no Maine, já testemunhou. Tudo bem, talvez não
tenha sido o mais épico, mas poderia muito bem ser o mais
desastroso. Acho que depende se a pergunta for feita para mim ou para
minha mãe. Minha mãe, que provavelmente vai passar um ano
inteiro sem falar comigo depois de hoje.
Não
me entenda mal: meu discurso fúnebre não foi tão marcante a ponto
de entrar para a história, como o de Brooke Shields no funeral de
Michael Jackson. Ou o da irmã de Steve Jobs. Ou o do irmão de Pat
Tillman. Mas foi épico à própria maneira.
No
início, fiquei nervosa. Afinal, era o funeral do extraordinário
Andrew Bloom. Prefeito idolatrado de minha cidade natal: Plethora, no
Maine. Dono da agência imobiliária de maior sucesso da cidade.
Marido da idolatrada Jenny Bloom, a mais reverenciada professora
auxiliar de toda Plethora. E pai de Lily Bloom, aquela garota
estranha, de excêntrico cabelo ruivo, que certa vez se apaixonou por
um mendigo e envergonhou toda a família.
Eu
sou Lily Bloom, e Andrew era meu pai.
Assim
que terminei o discurso fúnebre, peguei um voo para Boston e
sequestrei o primeiro telhado que encontrei. Mais uma vez, não
porque sou suicida. Não tenho nenhum plano de saltar deste
telhado. Só precisava de ar fresco e silêncio, nada mais. Algo
impossível de conseguir em meu apartamento no terceiro andar, sem
acesso ao telhado, e morando com uma garota que adora se ouvir
cantando.
Porém,
não pensei em como estaria frio aqui em cima. Não está
insuportável, mas também não está nada confortável. Pelo menos
dá para ver as estrelas. Pais falecidos, irritantes colegas de
apartamento e discursos fúnebres questionáveis não parecem nada
mal quando o céu noturno está límpido o suficiente para,
literalmente, espelhar o esplendor do universo.
Amo
quando o céu me faz sentir insignificante.
Estou
gostando desta noite.
Bem...
vou reformular a frase para que ela reflita meus sentimentos de
maneira mais apropriada, no passado.
Eu
estava gostando desta noite.
Mas,
para minha infelicidade, a porta foi aberta com tanta força que
quase esperei ver a escada cuspir um humano no telhado. A porta se
fecha novamente, e passos se movem com pressa pelo piso. Não me dou
o trabalho de erguer o olhar. Seja quem for, é muito provável que
nem me perceba em cima do parapeito à esquerda da porta. A pessoa
saiu com tanta pressa que não será culpa minha se presumir que está
sozinha.
Suspiro
baixinho, fecho os olhos e encosto a cabeça na parede de estuque
atrás de mim, xingando o universo por ter me tirado o momento
introspectivo de paz. O mínimo que o universo pode fazer é garantir
que seja uma mulher, não um homem. Se vou ter companhia, prefiro uma
mulher. Sou durona para meu tamanho, e provavelmente consigo me virar
sozinha na maior parte das situações, mas estou relaxada demais
para ficar sozinha com um desconhecido no telhado, tarde da noite.
Temo pela minha segurança e sinto que preciso ir embora, mas não
queria ir. Como disse... estou relaxada.
Finalmente
permito que meus olhos percorram o trajeto até a silhueta inclinada
por cima do parapeito. Infelizmente, tenho certeza de que é um
homem. Mesmo naquela posição, noto que é alto. Ombros largos criam
grande contraste em relação à maneira frágil como ele apoia a
própria cabeça nas mãos. Mal percebo o pesado subir e descer de
suas costas enquanto ele inspira fundo, para exalar com força em
seguida.
Parece
à beira de um colapso. Considero dizer alguma coisa, ou pigarrear,
para alertá-lo de que tem companhia, mas, antes que eu o faça, ele
gira e chuta uma das cadeiras do terraço.
Eu
me retraio quando o móvel arranha o telhado, mas, como ele não
imagina ter plateia, não para com um só chute. Ele atinge a cadeira
repetidamente, sem parar. E, em vez de se render sob a força bruta
daquele pé, a cadeira apenas se afasta cada vez mais.
Aquela
cadeira deve ser feita de polímero resistente à maresia.
Certa
vez, vi meu pai atropelar uma mesa de jardim feita desse polímero: a
coisa praticamente riu. O para-choque amassou, mas a mesa nem
arranhou.
O
cara parece notar que não é páreo para um material de tamanha
qualidade porque finalmente desiste de chutar. Fica ali, perto do
móvel, os punhos cerrados nas laterais do corpo. Para ser sincera,
sinto um pouco de inveja. Ele desconta muito bem a raiva na mobília.
É óbvio que teve um dia péssimo, assim como eu, mas enquanto
guardo minha frustração até ela se manifestar de forma
passivo-agressiva, ele encontra uma verdadeira válvula de escape.
Minha
válvula de escape costumava ser minha horta. Sempre que eu me
estressava, era só ir até o quintal e arrancar toda erva daninha
que encontrasse. Porém, desde que me mudei para Boston, há dois
anos, não tenho mais horta. Nem terraço. Nem sequer ervas daninhas.
Talvez
eu devesse investir em uma cadeira de polímero resistente à
maresia.
Fico
observando o rapaz mais um pouco, e me pergunto se ele não vai se
mexer. Está simplesmente parado, encarando a cadeira. Não está
mais de punhos cerrados. As mãos estão apoiadas nos quadris, e
percebo que sua camisa não tem um caimento bom no bíceps. Tem um
caimento ótimo no restante do corpo, mas seus braços são enormes.
Ele começa a remexer nos bolsos até encontrar o que está
procurando, e — na provável tentativa de administrar ainda mais a
raiva — acende um baseado.
Tenho
23 anos, já terminei a faculdade e usei a mesma droga recreativa uma
ou duas vezes. Não vou julgar o rapaz por achar que precisa fumar
sozinho. Mas é esta a questão: ele não está sozinho. Só não
sabe disso ainda.
Ele
dá uma longa tragada no baseado e começa a se voltar para o
parapeito. Percebe minha presença ao expirar. Para de andar no
instante que nossos olhares se encontram. Sua expressão não é de
susto nem de humor. Ele está a uns três metros de distância, mas a
luz das estrelas é suficiente para que eu enxergue seus olhos
observando meu corpo sem revelar um único pensamento. Esse cara sabe
esconder o jogo; estreitando os olhos e comprimindo os lábios, ele
parece a versão masculina da Mona Lisa.
— Como
você se chama? — pergunta ele.
Sinto
a voz no estômago. O que não é nada bom. As vozes deviam parar nos
ouvidos, mas, às vezes — não é nada comum, na verdade —, uma
voz penetra em meus ouvidos e reverbera por meu corpo. Ele tem uma
dessas vozes. Grave, confiante e um pouco parecida com manteiga.
Como
não respondo, ele leva o baseado à boca e dá mais uma tragada.
— Lily
— revelo, por fim.
Odeio
minha voz. Pareceu baixa demais para chegar a seus ouvidos, ainda
mais para reverberar dentro de seu corpo.
O
cara ergue um pouco o queixo e aponta a cabeça para mim.
— Pode
descer daí, por favor, Lily?
Só
quando ele pede isso percebo sua postura. Está em pé, corpo ereto,
até mesmo rígido. Quase como se estivesse nervoso, achando que vou
cair. Não vou. O parapeito tem no mínimo 30 centímetros de
largura, e a maior parte de mim está no telhado. Seria muito fácil
me segurar antes de cair, sem falar que o vento está a meu favor.
Olho
para minhas pernas e, depois, para ele.
— Não,
obrigada. Estou bem confortável aqui.
Ele
se vira um pouco, como se não conseguisse me olhar diretamente.
— Por
favor, desça. — Agora é mais uma ordem, apesar de ele ter dito
por favor. — Tem sete cadeiras vazias aqui.
— Por
pouco não seis — corrijo, lembrando que ele quase assassinou uma
delas.
Ele
não acha graça na resposta. Como não obedeço à ordem, ele dá
dois passos em minha direção.
— Você
está a meros 7 centímetros da morte. E ela já me fez companhia por
tempo demais hoje. — Ele gesticula novamente para que eu desça. —
Está me deixando nervoso. Sem falar que isso corta meu barato.
Reviro
os olhos e passo as pernas por cima do parapeito.
— Deus
me livre desperdiçar um baseado. — Dou um pulo para descer e limpo
as mãos na calça jeans. — Melhorou? — pergunto, enquanto me
aproximo.
O
cara expira com força, como se tivesse prendido a respiração ao me
ver em cima do parapeito. Passo por ele em direção ao lado do
telhado com a melhor vista e, no meio-tempo, não deixo de perceber
como ele é incrivelmente bonito.
Não.
Bonito é um insulto.
O
cara é lindo. Tem as mãos cuidadas, cheira a dinheiro e
parece ser bem mais velho que eu. Seus olhos se enrugam ao me seguir,
e seus lábios parecem em bico, mesmo quando relaxados. Quando chego
ao lado do prédio com vista para a rua, eu me inclino e fico olhando
os carros lá embaixo, tentando não demonstrar minha admiração. Só
pelo corte de cabelo já dá para perceber que esse é o tipo de
homem que impressiona facilmente, e eu me recuso a alimentar seu ego.
Não que tenha feito alguma coisa para me convencer de que é metido.
Porém, está vestindo uma camisa casual da Burberry, e acho que
nunca estive no radar de alguém com dinheiro para, casualmente,
comprar uma dessas.
Escuto
passos se aproximando atrás de mim, e ele se inclina na grade a meu
lado. De soslaio, eu o observo dar uma tragada no baseado. Após
terminar, ele o oferece, mas recuso com um gesto. A última coisa de
que preciso é me drogar perto desse cara. Sua voz já é
praticamente uma droga. Meio que quero ouvi-la de novo, então
pergunto:
— Então,
o que aquela cadeira fez para te deixar tão zangado?
Ele
olha para mim. Quero dizer, realmente me olha. Seus olhos
encontram os meus, e ele me encara com firmeza, como se todos os meus
segredos estivessem bem no rosto. Jamais vi olhos tão escuros.
Talvez eu até tenha visto, porém parecem mais escuros quando
associados a uma presença tão intimidante. Ele não me responde,
mas minha curiosidade não é facilmente saciada. Se ele me obrigou a
descer de um parapeito muito confortável e tranquilo, espero que ele
me entretenha com respostas para minhas perguntas indiscretas.
— Foi
uma mulher? — pergunto. — Ela partiu seu coração?
Ele
ri um pouco.
— Quem
me dera se meus problemas fossem tão triviais quanto assuntos do
coração. — Ele se encosta na parede e se vira para mim. — Você
mora em que andar? — Lambe os dedos e aperta a extremidade do
baseado antes de guardá-lo no bolso. — Nunca te encontrei.
— É
porque não moro aqui. — Aponto para meu apartamento. — Está
vendo aquele prédio da seguradora?
Ele
semicerra as pálpebras enquanto olha na direção indicada.
— Ahã.
— Moro
no prédio ao lado. É baixo demais para ver daqui. São só três
andares.
Ele
se volta para mim, apoiando o cotovelo no parapeito.
— Se
mora ali, por que está aqui? É o apartamento de seu namorado ou
algo assim?
Por
algum motivo, seu comentário faz com que me sinta fácil. Foi óbvio
demais... uma cantada amadora. Pela aparência, sei que é mais
habilidoso. Então fico com a impressão de que ele deixa as cantadas
mais difíceis somente para as mulheres ‘merecedoras’.
— Seu
telhado é legal — respondo.
Ele
ergue a sobrancelha, esperando que eu explique melhor.
— Eu
queria tomar ar fresco. Um lugar para pensar. Abri o Google Earth e
encontrei o prédio com um terraço decente mais próximo.
Ele
me olha sorrindo.— Pelo menos você é econômica — comenta. —
Essa é uma boa qualidade.
Pelo
menos?
Assinto,
porque sou mesmo econômica. E essa é mesmo uma boa qualidade.
— Por
que estava precisando de ar fresco? — pergunta ele.
Porque
enterrei meu pai hoje, fiz um discurso fúnebre epicamente desastroso
e agora sinto como se não conseguisse respirar.
Eu
me viro para a frente de novo, expiro lentamente.
— A
gente pode ficar um pouco em silêncio?
Ele
parece aliviado com o pedido. Inclina-se por cima do parapeito e
deixa o braço se balançar enquanto olha a rua. Ele fica assim por
um instante, e eu o encaro durante todo o tempo. Provavelmente sabe
que o estou observando, mas parece não se importar.
— Um
cara caiu daqui no mês passado — revela ele.
Eu
até teria me irritado por ele ter desrespeitado meu pedido de
silêncio, mas fico um pouco intrigada.
— Foi
acidente?
Ele
dá de ombros.
— Ninguém
sabe. Aconteceu no fim da tarde. A esposa contou que preparava o
jantar quando o marido subiu para tirar fotos do pôr do sol. Ele era
fotógrafo. Acham que estava se inclinando por cima do parapeito para
tirar uma foto do horizonte, e acabou escorregando.
Olho
por cima do parapeito, me perguntando como alguém se coloca em uma
situação com risco real de acidente, mas então me lembro de que
estava sentada no parapeito do outro lado do teto há apenas alguns
minutos.
— Quando
minha irmã me contou o que aconteceu, fiquei pensando se ele tinha
conseguido a foto ou não. Torci para que a câmera não tivesse
caído também, porque teria sido o maior desperdício, sabe? Morrer
por causa do amor pela fotografia, mas sem conseguir a foto que
custou sua vida.
O
pensamento me faz rir, mas não sei se devia achar graça.— Você
sempre diz exatamente o que pensa?
Ele
dá de ombros.
— Para
a maioria das pessoas, não.
Isso
aumenta meu sorriso. Fico feliz em saber que, mesmo sem me conhecer,
por algum motivo ele não me considera a maioria das pessoas.
Ele
apoia as costas no parapeito e cruza os braços.
— Você
nasceu aqui?
Balanço
a cabeça.
— Não.
Eu me mudei do Maine depois da formatura.
Ele
enruga o nariz, o que é meio sensual. Ver esse homem — usando uma
camisa da Burberry e com um corte de cabelo de duzentos dólares —
fazendo careta.
— Então
está no purgatório de Boston, é? Deve ser péssimo.
— Como
assim? — pergunto.
Ele
retorce o canto da boca.
— Os
turistas a tratam como nativa, enquanto os nativos a tratam como uma
turista.
Rio.
— Uau!
Que descrição mais precisa.
— Estou
aqui há dois meses. Nem cheguei ao purgatório ainda, então está
se saindo melhor que eu.
— Por
que veio a Boston?
— Minha
residência. E minha irmã mora aqui. — Ele bate o pé. — Bem
aqui embaixo, na verdade. Casou com um especialista em tecnologia
daqui de Boston, e eles compraram o último andar.
Olho
para baixo.
— O
último andar inteiro?
Ele
confirma com a cabeça.
— O
filho da mãe é um sortudo que trabalha de casa. Nem precisa tirar o
pijama e ganha mais de sete dígitos por ano.
É
mesmo um filho da mãe sortudo.
— Que
tipo de residência? Você é médico?
Ele
assente.
— Neurocirurgião.
Falta menos de um ano para terminar a residência, depois disso é
oficial.
Estiloso,
eloquente e inteligente. E fuma maconha. Se fosse uma questão
do vestibular, eu perguntaria qual alternativa não combina com as
outras.
— E
médicos deviam fumar maconha?
Ele
abre um sorriso irônico.
— Provavelmente
não. Mas, se a gente não se desse esse luxo de vez em quando, juro
que o número de médicos pulando desses parapeitos seria bem maior.
[...]
Colleen
Hoover, em É assim que acaba
Nenhum comentário:
Postar um comentário