segunda-feira, 2 de setembro de 2024

É assim que acaba | Capítulo Um




Enquanto estou aqui sentada, com um pé em cada lado do parapeito, observando as ruas de Boston a doze andares abaixo, pensar em suicídio é inevitável.
Não no meu. Gosto o suficiente de minha vida para querer vivê-la.
Estou pensando em outras pessoas e em como decidem simplesmente acabar com a própria vida. Será que elas se arrependem em algum momento? No instante depois de se jogar, e no segundo antes do impacto deve haver algum remorso durante aquela breve queda livre. Será que veem o chão se aproximando depressa e pensam: Ah, que droga, que ideia péssima!
Por algum motivo, acho que não.
Penso muito na morte. Ainda mais hoje, considerando que acabei de — doze horas antes — fazer um dos discursos fúnebres mais épicos que o povo de Plethora, no Maine, já testemunhou. Tudo bem, talvez não tenha sido o mais épico, mas poderia muito bem ser o mais desastroso. Acho que depende se a pergunta for feita para mim ou para minha mãe. Minha mãe, que provavelmente vai passar um ano inteiro sem falar comigo depois de hoje.
Não me entenda mal: meu discurso fúnebre não foi tão marcante a ponto de entrar para a história, como o de Brooke Shields no funeral de Michael Jackson. Ou o da irmã de Steve Jobs. Ou o do irmão de Pat Tillman. Mas foi épico à própria maneira.
No início, fiquei nervosa. Afinal, era o funeral do extraordinário Andrew Bloom. Prefeito idolatrado de minha cidade natal: Plethora, no Maine. Dono da agência imobiliária de maior sucesso da cidade. Marido da idolatrada Jenny Bloom, a mais reverenciada professora auxiliar de toda Plethora. E pai de Lily Bloom, aquela garota estranha, de excêntrico cabelo ruivo, que certa vez se apaixonou por um mendigo e envergonhou toda a família.
Eu sou Lily Bloom, e Andrew era meu pai.
Assim que terminei o discurso fúnebre, peguei um voo para Boston e sequestrei o primeiro telhado que encontrei. Mais uma vez, não porque sou suicida. Não tenho nenhum plano de saltar deste telhado. Só precisava de ar fresco e silêncio, nada mais. Algo impossível de conseguir em meu apartamento no terceiro andar, sem acesso ao telhado, e morando com uma garota que adora se ouvir cantando.
Porém, não pensei em como estaria frio aqui em cima. Não está insuportável, mas também não está nada confortável. Pelo menos dá para ver as estrelas. Pais falecidos, irritantes colegas de apartamento e discursos fúnebres questionáveis não parecem nada mal quando o céu noturno está límpido o suficiente para, literalmente, espelhar o esplendor do universo.
Amo quando o céu me faz sentir insignificante.
Estou gostando desta noite.
Bem... vou reformular a frase para que ela reflita meus sentimentos de maneira mais apropriada, no passado.
Eu estava gostando desta noite.
Mas, para minha infelicidade, a porta foi aberta com tanta força que quase esperei ver a escada cuspir um humano no telhado. A porta se fecha novamente, e passos se movem com pressa pelo piso. Não me dou o trabalho de erguer o olhar. Seja quem for, é muito provável que nem me perceba em cima do parapeito à esquerda da porta. A pessoa saiu com tanta pressa que não será culpa minha se presumir que está sozinha.
Suspiro baixinho, fecho os olhos e encosto a cabeça na parede de estuque atrás de mim, xingando o universo por ter me tirado o momento introspectivo de paz. O mínimo que o universo pode fazer é garantir que seja uma mulher, não um homem. Se vou ter companhia, prefiro uma mulher. Sou durona para meu tamanho, e provavelmente consigo me virar sozinha na maior parte das situações, mas estou relaxada demais para ficar sozinha com um desconhecido no telhado, tarde da noite. Temo pela minha segurança e sinto que preciso ir embora, mas não queria ir. Como disse... estou relaxada.
Finalmente permito que meus olhos percorram o trajeto até a silhueta inclinada por cima do parapeito. Infelizmente, tenho certeza de que é um homem. Mesmo naquela posição, noto que é alto. Ombros largos criam grande contraste em relação à maneira frágil como ele apoia a própria cabeça nas mãos. Mal percebo o pesado subir e descer de suas costas enquanto ele inspira fundo, para exalar com força em seguida.
Parece à beira de um colapso. Considero dizer alguma coisa, ou pigarrear, para alertá-lo de que tem companhia, mas, antes que eu o faça, ele gira e chuta uma das cadeiras do terraço.
Eu me retraio quando o móvel arranha o telhado, mas, como ele não imagina ter plateia, não para com um só chute. Ele atinge a cadeira repetidamente, sem parar. E, em vez de se render sob a força bruta daquele pé, a cadeira apenas se afasta cada vez mais.
Aquela cadeira deve ser feita de polímero resistente à maresia.
Certa vez, vi meu pai atropelar uma mesa de jardim feita desse polímero: a coisa praticamente riu. O para-choque amassou, mas a mesa nem arranhou.
O cara parece notar que não é páreo para um material de tamanha qualidade porque finalmente desiste de chutar. Fica ali, perto do móvel, os punhos cerrados nas laterais do corpo. Para ser sincera, sinto um pouco de inveja. Ele desconta muito bem a raiva na mobília. É óbvio que teve um dia péssimo, assim como eu, mas enquanto guardo minha frustração até ela se manifestar de forma passivo-agressiva, ele encontra uma verdadeira válvula de escape.
Minha válvula de escape costumava ser minha horta. Sempre que eu me estressava, era só ir até o quintal e arrancar toda erva daninha que encontrasse. Porém, desde que me mudei para Boston, há dois anos, não tenho mais horta. Nem terraço. Nem sequer ervas daninhas.
Talvez eu devesse investir em uma cadeira de polímero resistente à maresia.
Fico observando o rapaz mais um pouco, e me pergunto se ele não vai se mexer. Está simplesmente parado, encarando a cadeira. Não está mais de punhos cerrados. As mãos estão apoiadas nos quadris, e percebo que sua camisa não tem um caimento bom no bíceps. Tem um caimento ótimo no restante do corpo, mas seus braços são enormes. Ele começa a remexer nos bolsos até encontrar o que está procurando, e — na provável tentativa de administrar ainda mais a raiva — acende um baseado.
Tenho 23 anos, já terminei a faculdade e usei a mesma droga recreativa uma ou duas vezes. Não vou julgar o rapaz por achar que precisa fumar sozinho. Mas é esta a questão: ele não está sozinho. Só não sabe disso ainda.
Ele dá uma longa tragada no baseado e começa a se voltar para o parapeito. Percebe minha presença ao expirar. Para de andar no instante que nossos olhares se encontram. Sua expressão não é de susto nem de humor. Ele está a uns três metros de distância, mas a luz das estrelas é suficiente para que eu enxergue seus olhos observando meu corpo sem revelar um único pensamento. Esse cara sabe esconder o jogo; estreitando os olhos e comprimindo os lábios, ele parece a versão masculina da Mona Lisa.
Como você se chama? — pergunta ele.
Sinto a voz no estômago. O que não é nada bom. As vozes deviam parar nos ouvidos, mas, às vezes — não é nada comum, na verdade —, uma voz penetra em meus ouvidos e reverbera por meu corpo. Ele tem uma dessas vozes. Grave, confiante e um pouco parecida com manteiga.
Como não respondo, ele leva o baseado à boca e dá mais uma tragada.
Lily — revelo, por fim.
Odeio minha voz. Pareceu baixa demais para chegar a seus ouvidos, ainda mais para reverberar dentro de seu corpo.
O cara ergue um pouco o queixo e aponta a cabeça para mim.
Pode descer daí, por favor, Lily?
Só quando ele pede isso percebo sua postura. Está em pé, corpo ereto, até mesmo rígido. Quase como se estivesse nervoso, achando que vou cair. Não vou. O parapeito tem no mínimo 30 centímetros de largura, e a maior parte de mim está no telhado. Seria muito fácil me segurar antes de cair, sem falar que o vento está a meu favor.
Olho para minhas pernas e, depois, para ele.
Não, obrigada. Estou bem confortável aqui.
Ele se vira um pouco, como se não conseguisse me olhar diretamente.
Por favor, desça. — Agora é mais uma ordem, apesar de ele ter dito por favor. — Tem sete cadeiras vazias aqui.
Por pouco não seis — corrijo, lembrando que ele quase assassinou uma delas.
Ele não acha graça na resposta. Como não obedeço à ordem, ele dá dois passos em minha direção.
Você está a meros 7 centímetros da morte. E ela já me fez companhia por tempo demais hoje. — Ele gesticula novamente para que eu desça. — Está me deixando nervoso. Sem falar que isso corta meu barato.
Reviro os olhos e passo as pernas por cima do parapeito.
Deus me livre desperdiçar um baseado. — Dou um pulo para descer e limpo as mãos na calça jeans. — Melhorou? — pergunto, enquanto me aproximo.
O cara expira com força, como se tivesse prendido a respiração ao me ver em cima do parapeito. Passo por ele em direção ao lado do telhado com a melhor vista e, no meio-tempo, não deixo de perceber como ele é incrivelmente bonito.
Não. Bonito é um insulto.
O cara é lindo. Tem as mãos cuidadas, cheira a dinheiro e parece ser bem mais velho que eu. Seus olhos se enrugam ao me seguir, e seus lábios parecem em bico, mesmo quando relaxados. Quando chego ao lado do prédio com vista para a rua, eu me inclino e fico olhando os carros lá embaixo, tentando não demonstrar minha admiração. Só pelo corte de cabelo já dá para perceber que esse é o tipo de homem que impressiona facilmente, e eu me recuso a alimentar seu ego. Não que tenha feito alguma coisa para me convencer de que é metido. Porém, está vestindo uma camisa casual da Burberry, e acho que nunca estive no radar de alguém com dinheiro para, casualmente, comprar uma dessas.
Escuto passos se aproximando atrás de mim, e ele se inclina na grade a meu lado. De soslaio, eu o observo dar uma tragada no baseado. Após terminar, ele o oferece, mas recuso com um gesto. A última coisa de que preciso é me drogar perto desse cara. Sua voz já é praticamente uma droga. Meio que quero ouvi-la de novo, então pergunto:
Então, o que aquela cadeira fez para te deixar tão zangado?
Ele olha para mim. Quero dizer, realmente me olha. Seus olhos encontram os meus, e ele me encara com firmeza, como se todos os meus segredos estivessem bem no rosto. Jamais vi olhos tão escuros. Talvez eu até tenha visto, porém parecem mais escuros quando associados a uma presença tão intimidante. Ele não me responde, mas minha curiosidade não é facilmente saciada. Se ele me obrigou a descer de um parapeito muito confortável e tranquilo, espero que ele me entretenha com respostas para minhas perguntas indiscretas.
Foi uma mulher? — pergunto. — Ela partiu seu coração?
Ele ri um pouco.
Quem me dera se meus problemas fossem tão triviais quanto assuntos do coração. — Ele se encosta na parede e se vira para mim. — Você mora em que andar? — Lambe os dedos e aperta a extremidade do baseado antes de guardá-lo no bolso. — Nunca te encontrei.
É porque não moro aqui. — Aponto para meu apartamento. — Está vendo aquele prédio da seguradora?
Ele semicerra as pálpebras enquanto olha na direção indicada.
Ahã.
Moro no prédio ao lado. É baixo demais para ver daqui. São só três andares.
Ele se volta para mim, apoiando o cotovelo no parapeito.
Se mora ali, por que está aqui? É o apartamento de seu namorado ou algo assim?
Por algum motivo, seu comentário faz com que me sinta fácil. Foi óbvio demais... uma cantada amadora. Pela aparência, sei que é mais habilidoso. Então fico com a impressão de que ele deixa as cantadas mais difíceis somente para as mulheres ‘merecedoras’.
Seu telhado é legal — respondo.
Ele ergue a sobrancelha, esperando que eu explique melhor.
Eu queria tomar ar fresco. Um lugar para pensar. Abri o Google Earth e encontrei o prédio com um terraço decente mais próximo.
Ele me olha sorrindo.— Pelo menos você é econômica — comenta. — Essa é uma boa qualidade.
Pelo menos?
Assinto, porque sou mesmo econômica. E essa é mesmo uma boa qualidade.
Por que estava precisando de ar fresco? — pergunta ele.
Porque enterrei meu pai hoje, fiz um discurso fúnebre epicamente desastroso e agora sinto como se não conseguisse respirar.
Eu me viro para a frente de novo, expiro lentamente.
A gente pode ficar um pouco em silêncio?
Ele parece aliviado com o pedido. Inclina-se por cima do parapeito e deixa o braço se balançar enquanto olha a rua. Ele fica assim por um instante, e eu o encaro durante todo o tempo. Provavelmente sabe que o estou observando, mas parece não se importar.
Um cara caiu daqui no mês passado — revela ele.
Eu até teria me irritado por ele ter desrespeitado meu pedido de silêncio, mas fico um pouco intrigada.
Foi acidente?
Ele dá de ombros.
Ninguém sabe. Aconteceu no fim da tarde. A esposa contou que preparava o jantar quando o marido subiu para tirar fotos do pôr do sol. Ele era fotógrafo. Acham que estava se inclinando por cima do parapeito para tirar uma foto do horizonte, e acabou escorregando.
Olho por cima do parapeito, me perguntando como alguém se coloca em uma situação com risco real de acidente, mas então me lembro de que estava sentada no parapeito do outro lado do teto há apenas alguns minutos.
Quando minha irmã me contou o que aconteceu, fiquei pensando se ele tinha conseguido a foto ou não. Torci para que a câmera não tivesse caído também, porque teria sido o maior desperdício, sabe? Morrer por causa do amor pela fotografia, mas sem conseguir a foto que custou sua vida.
O pensamento me faz rir, mas não sei se devia achar graça.— Você sempre diz exatamente o que pensa?
Ele dá de ombros.
Para a maioria das pessoas, não.
Isso aumenta meu sorriso. Fico feliz em saber que, mesmo sem me conhecer, por algum motivo ele não me considera a maioria das pessoas.
Ele apoia as costas no parapeito e cruza os braços.
Você nasceu aqui?
Balanço a cabeça.
Não. Eu me mudei do Maine depois da formatura.
Ele enruga o nariz, o que é meio sensual. Ver esse homem — usando uma camisa da Burberry e com um corte de cabelo de duzentos dólares — fazendo careta.
Então está no purgatório de Boston, é? Deve ser péssimo.
Como assim? — pergunto.
Ele retorce o canto da boca.
Os turistas a tratam como nativa, enquanto os nativos a tratam como uma turista.
Rio.
Uau! Que descrição mais precisa.
Estou aqui há dois meses. Nem cheguei ao purgatório ainda, então está se saindo melhor que eu.
Por que veio a Boston?
Minha residência. E minha irmã mora aqui. — Ele bate o pé. — Bem aqui embaixo, na verdade. Casou com um especialista em tecnologia daqui de Boston, e eles compraram o último andar.
Olho para baixo.
O último andar inteiro?
Ele confirma com a cabeça.
O filho da mãe é um sortudo que trabalha de casa. Nem precisa tirar o pijama e ganha mais de sete dígitos por ano.
É mesmo um filho da mãe sortudo.
Que tipo de residência? Você é médico?
Ele assente.
Neurocirurgião. Falta menos de um ano para terminar a residência, depois disso é oficial.
Estiloso, eloquente e inteligente. E fuma maconha. Se fosse uma questão do vestibular, eu perguntaria qual alternativa não combina com as outras.
E médicos deviam fumar maconha?
Ele abre um sorriso irônico.
Provavelmente não. Mas, se a gente não se desse esse luxo de vez em quando, juro que o número de médicos pulando desses parapeitos seria bem maior.
[...]
Colleen Hoover, em É assim que acaba

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