Quando
eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão
— contente
com minha terra,
cansado
de tanta guerra,
crescido
de coração.
Tôo.
Sucedeu
então vir o grande sujeito entrando no lugar, capiau de muito
longínquo: tirado à arreata o cavalo raposo, que mancara, apontava
de noroeste, pisando o arenoso. Seus bigodes ou a rustiquez — roupa
parda, botinões de couro de anta, chapéu toda a aba — causavam
riso e susto. Tomou fôlego, feito burro entesa orelhas, no avistar
um fiapo de povo mas a rua, imponente invenção humana. Tinha
vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de
alentar internas desordens no espírito.
Sem
jeito para acabar de chegar, se escorou a uma porta, desusado
forasteiro. Requeria, pagados, comida e pouso, com frases pálidas,
se discerniu por nome Jeremoavo. Mesmo lá era a Domenha, da pensão,
o velho deu à aldrava. Desalongou-se, porém, e — de tal sorte que
dos lados dobrava em losango as côxas e pernas de gafanhoto — se
amoleceu, sem serenar os olhos.
Lhe
acudiram, que alquebreirado tonteava, decerto pela cólica dos
viajantes. Isso lhes dava longa matéria. Senoitava. Era ali
ribanceiro arraial de nem quinhentas almas, suas pequenas casas com
os quintais de fundo e onde o rio é incontestável: um porto de
canoas, Barra da Vaca, sobre o Urucúia.
Jeremoavo,
pois quem. Em aflito caminho para nenhuma parte, aquele logradouro
dregava-se-lhe mal e tarde, as pernas lhe doendo nervosas, a cabeça
em vendaval, as ideias sacudindo-o como vômitos. Ia fazer ali pouca
parada.
Largara
para sempre os dele, parentes, traiçoeira família, em sua fazenda,
a Dã, na Chapada de Trás, com fel e veemências. Mulher e filhos,
tal ditos, contra ele achados em birba de malícias, e querendo-o
morto, que o odiavam. Sumiu-se de lá, então, em fúria, pensado.
Deixara-lhes tudo, a desdém, aos da medonha ingratidão. Só pegara
o que vale, saco e dobros do diário, as armas. Saía ao desafio com
o mundo, carecia mais do afeto de ninguém. Invés. Preferia ser o
desconhecido somenos. Quanta tristeza, quanta velhacaria...
Ah,
prestes vozes. — “O Sr. se agrada?” — era a Domenha,
dando-lhe num caneco tisanas de chá, ele estirado em catre. Também
o lugar podia ser o para a cama, mesa e cova — repouso — doce
como o apodrecer da madeira. Doeu e dormiu.
Doente
e por seguintes dias, rogava pragas das brenhas, numa candura de
delírio de com ele apiedarem-se, seria febre malignada. Tratavam-no,
e por caridade pura, a que satisfaz e ocupa. Não que desvalido: com
rolo de dinheiro e o revólver de cano de palmo. Representado homem
de bem e posses, quando por mais não fora, e a ele razão era
devida. Se’o Vanvães disse, determinou. Visitavam-no.
Melhorou,
perguntando pelo cavalo. Se perturbava, pelo já ou pelo depois, nos
mal-ficares. Suspirava, por forma breve. Domenha segurava a lamparina
— para ver-lhe os olhos raiados de vermelho — a cara na dele
quase encostada.
O
tempo era todo igual, como a carne do boi que a gente come. Sem donde
se saber, teve-se aí sobre ele a notícia. Era brabo jagunço! um
famoso, perigoso. Alguém disse.
Se
estarreceu a Barra da Vaca, fria, ficada sem conselho. Somente alto e
forte, seria um Jerê, par de Antônio Dó, homem de peleja.
Encolhido modorroso, agora, mas desfadigado podendo se desmarcar, em
qualquer repelo, tufava. Se’o Vanvães disse a Seo Astórgio, que a
Seô Abril, que a Siô Cordeiro, que a Seu Cipuca: — “Que
fazer?!” — nessas novas ocasiões. Se assentou que, por ora,
mais o honrassem.
Jeremoavo
sarara, fraco, pesava os pecados males, restado o ganho de nada
querer, um viver fora de engano. Não podia abreviar com a saída,
tinha de ir ficando naquele lugar, até às segundas ou terceiras
nuvens. Domenha olhando-o: — “Felicidade se acha é só em
horinhas de descuido...” — disse, o trestanto.
Se’o
Vanvães, dada a mão, levou-o a conhecer a Barra da Vaca — o rio
era largo, defronte — povoação desguardada, no desbravio. Seo
Astórgio convidava-o. Estimou a boa respondência, por agrado e por
respeito. Estava ali em mansão, não desfaçado ou rebaixado. Seus
filhos e a mulher, sim, isso haviam de saber, se viessem renegri-lo.
Reportou-lhe
mais a gente velha da terra, seus bons diabos, vendo como as coisas
se davam. Era o danado jagunço: por sua fortíssima opinião e
recatado rancor, ensimesmudo, sobrolhoso, sozinho sem horas a remedir
o arraial, caminhando com grandes passos. Não aluía dali, porque
patrulho espião, que esperava bando de outros, para estrepolirem.
Parecia até às vezes homem bom, sério por simpatia com
integridades. Mas de não se fiar. Em-adido que no repente podia
correr às armas, doidarro.
Jeremoavo
em fato rondava o povoado, por esse enquanto. Adiante ou para trás —
o rio lá faz muitos luares — sentia o bafo da solidão. Não se
animava a traçar do bordão e a reto ir embora, mas esbarrava, como
se para melhorar fortuna ou querer os achegos do mundo, e quebrava a
ordem das desordens. Ora se descarnava, se afrontava disso, por
decisão de homem, resolvido às redobradas. Vir a vez, ia, seguiço;
não se deve parar em meio de tristeza. Na família não pensava, nem
para condená-los de mal. — “Aqui é quase alegre...” —
no portal Domenha dizia.
Torceu
mais o espírito. Viu. Ali era o tempo, em trechos, entre a cruz e a
cantação, e contemplar vivas águas, vagaroso o rio corre com gosto
de terra. Não o podia atravessar? — no amarasmeio, encabruado,
fazendo o já feito.
Permanecia
e ameaçava. Mais o obsequiavam, os do lugar, o tom geral, em sua
espaçada precisão. Se admiravam: eles e ele — na calada da
consciência. Sendo que já para uns era por igual o velho da
galhofa. Andava pé diante de pé, como as antas andam. Os meninos
tinham medo e vontade de bulir com ele.
E
aquela aldeiazinha produziu uma ideia.
De
pescaria, à rede, furupa, a festa, assaz cachaças, com honra o
chamaram, enganaram-lhe o juízo. Jeremoavo, vai, foi. O rio era um
sol de paraíso. Tão certo. Tão bêbado, depois, logo do outro lado
o deixaram, debaixo de sombra. Tinham passado também, quietíssimo,
o cavalo raposo.
Só
de tardinha Jeremoavo espertou, com cansaços de espírito. Viu o
animal, que arreado, amarrado, seus dele dobros e saco, até garrafa
de cerveja. Entendeu, pelo que antes; palpou a barba, de incontido
brio. Não podia torcer o passo. Topava com o vento, às urtigas
aonde se mandava, cavaleiro distraído, sem noção de seu cavalo, em
direitura. Desterrado, desfamilhado — só com a alta tristeza, nos
confins da ideia — lenta como um fim de fogueira. Saudade maior
eram: a Barra, o rio, o lugar, a gente.
Lá,
os homens todos, até ao de dentro armados, três dias vigiaram, em
cerca e trincheira. Voltasse, e não seria ele mais o confuso
hóspede, mas um diabo esperado, o matavam. Veio não. Dispersou-se o
povo, pacífico. Se riam, uns dos outros, do medo geral do graúdo
estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da Domenha sincera caçoavam. Tinham
graça e saudades dele.
Deu
seca na minha vida
e
os amores me deixaram
tão
solto no cativeiro.
Das
Cantigas de Serão de João Barandão.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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