domingo, 8 de setembro de 2024

As uvas


O herói subiu pelo elevador com o velho, um a examinar o outro. Saltaram ambos no quarto andar. Ele apertou a campainha. Na porta ao lado, o velho escolhia uma chave. Nelsinho entendeu na sua careta zombeteira — Olha aí mais um...
Como vai o doutor? — cumprimentou Ivone, cerimoniosa.
Fechou a porta e sorriu:
Tratei você de doutor. Esse velhote não me deixa em paz.
Na mesa um vaso minúsculo de cacto. Espetada em areia, na haste negra luzia pontinho escarlate.
Incenso indiano, querido, para roubar teu coração!
Na janela a tarde bruxuleava. Envolto na nuvem adocicada, tossiu de leve: Ai, só me falta crise de asma.
Muito distinto!
O herói tomou-lhe as mãos e quis beijá-la, mas desviou o rosto.
Que tanta pressa! Nem me achou bonita.
Um passo atrás, que a pudesse admirar: cetim negro, três voltas do colar dourado. Boca inchada de batom. Cabelo preto retinto, olho de sombra roxa — a última encarnação de Mata Hari.
Está linda, meu bem.
A menina que escrevia bilhete no intervalo das aulas: Desta mujer que te quiere mucho, mucho, mucho! Travou das mãos, cruzou-lhe os braços nas costas:
Agora não escapa.
O herói beijou o ar, galinha cega bicando às tontas. Ela sacudiu a cabeça com gritinhos de terror.
Por que me convidou?
Falar com você.
Insistiu que estava sozinha. Não pensei que para conversar.
Cruzes! Nunca imaginei você queria isso.
Afastado na ponta dos braços:
O mesmo olhar inocente do menino. Você é inocente?
Você bem sabe — e forcejando para atraí-la, conseguiu derrubar um brinco.
Viu o que fez?
Depois eu acho.
Ai, que horror! Me solte um pouco. Que tal um cigarro?
Com dedos de ponta amarela acendeu um fósforo.
Fuma demais.
Tão aflita...
Se quer, vou embora.
Não — e segurou-lhe a mão, ainda com o fósforo. — Olhe: do lado que cair a cabeça está o meu amor.
A cabecinha negra rolou para ele.
Gosta de mim, querido? Preciso tanto de alguém. Tão só desde que a mãezinha morreu.
E teu marido?
Coitado do Vivi.
Espreguiçavam-se nos cantos as primeiras sombras da noite.
Quer umas uvinhas, querido?
Na ponta do filete ardia a brasinha — Ivone apresentou-lhe o prato com uvas geladas e um guardanapo engomado. No outro lado da mesa, o rosto em nuvem azul de fumaça. Cruzou a perna, exibiu o chinelinho de pompom vermelho.
Nervoso?
Nem um pouco.
Eu sim. Nunca enganei o Vivi. Boa a uva, não é?
Ótima. Você quer?
Já provei.
Batia o cigarro no vasinho de cacto. Ali no ombro uma pinta de beleza.
Um beijinho na tua pinta!
No estremeção de peixe arisco:
Sinto cócega. Ah, se o Vivi... Nem quero pensar!
Onde é que ele está?
Por aí.
É bom para você?
Muito. Atencioso, bem educado.
Apanhou na radiola o retrato de moldura prateada.
Se não é parecido com você. Por isso goste dele. O primeiro beijo lá na varanda?
Eu podia esquecer? — e roçou o lábio no ombro, errou a pinta. — Você era virgem?
Que pergunta.
É certo o que dizem do Vivi?
Bem que noivo diferente. Pobre de mim, chorei de alegria. Moço prendado, falava línguas.
Só beijinho de muito respeito. Uma educação inglesa. Depois você sabe. ..
Que foi que houve?
Abri de repente a porta: aos beijos com o filho do porteiro!
Aspirou o cigarro ao ponto de recolher as bochechas.
Simpático teu apartamento.
Quer conhecer?
Ivone indicou a cozinha. Abriu a porta do quarto:
Desculpe a desarrumação.
O quarto em perfeita ordem, duas camas de solteiro. Desta vez conseguiu beijá-la, sem que retribuísse.
Espere. Limpar os lábios.
Mais um beijinho.
Não quero manchar tua camisa.
Apanhou lenço de papel sobre a penteadeira.
Ele observou as costas até achar a pinta — agora deixá-la nuazinha. Junto da cama, a lâmpada no garrafão azul.
Muito original.
Olhando-o pelo espelho:
Não é mesmo?
Voltou-se: rubros como antes, grossos de batom. Ele começou a beijar-lhe o pescoço, uma veia pulsava forte. Correu os dedos, esquecidos na nádega — louco por vestido com botão.
Como é que é?
O que, meu bem?
A gente tira?
Que pressa, cruzes! — o biquinho de contrariedade. — Conversar um pouco.
Tenha paciência, filha. Não é hora.
Aborrecida, afastou-se dois passos:
Está bem. Tire a roupa.
Sacou o vestido pela cabeça, tanta prática que nem se despenteou. Ele tirou o paletó.
Um cabide?
Penduro aqui mesmo.
De costas, jogou a calça ao pé da cama. Virou-se e o que viu? Ela de sutiã, anágua, chinelinho de pompom. Em cueca, nosso herói investiu. Ergueu a saia, surpreendeu a coxa no espelho — a matrona é avó torta da donzela. Para se consolar, fechou o olho e fungou-lhe no pescoço. Repelão violento o fez cambalear:
Que é? Que foi?
Espere um pouco.
Acendeu o cigarro, apanhou no guarda-roupa uma toalha, que estendeu sobre a colcha encarnada.
Nelsinho despiu a cueca, apenas de camisa e sapato. Ela o encarou e, a mão atrás, abriu o sutiã: horrendo peito flácido. Excitadíssimo ao vê-la tirar a calcinha, só de anágua. Que se debateu aflita:
E o brinco?
Que brinco? Ah, depois eu acho.
Como é apressado, que horror! Vou lavar as mãos.
Agora não. Depois.
Tem de ser já.
Sem se confessar deprimido, o herói exibiu-se no espelho, admirou as suas graças. De frente e de perfil, erguendo a aba da camisa — grande cadela, deixa estar, ela me paga!
Ivone saiu do banheiro, soltou a anágua, pisou sobre ela — nua, cigarro na boca! Desviou-se mais uma vez do abraço:
Não tira o sapato?
Foi sentar-se na cama, acendeu novo cigarro na brasa do outro.
Nelsinho livrou-se do sapato. Trêmulo, beijava-lhe o braço, o pescoço, a orelha — lembra-se, querida, a noite na varanda?
Cuidado. Eu te queimo.
Fumava sem pressa, a boca feroz, olho no teto.
Sossega, meu bem. Olha a cinza na colcha.
Ergueu-se no cotovelo, amassou o cigarro no cinzeiro. De repente envolveu-o num abraço apertado. Sem explicação, deitou a gemer alto: Ai, ai, ai! Empurrou-o, sacudiu a cabeça:
Bonito o teu olho esquerdo!
Agarrou-o com violência, entre ais lancinantes. O rosto afundado no cabelo, Nelsinho espirrou duas vezes.
Que foi, bem? Resfriou?
A velha asma.
Sem aviso, a defender-se com unha e cotovelo:
Me machucando. Trocar de posição. Mais para baixo. De mau jeito. Não desmanche o penteado.
Ele seguia as instruções, frustrado e miserável. Ivone enlaçou-lhe o pescoço e beijou-o, a gemer fora de tom. No meio do beijo, estremeceu a pálpebra, aos poucos abrindo o olho. Fixou-o no fundo da pupila, franziu a testa. Nelsinho começou a resfolegar, lavado de suor frio.
Nervoso, bem? — melíflua, suspirou a bela.
Em desespero, fechando o olho, tornou a beijá-la: boca escarninha, cheia de dentes. Fio de baba escorreu no queixo, ela desviou o rosto:
Incomodou-se hoje, não foi?
Inibido pela expressão de censura, o sulco na testa acusadora, ainda pediu:
Me beije, querida.
Não fique nervoso. Já passa.
Você é que sabe — a voz sumida.
Isso acontece.
Na separação dos corpos suados um estalo obsceno. Nelsinho deixou-se rolar de costas.
Pois é. Acontece a qualquer um — com amargura medonha na alma.
Bem quietinho — as palavras untuosas de doçura. — Como eu e meu marido.
Compassiva, afofou o travesseiro, que descansasse a cabeça. Alcançou lencinho na gaveta, enxugou-lhe a testa em agonia. Dois cigarros na boca, acendeu-os, estendeu-lhe um.
Primeira vez? — a menina inocente na varanda.
Não queria conversa, preocupado em não se distrair.
Nunca me aconteceu.
Será que das uvas? — os seios sacolejando com o risinho de pouco caso.
Se a gente ficasse de pé?
De pé, não deu resultado: a visão medonha da nádega no espelho. Depois, sentados. E deitados retomaram os cigarros. Nelsinho de costas, ela apoiada no cotovelo, a soprar-lhe a fumaça no olho. Com a mão livre, Ivone ofereceu entre o indicador e o polegar o seio opulento; sem entusiasmo, ele sorveu o leite mais triste. O coração pulsava no travesseiro e rangia no colchão. Tornou o suor a escorrer-lhe da testa.
Igualzinho ao Vivi.
Ivone aspirou fundo, soprou deliciada pelo nariz: uma vez com um homem. Abordada na rua. Na própria lua-de-mel. Nunca soube quem era. Em vez de indignar-se, recolheu-o no apartamento. Tristonho, Nelsinho observava o desejo afoguear-lhe as faces, rouca de perturbação. Engoliu em seco: esmagou a boca de beijos, com receio de que o empurrasse para rematar a frase. Entreabriu o olho a gozar o triunfo, notou a ruga incrédula na testa. Ai dele! a exaltação gloriosa esvaiu-se em derrota sem remédio.
Não se canse tanto, meu bem. Pode ter uma coisa!
Concluiu em sossego a história, na verdade muito interessante.
Com calor? Que abra a janela?
Fique quieta. — E com humildade. — Não sei o que... A primeira vez.
Meu maridinho é bem assim.
A vez do herói acender os cigarros. No silêncio, choro de criança no apartamento vizinho, um relógio ao longe deu as horas. Último clarão do crepúsculo na janela. Chegou até ele a fragrância enjoativa do incenso: Deus, ó Deus, por que não morri de asma aos cinco anos?
Ivone saltou da cama, os peitos bamboleantes, foi apanhar um fósforo na sala. Voltou com o pratinho:
Não quer acabar as uvas?
Deitado, beliscou dois e três grãos. Chupou o sumo, devolveu a casca ao prato. Apanhou outro bago. Tão desconsolado, em vez de cuspir, engoliu a semente e a casca.

Dalton Trevisan, em O Vampiro de Curitiba

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