E
se as unhas roessem os meninos?
Estória
imemorada.
Esse
problema era possível. Teresinho inquietou-se, trás orelha
saltando-lhe pulga irritante. Via espaçarem-se, e menos meigas, as
cartas da nôiva, Zidica, ameninhamente ficada em São Luís. As
mulheres, sóis de enganos... Teresinho clamou, queixou-se — já as
coisas rabiscavam-se. Ele queria a profusão. Desamor, enfado,
inconstância, de tudo culpava a ela, que não estava mais em seu
conhecer. Tremefez-se de perdê-la.
Embora,
em lógico rigor, motivo para tanto não houvesse ou houvesse, andara
da incerteza à ânsia, num dolorir-se, voluntário da insônia. Até
bebeu; só não sendo a situaçãozinha solúvel no álcool. Amava-a
com toda a fraqueza de seu coração. Saiu-se para providência.
A
de que se lembrou: novena, heroica. Devia, cada manhã, em igreja,
acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o mesmo, santo — que
não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O método moveria
Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia — dedo no botão, mão
na manivela — segurando-lhe com Zidica o futuro.
Sem
pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém
afirmadamente, pio, tiriteso. Entrava nessa fé, como o grande
arcanjo Miguel revoa três vezes na Bíblia. Havia-de.
Ia
conseguindo, e reanimava-se; nada pula mais que a esperança. Difícil
— pueris humanos somos — era não olhar nem conhecer o seu Santo.
Na hora, sim, pensava em Zidica; vezes, outrossim, pensasse um
risquinho em Dlena.
No
terceiro dia, retombou, entretanto, coração em farpa de seta,
odiando janelas e paredes. São Luís não lhe mandara carta. Quem
sabe, cismou, vela e ajoelhar-se, só, não dessem — razoável
sendo também uma demão, ajudar com o agir, aliar recursos? Deus é
curvo e lento. E ocorreu-lhe Dlena.
Tão
recente e inteligente, de olhos de gata, amiga, toda convidatividade,
a moça esvoaçadora. Ela mesma, lindo modo, de início picara-lhe em
Z a dúvida, mas pondo-se para conselhos — disso Teresinho quase se
recordava. Realegrou-se, em imo, coração de fibra longa. Veio
vê-la.
Dlena
o acolheu, com tacto fino de aranha em jejum. Seu sorriso era um
prólogo. E a estória pegou psicologia.
Teresinho
— todos gostariam de narrar sua vida a um anjo — seus embaraços
mentais. Dlena ouviu-o. Instruiu-o. — “Mulheres?
Desprezo...” — muxoxo; ela isso dizia tão
enxuto. Ela e cujo encanto.
Ele,
dócil à sua graça, em plástico estado de suspenso, como um bicho
inclina o ouvido. Apaziguavam-no seus olhos-paisagem. Sim, o que
devia, e ora: não censuras e mágoas perturbadas, nenhum afligir-se,
de gato sob pata, mas aguentar tempo, pagar na moeda! Descarregado
das más suspeitas, já cienciado: dos poros da pele às cavidades do
coração. Foi saindo do doendo.
Prosseguia
na novena — ao infalir de Deus, por Santo incógnito; seguido,
porém, o de Dlena, de cor — o que recordava, fonográfico. A
Zidica, enviou curta carta, sem parte emotiva, traída a brasa do
amor, entrouxada em muita palha. Voltava a Dlena, tanto quanto e
tanto, caminhando sutilmente. Reenchia-se a lua, por aqueles dias.
Mostrou-lhe
as de Zidica, após e pois. Simplórias simples cartinhas, reles
ternas. Dlena, aliás, nelas leve notava as gentis faltas de
gramática. Tinha ela olhos que nem seriam mesmo verdes, caso
houvesse nome para outra igual e mais bela cor. Seu parecer
provava-se sagaz tática, não há como Deus, d’ora-em-ora. Seu
picadinho de conversa, razões para depois-de-amanhã.
Sentados
os dois, ombro com ombro, a fim de arredondados suspiros ou vontade
de suspirar. Ternura sem tentativa — fraternura. Teresinho se
embriagando miudinho, feliz feito caranguejo na umidade, aos eflúvios
dessa emoção. Seu coração e cabeça pensavam coisas diversas.
Valia
divertir-se, furtar o tempo ao tormento — apud Dlena. Foram, a
abrandar o caso, a festa e cinema. Num muito mais; prorrogavam-se.
Teresinho, repartido, fino modo, que mais um escorpião em pica em
sua consciência. Zidica bordando o enxoval... Zidica, a doçura
insípida da boa água, produtora de esperanças... Tão quieto, São
Luís, tão certo... Seu coração batia como uma doença, ele tinha
medo.
Não
iam desnamorar-se! A vida, vem se encaminhava. A novena
completara-se, a derradeira vela, ele genuflexo. Fez o que pôde com
aquele pensamento.
Ou
começava a interrogar-se, desestruturando-se sua defesa. Frescura,
quase felicidade; e espinhos perseverantes. Ideia tonta pousou nele.
Tornou à igreja, espiou enfim o Santo, data vênia. Mal e nada no
escuro viu, santo muda muito de figura.
Veio
a Dlena — a seu suavizamento — com o coração na mão, algemada;
caiu-lhe a alma aos pés dela. Apalpou os bolsos, contradesfeito. De
Zidica, a última carta, esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe
espirrar. Do nada, nada obteve.
Tudo,
quanto há, é saudade, alternando-se com novidades: diagrama
matemático, em calor de laboratório. O diabo não é inteiro nem
invento. Teresinho desconjurava-se, imaginava-se chorando morno, por
fechado desespero. Zidica — desconversas escrevera, volúvel, vaga?
Correu
ele a Dlena, ao súbito último ato, açorado, asas nos sapatos. De
fato. O Santo não lhe valera.
Dlena,
ei-la — jeitinho, sorrisinho, dolo — estampada no vestido,
amarelo com malhas castanho-vermelhas. Foi ela quem abriu o envelope;
o iá-iá-iá de rir — riu de modo desusado. Mas franziu-se, então
que então.
Ela
era: seus olhos sem cinzas, rancordiosa. A carta rasgou,
desfaçava-se. — “Viva, esta!” — voz de festa; o que
maldisse. Soou, e fez-se silepse.
Teresinho
recuou, de surpresa, susto, queimados os dedos. Seu coração se
empacotou. Decidiu-se, de vez, de ombros, não preso. Ali algo se
apagava. Dlena, ente. Nada disse, e disse mal. Só o que doeu:
sorriso do amarelo mais belo. Teresinho arredou olhos.
Saiu-se
— e tardara — de lá, dela, de vê-la. Voou para Zidica, a São
Luís, em mês se casaram.
Foram
infelizes e felizes, misturadamente.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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