Não
é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor
não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu
cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para
que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos
Deus. E o que precisamos d’Ele extraímos. (Não sei o que se chama
Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de
Deus, é porque precisamos pouco: só temos d’Ele o que fatalmente
nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (A nostalgia não é
do Deus que nos falte, é nostalgia de nós mesmos que não somos
bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível – meu futuro
inalcançável é meu paraíso perdido.) Sofremos por ter tão pouca
fome, embora nossa pouca fome já dê para sentirmos uma profunda
falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a
gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde
vão os olhos e sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais
Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos. E Ele deixa.
(Ele não nasceu para nós, nem nós nascemos para Ele, nós e Ele
somos ao mesmo tempo.) Ele está ininterruptamente ocupado em ser,
assim como todas as coisas estão sendo, mas não impede que a gente
se junte a Ele e, com Ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão
fluida e constante – como a de viver. Ele, por exemplo, Ele nos usa
totalmente porque não há nada em cada um de nós de que Ele, cuja
necessidade é absolutamente infinita, não precise. Ele nos usa, e
não impede que a gente faça uso d’Ele. O minério que está na
terra não é responsável por não ser usado. Nós somos muito
atrasados, e não temos ideia de como se aproveita Deus numa
intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite
se bebe. Daí a alguns séculos ou daí a alguns minutos talvez
digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! quem esteve pouco
fui eu – assim como diríamos do petróleo que finalmente precisou
a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia
lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está.
(Certamente ainda não precisamos não morrer de câncer.) Tudo está.
(Talvez seres de um outro planeta já saibam das coisas, e vivam numa
intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, isso seria
“santidade” e atrapalharia completamente a nossa vida.)
O
leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de
violência. (Na vida e na morte tudo é lícito.) Com Deus a gente
também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa
mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta. Só
que minha violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho
que me violentar para precisar mais. Para que eu me torne tão
desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada. Assim terei
tocado na raiz do precisar. O grande vazio em mim será o meu lugar
de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que
me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu
precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a
quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é minha
medida. – Também se pode violentar Deus diretamente, através de
um amor cheio de raiva. E Ele compreenderá que essa nossa avidez
colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada e vital,
a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de
comer mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa
fome – na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e
o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter
o essencial. – Mas, já que somos pouco e portanto só precisamos
de pouco, por que então não nos basta o pouco? É que adivinhamos o
prazer. Como cegos que tateiam, nós pressentimos o intenso prazer de
viver. E se pressentimos, é também porque nós nos sentimos
inquietantemente usados por Deus, sentimos inquietantemente que
estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto – aliás
a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos
usados, não somos inúteis, somos intensamente aproveitados por
Deus; corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o
êxtase de alguém. Inquietos sentimos que estamos sendo usados a
cada instante – mas isso acorda em nós o inquietante desejo de
também usar. E Ele não só deixa, como necessita ser usado, ser
usado é um modo de ser compreendido. (Em todas as religiões Deus
exige ser amado.) Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é
sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre
um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que
se sente agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação
do amor é uma revelação de carência – bem-aventurados os pobres
de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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