quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Não Estou Preparado

Sou do tempo em que (aliás, sou do tempo de qualquer coisa antiga em que vocês pensem aí, venho descobrindo isto cada vez mais rápido) gordura e barriga eram vistas de maneira muito diversa da de hoje. O gordo era forte e, se bem que as tetéias (ou peixões, ou uvas, ou sereias ou tantas outras gírias que já designaram as boazudas) não fossem gordas, magrinhas como as que hoje estão na moda não fariam muito sucesso. Mulher tinha de ter carne e, preferivelmente, seguir o modelo violão.
Jejuo em competência para falar no assunto, pois, ai de mim, nunca passei da marca de amador esforçado, nesse como em tantos outros terrenos. Mas, como acredito haver companheiros ou colegas meus entre vocês, bem como curiosos que queiram saber como se passa a vida na hoje chamada — xingo o primeiro que usar essa expressão em relação a mim — “bela idade”, continuo um violonista convicto, como continuam os de minha faixa etária, na sondagem informal que vivo fazendo. Parece haver qualquer coisa na malhação de hoje em dia que não deixa a cintura afinar, ou então estreita os quadris. Aí o tronco da mulher erecta (é só da mulher que estou falando), silhuetado, parece um retângulo sem graça e sem mistério. O fato é que a mulher violão legítima, padrão nacional, está em desuso, ostracismo mesmo, mais uma vítima da globalização, mais uma sombra que gradualmente se esvai no passado e que, no futuro, todo mundo talvez esqueça que existiu.
Conversa de velho, dirão as que porventura se sentirem atingidas. Certo, certo, mas nem por isso menos verdadeira. Aliás, pelo contrário, ainda mais verdadeira exatamente por isso, porque traz em si, entre as mentiras que contou e experiências reais que sua memória hoje enevoada já não distingue, a experiência do velho, tanto assim que reza antigo provérbio árabe que “quem não tem um velho que procure comprar um”. Que é que vocês estão pensando? Tem muito velho por aí em melhor forma do que a maioria dessa juventude criada com hambúrgueres e pizzas. A velhice está na cabeça etc. etc.
Bem, chega de mentiras que mal consolam e reconheço que as linhas acima foram um nariz-de-cera, embora sem querer. Eu ando tendo uns ataques de aparente demência senil e aí começo a querer repetir essas bobagens, fazendo força para acreditar nelas. Tenho mais é que seguir os conselhos de Zecamunista, lá de Itaparica, que já passou dos setenta e me falou de sobrolho severamente franzido, no bar de Espanha.
Não importa o que lhe digam — sentenciou ele —, idade só ensina uma coisa básica, uma única coisa: idade é uma merda. E, quanto mais velho você fica, mais isso se radicaliza. Eu tenho a impressão de que, se por um acaso, o sujeito envelhecesse até uns duzentos anos, cheio de achaques, claro, mas vivo, só diria isso. Sintetiza toda a sabedoria acumulada pela raça humana ao longo de milênios, tudo pode ser resumido nela. Se eu fosse Jorge Luís Borges, escrevia uma história sobre isso. Eu, que só tenho setenta, já estou compreendendo isso, quanto mais um cara de 200 anos. A idade só leva vantagem sobre a alternativa, que também é uma merda. Enfim, somado tal com qual, isso menos aquilo, noves fora lá e cá, tudo junto é uma merda só. Aliás, o merdismo, como podemos chamar essa nova visão filosófica...
Felizmente Zecamunista é um orador que facilmente entra em transporte espiritual e, quando nesse estado, não vê nada ou ninguém em torno, de maneira que pude sair sem ter que assinar a ata de fundação da primeira academia merdologista do Brasil, que é bem capaz de ele ter fundado, lá em Itaparica. E novamente, já um tanto envergonhado dos colegas de profissão e pouco tendo para explicar ao editor, reconheço que, nas linhas acima, só fiz encompridar o nariz-de-cera. Chega disso, não preciso desses recursos baratos, só entrei nessas para ajudar os professores de jornalismo a mostrar a seus alunos o que é um nariz-de-cera, eu faço qualquer coisa pela educação da juventude.
Mas, sim, chega disso. Meu assunto é bem outro. É que, no meu tempo, havia, em certas damas, declarada admiração por barrigas masculinas. Nos rapazes tipo esses moços, pobres moços, ninguém achava nada demais uma barriguinha e, ao contrário, havia alguns barrigudos na faculdade que faziam enorme sucesso com as mulheres, em época na qual fazer sucesso com as mulheres dava muito mais trabalho do que hoje. E, para homens bem estabelecidos na vida, já mais maduros, acho que até a falta de barriga era notada. Um comendador sem barriga era incogitável, o mesmo podendo ser dito de um amante rico. Até nas caricaturas isso era retratado.
Não estava, pois, preparado para o que vem aí. A malha médica, que fecha seu implacável cerco cada vez mais assiduamente, a ponto de eu descobrir todo dia um órgão novo que não sabia que tinha, deu para fazer umas reuniões confabulatórias até com minha família e, repentinamente, minha barriga surgiu. Quer dizer, ela estava aí mesmo, onde se encontra no momento, mas na dela, procurando, acho eu, passar tão despercebida quanto possível.
Me mediram todo, me pesaram todo, trocaram mensagens cifradas e, enfim, resolveram que minha barriga é a responsável por tudo o que me aflige e aflige a família e amigos próximos. Eu nunca tinha sabido que pular a marca dos não sei quantos centímetros de barriga era capaz de causar tanta doença. Diabetes é inevitável, assim como uns dois infartos por semestre. Suspeito até que fiquei careca por causa da barriga. Vou ter de passar fome. Já comecei, aliás. A doutora me consolou, explicou que não era tão mau assim e ia até ter efeitos positivos na minha percepção do universo feminino. Como assim, o sofrimento para manter a boa forma? Han-han, disse ela, TPM mesmo.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

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