terça-feira, 20 de agosto de 2024

Boas Entradas num Boteco do Leblon

E aí, tudo bem na passagem de ano?
Tudo bem, na maior tranquilidade, gostei muito dos fogos.
Tranquilidade? Tu chama aquilo de tranquilidade? Onde é que você foi?
Lugar nenhum, fiquei em casa. Tranquilidade. Segurança contratado pelo condomínio, porteiro treinado, tevezinha malocada no elevador e em cada andar e tevezão em casa. Umas garrafinhas de champanhe pro pessoal mais fresco, uma garrafa de uísque pra mim, melhor programa não pode haver.
Ah, em casa, malandro? Não tem nada a ver, tu tinha era que estar lá pessoalmente.
Otário. Papo de otário. Otário e reacionário.
Otário? Otário e reacionário? Otário e reacionário é quem fica em casa, podendo curtir a beleza do espetáculo ao vivo, é um dos privilégios de morar no Rio de Janeiro.
Otário e reacionário. Só não digo burro porque te conheço e sei que tu não é burro. Otário e reacionário. É como jogo pela tevê. Claro que se vê o jogo pela tevê muito melhor que no estádio. E mais barato. Cada um traz sua caixinha de cerveja, morre nuns cinco paus para a vaquinha do sinal da tevê e assiste tudo sem se preocupar com bala perdida ou torcida assassina. Otário e reacionário é o que você é. Não digo bem reacionário, digo retrógrado. Pronto, retrógrado, defasado com seu tempo.
Desculpe, mas no caso eu acho que otário é você.
Olha aqui, não vamos discutir, porque tu vai se dar mal e eu prezo muito tua amizade pra querer te melindrar. Mas eu, podendo assistir tudo no conforto e na segurança de minha casa, numa zorra de um telão que eu comprei e não me arrependo, foi a melhor coisa que eu já fiz, eu, podendo estar aqui na maior, sem preocupação, vou pra rua, ser figurante gratuito da tevê? Porque isso é o que vocês são, figurantes gratuitos das tevês. Elas vão lá e ainda chamam você de galera, eu não suporto que me chamem de galera. “Olha lá a galera aplaudindo os fogos”, não sei o quê. Isso não tá com nada, cara, o futuro já chegou e é diferente. Burrice sair de casa, o Rio está se constituindo numa experiência do futuro. O Rio e São Paulo e acho que tem outras cidades brasileiras no mesmo caminho, a tendência natural do futuro é essa. Eu sou muito otimista, acho que a informática e as comunicações vão resolver tudo, inclusive o problema das drogas. Nosso conceito de cidade está ultrapassado, nós precisamos acabar de equacionar a cidade do futuro, é só ver as possibilidades. Por exemplo, quem precisa sair de casa?
Você acha que o sujeito não deve sair de casa?
O mínimo possível. Não precisa.
Quer dizer que, por exemplo, acabam as visitas e os papos, acabam os restaurantes?
Aí é que eu digo que tu é retrógrado. Tu não já leu nos jornais, não? Está desaparecendo o restaurante, agora o sujeito recebe tudo em casa e, se quiser, muitos restaurantes oferecem o mesmo serviço, com garçom e tudo. O restaurante que não se adaptar pode ficar lá desertinho a noite toda, que ninguém mais vai ser maluco de sair de noite, a cidade do futuro é outra, te situa, cara.
Quer dizer que tu acha que agora, por exemplo, pra conversar com os amigos o sujeito vai ter que promover reuniões em casa. Por aí já se vê que tua tese é furada. Pra fazer reunião em casa é preciso que os outros participantes saiam das suas. Portanto, alguém sai de casa. Esquema furado.
Desculpe, mas você não está confirmando tua inteligência. Ninguém precisa sair de casa. Tu sabe meu telão? Se eu quiser, eu ligo ele no meu computador e, com uma webcam instalada, converso com dois ou três amigos ao mesmo tempo, até as famílias inteiras, sem sair de casa. Sacou?
Mas isso é uma maluquice. Quer dizer que acha que...
Maluquice é a sua, que não vê que a realidade é outra. Tu manja o Skype?
Eu sei, é um programa de computador pro camarada falar.
E de graça! E é um programa que ainda pode ser considerado primitivo, ainda vai melhorar muito. Pois outro dia, o Lustosa, a mulher dele e o filho mais velho e o Lafayette, aquele coroa baiano que imita Dorival Caymmi, todo mundo ficou conversando pelo Skype horas, como se estivessem aqui na sala. É só botar umas boas caixas de som, um bom microfone e a reunião está pronta, com muito mais conforto e sem precisar sair de casa, dá até para fazer degustação de vinhos, cada qual com sua garrafinha em casa.
Que horror, eu acho isso o fim.
É o que eu digo: reacionário, não vê que os tempos são outros. Agora a gente pode dar até uma festa assim. Tenho certeza de que daqui a no máximo uns cinco anos, quando o cara quiser dar uma festa, é só combinar ligar os computadores e os telões e todo mundo participa da festa, sem precisar botar os pés fora de casa. Não, tu tá por fora. Reacionário, retrógrado, pessimista. Tudo vai melhorar, vá por mim. Até o país como um todo vai melhorar.
Como é que tu sabe?
O Homem garantiu, tu não viu, não? E, quando ele garante, tu sabe como é, ele faz. O futuro é belo, cara, tu é reacionário.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

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