8.
Professor,
anteontem fiquei tão agitado numa briga com Leoazinha que meu nariz
começou a sangrar, até sujou o papel de carta. Hoje sinto uma
dorzinha de cabeça, mas isso não me impede de continuar este
relato. Para escrever um roteiro de teatro, é preciso pensar em cada
palavra, uma carta já não exige tanto. Para escrever uma carta,
basta saber um punhado de caracteres e ter algo a dizer. Quando minha
falecida esposa Wang Renmei me escrevia, ela fazia desenhos no lugar
dos caracteres que não sabia escrever. E se desculpava: “Corre
Corre, como não tenho muita instrução, só me resta desenhar”.
“Seu nível de instrução é muito alto”, eu dizia. “Você
desenha para se expressar, e com isso cria novos ideogramas!” “Vou
te dar um filho, Corre Corre”, lembrava ela, “vamos fazer um
filho…”
Professor,
depois de ouvir o Cabecinha Chata da jangada, cheguei trêmulo a uma
conclusão angustiante: Leoazinha, obcecada por ter uma criança,
pegou meus pequenos girinos e inseminou no corpo de alguma moça
desfigurada. Passou por minha cabeça a visão de um grupo de
“girinos” rodeando um óvulo, parecida com algo que tinha visto
na infância: vários girinos atacando um pãozinho encharcado numa
lagoa quase seca perto da aldeia. E a moça desfigurada que
engravidara do meu bebê não era outra senão Chen Sobrancelha,
filha do meu antigo colega de escola Chen Nariz. Em seu ventre
crescia meu filho.
Corri
apressado até o ranário. No caminho, tenho a impressão de que
várias pessoas me cumprimentaram, mas não me lembro de nenhuma
delas. Por entre as barras reluzentes do portão elétrico, mais uma
vez vi aquela ameaçadora estátua de rã-touro. Fiquei arrepiado,
era como se sentisse na pele, mas na verdade apenas me lembrava de
seu olhar frio, viscoso, mal-intencionado. Em frente ao pequeno
prédio branco, seis moças em roupas coloridas saltitavam agitando
guirlandas de flores nas mãos; ao lado delas, sentado numa cadeira,
um homem fazia o acordeão gemer. Deviam estar ensaiando algum
número. Era um dia tranquilo, de sol e brisa, nada tinha acontecido.
Talvez fosse tudo imaginação minha. Seria melhor eu achar um lugar
para me sentar e pensar seriamente em minha peça de teatro.
“Enquanto
nada acontece, seja medroso como um rato; mas quando algo acontecer,
fique valente como um tigre.” “Se não é desgraça, é
felicidade; mas se é desgraça, não há como fugir.” Foi o que
meu pai me ensinou. Gente velha adora provérbios. A lembrança
daquelas palavras me fez sentir fome. Já tenho cinquenta e cinco
anos. Não ouso me chamar de velho enquanto ainda tenho pai e irmãos,
mas já sou um sol que passou do meio-dia e desliza rápido para a
montanha do oeste. Uma pessoa em ocaso, um homem que se aposentou
antes do tempo e comprou um apartamento em sua terra natal para
curtir a velhice não tem nada a temer. Pensar nisso me deu ainda
mais fome.
Entrei
no Dom Quixote, o pequeno restaurante que ficava no lado direito da
praça do templo. Desde que Leoazinha começou a trabalhar no
ranário, tornei-me um cliente assíduo. Sentei-me na mesa ao lado da
janela. O restaurante tinha pouco movimento e aquele lugar passou a
ser quase exclusivamente meu. O garçom baixinho e gordo se
aproximou. Professor, sempre que me sento naquela mesa e olho para a
cadeira vazia à minha frente, sonho que um dia o senhor estará
sentado ali para discutir comigo sobre essa obra teatral de parto tão
difícil — um sorriso largo se abria no rosto oleoso do garçom,
mas sempre vi uma expressão esquisita por trás daquele sorriso.
Deve ser a expressão de Sancho Pança em Dom Quixote, meio travesso,
meio malicioso, ao mesmo tempo zombador e zombado, não sei se me
agrada ou se me aborrece. A mesa era feita de tília bem grossa, sem
nenhum verniz. A madeira tinha os veios bem nítidos e umas marcas de
cigarro. Sempre escrevo nessa mesa. Quem sabe no futuro, quando minha
obra for um grande sucesso, essa mesa será um patrimônio cultural.
Então, para beber nela será preciso pagar uma taxa extra. Se o
senhor tivesse se sentado à minha frente, seria ainda mais
concorrida! Desculpe, como escritor, sempre gosto de usar essa
fantasia presunçosa para me estimular a escrever…
“Professor”,
o garçom fez menção de se curvar, mas não se curvou. Ele me
disse: “Salve! Seja bem-vindo. O fiel escudeiro do grande cavaleiro
está ao seu dispor”. Dizendo isso, me passou um cardápio escrito
em dez idiomas.
“Obrigado”,
respondi. “O de sempre: uma salada Margarita, uma porção de
guisado à Viuvinha Antônia e uma cerveja preta Tio Marico.”
Ele
saiu balançando a bunda como um pato balofo. Enquanto esperava meu
prato, examinei a decoração e os adornos da sala: na parede estavam
penduradas armaduras e lanças enferrujadas, a luva rasgada no duelo
com o rival no amor, certificados e medalhas que marcavam méritos
gloriosos e façanhas imortais, uma cabeça de veado bem realista,
dois espécimes de faisão com plumagem esplêndida e várias fotos
amareladas. O estilo era um arremedo do clássico europeu, mas
parecia bem interessante. À direita da entrada havia a estátua de
bronze de uma jovem em tamanho natural, com seios reluzentes de tanto
passarem a mão. Prestei bastante atenção: cada um que entrava no
restaurante, fosse homem ou mulher, invariavelmente passava a mão
naqueles peitos. A praça do templo estava em perpétua movimentação,
o pregão de Wang Fígado sobressaía animado como sempre.
Recentemente haviam lançado um programa chamado “O qilin
que traz bebês”, disseram ser uma retomada da tradição, mas na
verdade era invenção de alguns funcionários do Centro Cultural do
Município — um programa insípido, amorfo, que, no entanto,
resolveu o problema de emprego de dezenas de pessoas e por isso foi
uma coisa boa. Além do mais, professor, como o senhor mesmo disse, o
que chamamos de tradição um dia, lá na origem, foi arte de
vanguarda. Vi muitos programas semelhantes na televisão, basicamente
uma misturada de tradição, modernidade, turismo e cultura, tudo
muito animado, sonoro, cintilante, cheio de recursos, radiante,
enriquecedor. Justamente como o senhor se preocupava: enquanto num
lugar tiros cruzam o céu e cadáveres cobrem o chão; noutro há
música, dança, neon e festas intermináveis. É esse o mundo onde
convivemos. Se existisse um gigante de proporções tais que nosso
planeta lhe parecesse uma bola de futebol, ele estaria sentado
olhando a Terra girar sem parar, ora paz, ora guerra, ora banquete,
ora fome, ora seca, ora enchente… Não sei o que ele pensaria sobre
isso. Desculpe, professor, estou divagando outra vez.
O
pseudo-Sancho trouxe um copo de água gelada, um pratinho com pão,
um pedaço de manteiga e um molho feito de azeite, alho e shoyu. O
pão deles é muito bom. Quem já comeu pão estrangeiro sabe que o
pão daqui é muito bom. Comer esse pão com molho já é uma
delícia, para não falar do maravilhoso prato e a sopa que vieram
depois. Professor, o senhor precisa jantar aqui uma vez, garanto que
vai gostar de tudo. Além disso há uma tradição nesse restaurante
— na verdade, mais uma “regra” do que uma “tradição”:
toda noite, antes de fechar, eles colocam os pães assados no dia,
compridos e redondos, pretos e brancos, grossos e finos, numa cesta
de vime na mesa da saída, e deixam os clientes levarem à vontade.
Não há aviso mandando cada um levar apenas um pão, mas todo mundo
faz isso conscientemente. Vai debaixo do braço ou no colo, o pão
comprido ou quadrado, macio ou crocante, espalhando um aroma
agradável, de trigo, de linhaça, de amêndoa ou de fermento.
Passear à noite na praça do Templo Niangniang segurando um pão
fresco é, para mim, uma emoção sem tamanho. Mas estou ciente de
que isso é um luxo, porque sei muito bem que neste mundo ainda há
tantos vivendo sem roupa que os cubra, sem comida que os sustente, e
mais outros tantos lutando contra a morte.
A
salada Margarita tinha alface, tomate e endívias, estava uma
delícia. Quem será que deu a esse prato um nome que faz sonhar com
a Europa Ocidental? Certamente foi Li Mão, meu colega de escola
primária, filho da minha primeira professora. Como lhe contei em
outras cartas, Mão é o mais talentoso dos meus colegas, ele é que
deveria ter se dedicado à literatura, mas acabei sendo eu. Formou-se
em medicina, tinha um futuro promissor, mas pediu demissão e voltou
a nossa terra, abriu um restaurante desses, que não é uma coisa nem
outra, ou é uma fusão harmoniosa de Oriente e Ocidente. Pelo nome
do restaurante, pelos nomes dos pratos, dá para ver a influência da
literatura sobre esse meu colega. Abrir um restaurante Dom Quixote
num lugar meio caipira, meio ocidentalizado como o nosso, já é em
si um feito quixotesco. Li Mão está mais gordo. Ele sempre foi
baixinho, depois de engordar ficou parecendo mais baixinho ainda.
Sentado num outro canto do restaurante, me olhava de longe, mas não
nos cumprimentávamos. Às vezes eu me debruçava sobre a mesa para
anotar minhas impressões, enquanto ele pendurava o braço esquerdo
no espaldar da cadeira e apoiava a bochecha na mão direita, passava
muito tempo nessa posição, que, embora estranha, parecia bastante
confortável.
O
pseudo-Sancho trouxe o guisado e a cerveja. Não faltava mais nada.
Tomei um gole da bebida, peguei um pedaço de carne e fui mastigando,
e fui saboreando sem pressa enquanto meu olhar atravessava o vidro e
alcançava uma encenação de contos mitológicos em plena luz do
dia. A música barulhenta abria o caminho, seguida por uma procissão
ricamente paramentada, com figurinos coloridos e personagens
extraordinárias. A mulher montada no qilin tinha o rosto
redondo como uma lua cheia e os olhos brilhantes como estrelas,
levava no colo um bebê rosado — cada vez que vejo essa Trazedora
de Bebês quero associá-la a minha tia. Mas na vida real minha tia
sempre me vem à mente com uma túnica preta folgada, o cabelo
desgrenhado como um ninho de pássaro, rindo como uma coruja, o olhar
perdido, a fala desconexa, só para acabar com a bela imagem que
fantasiei.
A
procissão da Trazedora de Bebês deu uma volta na praça e
posicionou-se no centro. A música parou, apareceu um mandarim de
chapéu alto e túnica púrpura segurando uma tabuleta cerimonial —
seu figurino lembrava um eunuco de teatro — que abriu um rolo
amarelo e anunciou em voz alta: “O céu e a terra nutrem os cinco
grãos. O sol, a lua e as estrelas criam todas as pessoas. Em nome do
imperador de Jade, sua alteza a Trazedora de Bebês traz uma
auspiciosa criança ao Nordeste de Gaomi, e chamo o fiel casal, Wang
Liang e esposa, para receber o filho”. Mas os atores que
representavam os pais nem tiveram tempo de segurar o filho
auspicioso, um boneco de barro, que foi levado por uma das mulheres
da praça desesperadas para ter um bebê.
Professor,
por mais desculpas que eu ache para me consolar, sou, afinal, um
homenzinho medroso como um rato, carregado de preocupações. Assim
que tomei consciência de que aquela moça chamada Chen Sobrancelha
carregava meu bebê em seu ventre, me senti amarrado por um pesado
sentimento de culpa. Porque ela é a filha do meu colega de escola,
Chen Nariz, porque ela foi criada, durante algum tempo, por minha tia
e Leoazinha. Naquela época, eu mesmo colocava, com minhas mãos,
leite em pó em sua boquinha. Ela é mais nova que minha filha. Se
por acaso Chen Nariz, Li Mão, Wang Fígado, meus amigos de outrora,
souberem da verdade, com que cara vou olhar para eles?
Lembro-me
de duas ocasiões em que encontrei Chen Nariz desde que voltei a
morar em minha aldeia natal.
A
primeira vez foi num anoitecer no final do ano passado, quando voavam
os flocos de neve. Naquela altura, Leoazinha ainda não tinha o
emprego no ranário. Andávamos na neve, olhando a dança dos flocos
sob a luz dourada em torno da praça. Ao longe, soavam de vez em
quando os fogos de artifício. A atmosfera do Ano-Novo era cada vez
mais presente. Minha filha, que estava na Espanha, me telefonou para
contar que estava passeando com o marido numa pequena aldeia da terra
de Cervantes. Eu e Leoazinha, de mãos dadas, entramos no restaurante
Dom Quixote. Contei para minha filha essa coincidência, e veio do
celular a sua risada sonora.
“O
mundo é muito pequeno, pai.”
A
cultura é muito grande, professor.
Ainda
não sabíamos que o restaurante pertencia a Li Mão, mas já
percebíamos que o dono devia ser uma figura extraordinária. O
ambiente nos agradou assim que entramos. Gostei, sobretudo daquelas
mesas e cadeiras rústicas. Se cobrissem as mesas com toalhas
brancas, engomadas e passadas, o restaurante ficaria com um aspecto
bem europeu. Mas concordo com a explicação que Li Mão veio a dar:
segundo um estudo que ele disse ter feito, na época de Dom Quixote
os restaurantes rurais da Espanha não usavam toalhas. E ainda
continuou, muito futriqueiro: assim como as europeias da época não
usavam sutiãs.
Professor,
confesso que, assim que entrei e vi a estátua de bronze com os seios
brilhantes de tanto serem tocados, minha mão se estendeu
involuntariamente. Era uma mostra da minha mente poluída, mas eu
estava tranquilo em relação a isso. Leoazinha me censurou com um
psiu, eu disse a ela: “Para que esse psiu? Isto é arte”. Ela
respondeu muito séria: “É o que dizem muitos sem-vergonhas
metidos a amantes da arte”. O pseudo-Sancho aproximou-se com um
sorriso, fez menção de curvar-se, mas não se curvou. Disse: “Sejam
bem-vindos, meu senhor e minha senhora!”.
Ele
pegou nossos casacos, cachecol e chapéu e nos conduziu até uma mesa
no meio do salão. Em cima dela havia uma tigelinha redonda de vidro
com uma vela branca flutuando na água. Não gostamos daquela mesa e
escolhemos outra perto da janela. A posição era melhor porque dava
para ver, lá fora, os flocos de neve dançando na luz das lâmpadas
da rua, e também porque oferecia uma vista panorâmica da sala.
Vimos, sentado numa mesa de canto — onde eu sempre me sentaria
depois —, um homem envolto em fumaça.
Reconheci-o
pela mão direita sem o dedo anular. Reconheci-o pelo narigão
vermelho. Chen Nariz, que um dia foi um homem bonito, agora ostentava
uma calva no cocuruto e cabelos soltos na nuca, quase o penteado de
Cervantes. Seu rosto estava seco, as bochechas encovadas, parecia ter
perdido os molares. Com isso o nariz ficou mais proeminente. Ele
segurava com três dedos da mão direita uma ponta de cigarro quase
toda consumida, que punha nos lábios para sugar. Espalhou-se no ar
um cheiro estranho de filtro de cigarro queimado. A fumaça jorrou de
suas enormes narinas. Tinha o olhar perdido dos fracassados. Eu
estava meio sem coragem de encará-lo, mas não conseguia parar.
Lembrei-me da estátua de Cervantes que vi no campus da Universidade
de Pequim e entendi por que Chen Nariz estava sentado aqui. Ele
vestia uma roupa esquisita, não era uma túnica, nem um casaco, em
torno do pescoço tinha um tecido branco e rugoso. Achei que deveria
ver uma espada ao lado dele, e de fato a encontrei encostada por ali.
Descobri depois a luva de ferro, o escudo, a lança em pé no canto
da sala. Achei que deveria estar acompanhado por um cachorro sujo e
magro, e de fato o encontrei, sujo, mas não tão magro. Dizem que
Cervantes também perdeu um dedo na mão direita. Mas Cervantes não
devia andar com escudo e lança, então provavelmente se tratava de
Dom Quixote, embora estivesse mais para Cervantes. A bem da verdade,
nenhum de nós jamais viu Cervantes em pessoa, muito menos Dom
Quixote, que nem sequer existiu. Assim, se a personagem representada
por Chen Nariz era Cervantes ou Dom Quixote, fica a critério de cada
um. Ver meu antigo amigo naquela situação me entristeceu. Já sabia
da tragédia que se abatera sobre suas belas filhas. Chen Orelha e
Chen Sobrancelha eram as irmãs mais lindas do Nordeste de Gaomi. O
sangue estrangeiro de Chen Nariz, de origem incerta, mas de
incontestável existência, fez seus rostos escaparem das planuras e
ganharem formas cheias. De todas as descrições da beleza feminina
na literatura clássica da China, nenhuma lhes servia. Eram como um
camelo num bando de ovelhas, um grou entre as galinhas. Se tivessem
nascido numa família mais abastada ou num lugar mais rico, ou mesmo
se tivessem nascido de família pobre num lugar distante, mas por
acaso encontrassem alguém que lhes desse oportunidades, poderiam
ficar famosas num instante e subir rápido na vida. As duas foram
juntas tentar a vida no Sul, talvez em busca dessas oportunidades.
Ouvi dizer que foram à Fábrica de Brinquedos de Pelúcia Dong Li,
cujo dono seria estrangeiro, embora ninguém soubesse dizer se era
estrangeiro mesmo. Duas irmãs tão bonitas, tão inteligentes,
naquele ambiente de luxo e ostentação, se quisessem fazer dinheiro,
se quisessem aproveitar a vida, bastaria vender o corpo. Mas foram
trabalhar duro num chão de fábrica, aguentando um regime de
trabalho extenuante, aguentando uma exploração brutal. Por fim, num
incêndio que causou comoção nacional, uma ficou carbonizada e a
outra teve o rosto queimado. A irmã mais nova só sobreviveu porque
a mais velha a protegeu com seu corpo. Uma infelicidade sem tamanho!
Isso quer dizer que elas não se deixaram corromper, eram duas moças
boas, de caráter imaculado. Desculpe, professor, emocionei-me outra
vez.
A
vida de Chen Nariz foi uma tragédia incomparável. E ao encarnar uma
celebridade morta ou um excêntrico ficcional lá no restaurante Dom
Quixote, ele estava, penso eu, na mesma situação do porteiro anão
que ficava na entrada da famosa boate Paraíso, em Pequim, ou do
porteiro gigante da casa de banhos Cortina d’Água, em Cantão.
Todos vendiam sua figura. O anão vendia sua baixa estatura, o
gigante, sua altura, e Chen Nariz, seu nariz enorme. Suas situações
eram igualmente infelizes.
Professor,
naquela noite eu reconheci Chen Nariz logo à primeira vista. E isso
apesar de não vê-lo há quase vinte anos. Mas eu o reconheceria
mesmo depois de cem anos, na mais estrangeira das terras.
Naturalmente, acredito que, ao mesmo tempo, ele nos reconheceu
também. Os amigos de infância muitas vezes nem precisam de olhos,
basta confiar no ouvido: com um suspiro ou um espirro já dá para
saber exatamente de quem se trata.
Será
que vamos lá cumprimentá-lo? Ou o convidamos logo para jantar
conosco… Leoazinha e eu hesitávamos. Por sua expressão
propositalmente alheia a tudo, o olhar fixo na cabeça de veado
pendurada na parede, sabíamos que ele também estava em dúvida se
falava ou não conosco. Voltaram as cenas daquela noite da despedida
do Deus do Fogão, quando ele veio a nossa casa com Chen Orelha para
tentar levar Chen Sobrancelha. Naquela época ele era corpulento,
vestia uma pesada jaqueta de couro de porco, estava pronto para
quebrar nossa panela cheia de jiaozi com um almofariz, ofegava
irritado, impaciente, parecia um urso de mau humor. Desde então,
nunca mais o vimos. Acho que, enquanto relembrávamos o passado, ele
devia estar fazendo a mesma coisa, os sentimentos que nos vinham
deviam estar vindo a ele também. Na verdade, nunca o odiamos. Sua
infelicidade nos comovia profundamente. Não fomos logo falar com ele
principalmente por não conseguir definir qual a atitude mais
adequada. Porque, sem sombra de dúvida, para usar uma expressão
local, estamos levando uma vida mansa, e ele não. E quem está na
melhor tem muita dificuldade de achar a maneira certa de encarar um
amigo na pior.
[...]
Mo Yan, em As rãs
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