Para
muitos escritores fracos, o regionalismo é uma espécie de tábua de
salvação, pois tem a ilusão – e com eles parte do público –
de que o armazenamento de costumes, tradições e superstições
locais, o acúmulo de palavras, modismos e construções dialetais, a
abundância da documentação folclórica e linguística suprem as
falhas da capacidade criadora. Pelo contrário, para os autores que
trazem uma mensagem humana e o talento necessário para exprimi-la, o
regionalismo envolve antes um obstáculo e uma limitação do que um
recurso. A riqueza léxica, em particular, longe de constituir um
atrativo – a não ser para os estudiosos da língua – torna a
obra menos acessível à maioria dos leitores. Quanto ao material
folclórico, este significa uma perpétua ameaça de desviar a
narração, tolher o enredo, quebrar o ritmo. Dir-se-ia que o
escritor regionalista precisa de menos valor que os outros para se
fazer tolerar, porém de maior originalidade para alcançar o êxito
e a admiração.
Em
Sagarana, J. Guimarães Rosa afronta todos esses empecilhos.
Apresenta-se como o autor regionalista de uma obra cujo conteúdo
universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais
ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo. O leitor vindo de
fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não
pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal
linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto
regionalista dessa obra; deve aproximar-se dela de um outro lado para
penetrar-lhe a importância literária.
A
arte de contar, no antigo sentido da palavra, que evoca as poderosas
narrativas do século passado e, mais longe ainda, as caudalosas
torrentes da épica antiga, está-se tornando rara. Apesar ou em
razão do número enorme de narrativas breves que se publicam,
encontram-se com frequência cada vez menor novelas e contos que nos
comuniquem um frêmito ou nos arranquem um grito de admiração. Os
desesperados esforços de renovação que caracterizam o gênero de
algum tempo para cá geram fórmulas mais de uma vez surpreendentes e
inéditas, mas dificilmente despertam emoções profundas.
As
nove peças que formam o volume Sagarana continuam a grande
tradição da arte de narrar. O gênero peculiar do autor é, aliás,
a novela, e não o conto. A maioria das narrativas reunidas no livro
são novelas, menos por sua extensão relativamente grande do que
pela existência, em cada uma delas, de vários episódios ou
“subistórias”, na expressão do escritor, aliás sempre bem
concatenados e que se sucedem em ascensão gradativa. O gênero, em
suas mãos, alcança flexibilidade notável, modifica-se conforme o
assunto, adapta-se às exigências do enredo. Pois esta maleabilidade
é justamente uma das características da novela moderna.
“O
burrinho pedrês”, por exemplo, é de todas as narrativas aquela
cujas partes, de início, parecem mais desconjuntadas. Contém uma
série de historietas e anedotas que não fazem avançar a ação
central. Mas é esta a espécie de narração exigida pelo assunto, a
viagem de uma boiada que prossegue por etapas, para, recomeça, se
desvia. Todos os episódios, finalmente, concorrem para criar uma
atmosfera única, caracterizada pela predominância da vida animal,
em volta da qual evolve todo aquele pequeno mundo nômade do Major
Saulo e seus boiadeiros. Aqui a forma parece ter nascido e crescido
com o assunto. A construção da novela obedece toda ela a uma arte
consciente que se disfarça sob um ar de naturalidade, mas se revela
não somente no aumento progressivo da tensão, senão também nos
periódicos desaparecimentos e voltas do burrinho pedrês. Note-se
que de todas as possíveis atitudes para com o seu protagonista
animal o autor adota a mais plausível: a da observação feita por
fora, com uma mistura de realismo e ironia que humaniza a personagem
sem recorrer a artifícios antropomórficos.
Patenteia-se
nesta novela um dos processos característicos da técnica de
Guimarães Rosa, decorrente, aliás, de sua concepção do mundo e do
destino: intensificar a tensão, aproximando o leitor de um desfecho
trágico previsto. De repente, verifica-se algum acontecimento brusco
– mas sempre verossímil – que traz desenlace diferente do
esperado; diferente, mas não menos patético. Espera-se em “O
burrinho pedrês” um assassínio, que todos os indícios fazem
prever… e sobrevém um desastre de proporções maiores, que
resolve a tensão por um cataclismo imprevisto. Combinam-se, assim,
os efeitos da surpresa e da unidade.
Aplicação
ainda mais perfeita deste processo observa-se em “A hora e vez de
Augusto Matraga”, a novela talvez mais densa de humanidade de todo
o volume. A vida retraída do valentão arrependido, que depois de
ter sido deixado como morto pelos capangas do adversário, levou anos
a restaurar a saúde do corpo e a amansar o espírito sedento de
vingança, inspira ao leitor uma inquietação crescente. Treme-se
por esta alma perdida e reencontrada, que por fim só escapará à
tentação da desforra por outro ato louco de valentia que o redime,
mas ao mesmo tempo o aniquila.
Aparentada
a essas duas novelas é a intitulada “Duelo”. Aí a série de
emboscadas em que dois adversários procuram acabar um com outro
parece primeiro terminar pela morte cristã de um deles, colhido e
consumido por insidiosa doença. Mas o moribundo conseguiu transmitir
o seu ódio como herança a um seu protegido, e, pela mão deste,
depois de morto, matará o rival sobrevivente.
Talvez
nem seja justo falar em técnica, pois nos dois últimos casos, pelo
menos, o desenlace, por mais inesperado que seja, decorre
necessariamente dos caracteres. O contista recria com extraordinária
plasticidade caracteres primários como Augusto Matraga ou, no
“Duelo”, Cassiano Gomes, concentrados em torno de um único
sentimento, que se transforma em sua razão de ser no objetivo de
toda a sua existência.
Apesar
de uma ironia fina que oscila num ritmo tão pessoal entre o humor e
o cinismo, o autor mantém-se imparcial para com as suas criaturas.
Tem-se a impressão, às vezes, de que adota a respeito delas os
sentimentos do ambiente e as admira ou despreza de acordo com esses
sentimentos, partilhando das simpatias e antipatias dos comparsas. Na
realidade, trata-se apenas de mais um meio para criar atmosfera. O
escritor conserva-se algo distante das personagens, e quando se
apressa em adotar algum julgamento cômodo sobre elas, não sabemos
com certeza se não o faz para se divertir à custa do leitor.
Veja-se o trecho em que conta a morte edificante de Cassiano Gomes.
Depois de deixar tudo o que tem a um pobre caboclo de quem se tornara
o benfeitor, este “tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos
dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o
céu”. Sim, mas ao seu protegido, além dos cobres, deixou também
a obrigação de uma vindita.
Nas
novelas de atmosfera trágica de Guimarães Rosa respira-se um fundo
desânimo, talvez por ser a conclusão tão fatal, tão sem recurso.
Esse acabamento absurdo e, ao mesmo tempo, irrespondivelmente
explicado, dos destinos individuais, faz entrever abismos tão
abruptos como aquele que se abre debaixo da Ponte de São Luís Rei,
no romance de Thornton Wilder.
Estas
mesmas novelas possuem credibilidade logo à primeira vista, mais um
sinal por que se reconhece a obra de ficção de real valor.
Credibilidade na ficção não envolve a exatidão e a
verossimilhança de todos os pormenores; apenas uma certa sugestão
que leva o leitor a não preocupar-se em verificar-lhes a
consistência, compenetrado por essa verdade condensada que só por
acaso a vida alcança. Pirandello ter-se-ia felicitado de um achado
como este, em que o autor soube formular com bastante pitoresco uma
das regras essenciais da arte: “E assim se passaram pelo menos seis
anos ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem
por, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada
e não é um caso acontecido, não senhor.”
Uma
quarta novela, “A volta do marido pródigo”, representa gênero
inteiramente diverso. Aqui as fases sucessivas do enredo fragmentado
servem para dar um duplo retrato, extremamente vivo e divertido, de
um malandro atraente, representado simultaneamente como tipo e como
indivíduo. Talvez seja este o conto em que o autor melhor realiza a
tarefa de caracterizar ao mesmo tempo o ambiente e as personagens
pelo halo de simpatia irresistível e imerecida que rodeia estas
últimas.
A
superstição, um dos mais importantes elementos de quantos concorrem
para a construção do universo do contista, fornece a duas
narrativas o assunto central. “Corpo fechado”, história de um
feitiço, e admirável de unidade e composição. Pouco nos importa,
para a verdade íntima do conto, se é o feitiço que opera, ou a fé
que nele depositam os protagonistas; o essencial é a presença
permanente da magia em que vítima e feiticeiro acreditam da mesma
forma. Talvez seja esta a razão de o leitor sentir-se menos
convencido pelo conto “São Marcos”, em que o contista,
apresentando-se em primeira pessoa como objeto de um ato de
feitiçaria, nos força a perguntarmos a nós mesmos se ele, autor,
acredita na magia ou não, dúvida que soube artisticamente eludir
nos outros contos.
“Minha
gente” confirma a impressão de que o talento narrativo de
Guimarães Rosa é essencialmente impessoal: ao lado de retratos
excelentes, como o do enxadrista viajante, e da pintura
maliciosamente viva de uma eleição no interior, a história de amor
contada em primeira pessoa parece um tanto convencional (com uma leve
reminiscência, talvez, de Cabocla ou de Prima Belinha,
de Ribeiro Couto).
“Sarapalha”
representa, a meu ver, em todo o volume, a única vitória do
regional sobre o humano: a descrição de uma região destruída
pelas febres avulta sobre o conflito passional das duas personagens,
que valem mais como componentes da paisagem que como verdadeiros
atores.
“Conversa
de bois”, finalmente, representa ainda outro tipo, o do conto
inteiramente estilizado, com bichos que falam e raciocinam, quase
numa atmosfera mítica de balada escocesa. Se as grandes novelas do
volume não nos tivessem exalçado as exigências, entregar-nos-íamos
sem reservas ao encontro desta forte narrativa. Elas, porém, nos
habituaram a uma mistura tão feliz de visão realista e de expressão
algo estudada, que nos custa admitir uma modificação da dosagem a
favor do elemento artificial.
Vocação
épica de excepcional fôlego, o autor dar-nos-á decerto algum
romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se
manifeste ainda mais à vontade. Por enquanto, aguarda-se com natural
curiosidade a publicação de seu volume de versos, premiado já em
1936 pela Academia Brasileira de Letras e que ficou escondido ainda
mais tempo que Sagarana. Que formas revestirá o lirismo num
poeta tão visceralmente narrador?
Chegando
ao fim destas breves considerações, percebemos o que elas têm de
ilusório. O exame unilateral de um livro tão rico de conteúdos e
significações como este há de deixar uma impressão falsa. É
sobretudo quase impossível falar desta obra abstraindo-se o aspecto
da expressão verbal, que nela é de excepcional importância. O
autor não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não
apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase
sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos,
expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária. O que
nos vale é que Sagarana já deu ensejo a análises agudas,
extensivas a todos os seus aspectos; por outro lado, é desses livros
em que cada leitor faz necessariamente novas descobertas.
Paulo Ronái, em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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