quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pintura no piano


Logo eles se casariam.
Penélope Lesciuszko e Michael Dunbar.
Em termos de tempo, levou aproximadamente um ano e sete meses.
Em outros termos, mais difíceis de medir, levou uma garagem repleta de retratos e uma pintura no piano.
Foi uma curva à direita e uma colisão.
E uma figura — a geometria do sangue.

***

Esse período costuma vir em lampejos.
O tempo reduzido a momentos.
Por vezes, são momentos muito dispersos — como o inverno, e ela aprendendo a dirigir. Ou setembro, e as horas preenchidas por música. Há todo um novembro de esforços desastrosos dele para tentar aprender a língua dela, e então dezembro e depois fevereiro chegando a abril, e algumas visitas à cidade em que ele cresceu, e o suor e o calor vigoroso do local.
Claro, havia os filmes (e ele não ficava de olho para ver se ela riria ou não de suas partes preferidas), e a paixão que ela desenvolveu por eles — possivelmente os melhores professores de inglês que teve. Ela gravava os filmes que passavam na TV para praticar: um catálogo da década de 1980, de E.T.: O Extraterrestre a Entre Dois Amores, de Amadeus a Atração Fatal.
Havia a leitura contínua da Ilíada e da Odisseia. Partidas de críquete na TV. (Como era possível uma coisa daquelas durar cinco dias inteiros?) E incontáveis passeios de balsa por aquela água salgada reluzente e de ondinhas brancas.
Também havia turbilhões de dúvidas quando ele desaparecia, ia a algum lugar, resguardando-se com todas as forças dentro de si. O terreno interno da ausência de Abbey novamente; um cenário tão vasto quanto árido. Ela o chamava pelo nome, mesmo estando ao lado dele:
Michael. Michael?
Ele levava um susto.
Que foi?
Eles pisavam nos limites da raiva, em brechas de pequenas irritações, ambos ensaiando para ir mais fundo. Mas, assim que ele pensava em dizer: “Não venha atrás de mim, não insista”, pousava a mão no braço dela. E assim, com o passar dos meses, os medos dela foram apaziguados.

***

De vez em quando, contudo, os momentos se estendem.
Param, desdobrando-se por completo.
Para Clay, esses eram os momentos que Penny descrevera nos últimos meses de vida — quando estava sob o efeito da morfina, ardendo de febre e desesperada para contar tudo direito. Dois foram mais memoráveis, ambos passados na mesma data, com exatos doze meses de intervalo.
Penélope se referia a eles por títulos:
A noite em que ele finalmente me mostrou.
E Pintura no piano.

***

O dia era 23 de dezembro, antevéspera de Natal.
No primeiro ano, jantaram juntos na cozinha de Michael e, assim que acabaram, ele se virou para ela e murmurou:
Vem cá. Vou te mostrar.
Os dois saíram da casa e foram até a garagem.
Era estranho como, em tantos meses, ela nunca pisara naquele lugar. Em vez de entrar pela porta lateral, por dentro da casa, ele abriu o portão automático, que fez o estrondo de um trem.
Quando ele acendeu a luz e removeu os lençóis, Penny ficou estupefata — envoltas por grãos flutuantes de pó havia inúmeras telas, todas esticadas sobre chassis de madeira. Algumas eram enormes. Outras, do tamanho de um bloco de papel. Em cada uma delas estava Abbey, e às vezes ela era uma mulher, às vezes, uma garota. Ora cheia de malícia, ora com a camisa abotoada até o pescoço. O cabelo batendo na cintura, as corredeiras de madeixas amparadas pelos braços, ou cortadas na altura dos ombros. Em todas as obras, contudo, ela era uma força vital cuja ausência não perdurava por muito tempo. Penélope se deu conta de que qualquer pessoa que visse aqueles quadros saberia que o autor sentia muito mais do que sugeria nos retratos. Estava em cada pincelada diante dela e em cada pincelada omitida. Era a precisão da tela esticada, e os erros mantidos perfeitamente intactos — como o pingo de violeta no tornozelo dela, ou a orelha que pairava a um milímetro do rosto.
A perfeição não importava:
Tudo estava certo.
Em um quadro, o maior deles, no qual os pés dela afundavam na areia, Penny quase pediu emprestados os sapatos que a mulher segurava com as mãos delicadas. Enquanto ela estudava as pinturas, Michael se sentou no chão e se recostou na parede, e quando Penny viu tudo que lhe cabia ver, se sentou ao lado dele, joelhos e cotovelos se roçando.
Abbey Dunbar? — perguntou.
Michael fez que sim.
Antes Abbey Hanley, agora não faço ideia.
Ela sentiu o coração quase sair pela boca e, devagar, o forçou a voltar para o lugar.
Me desculpa... — Ele mal conseguia reunir forças para falar. — Por não ter mostrado antes...
Você sabe pintar?
Sabia. Não sei mais.
Seu primeiro instinto foi medir o que pensaria ou faria a seguir — mas depois se recusou veementemente. Não pediria para ser pintada; não, jamais competiria com aquela mulher, e agora passava a mão pelo cabelo dele.
Não quero que você me pinte, jamais. — Ainda um pouco desnorteada, ela se recompôs e tomou coragem. — Tente fazer alguma outra coisa...
Aquela era uma memória que Clay guardava com carinho, pois foi difícil para ela contar tudo (a morte foi uma motivação e tanto); Penny contou como Michael se aproximou, e ela o conduziu diretamente ao ponto onde Abbey o deixara, onde outrora ele estivera largado, arrasado, no chão.
Eu disse a ele...”, relatara ela, já definhando. “Eu disse: Me mostre exatamente onde você estava, e ele mostrou na hora.”
Sim, os dois foram até lá e se abraçaram e cederam e se bateram e brigaram e escorraçaram tudo que não desejavam. Havia a respiração dela, o som dela, e uma enchente do que se tornaram; assim ficaram pelo tempo que se fez necessário — e entre os turnos, deitavam-se e conversavam; quase sempre Penélope falava primeiro. Ela contou que fora uma criança solitária e que queria pelo menos cinco filhos, e Michael disse que tudo bem. Ele até brincou:
Minha nossa, só espero que a gente não tenha cinco meninos!
Deveria ter sido mais cuidadoso.
Vamos nos casar.
Foi ele quem disse — simplesmente saiu.
Estavam totalmente esfolados a essa altura, cobertos de hematomas; braços, cotovelos e costas.
Ele continuou.
Vou dar um jeito de fazer o pedido. Talvez nessa mesma época, ano que vem.
E, debaixo dele, abraçou-o com força.
Claro — respondeu, beijando-o e rolando com ele, ficando por cima.
E então, quase em silêncio, um último “de novo”.

***

E no ano seguinte veio o segundo título.
Pintura no piano.
23 de dezembro.
Era segunda à noite, a luz se avermelhando do lado de fora.
O barulho dos garotos da vizinhança invadiu a casa. Estavam jogando handebol. Penélope tinha acabado de passar por eles.
Todas as segundas, ela chegava em casa por volta desse horário, pouco depois das oito e meia; fizera a última faxina do dia, em um escritório de advocacia, e naquela noite seguiu a rotina de sempre:
Entrou em casa e deixou as sacolas na porta.
Dirigiu-se ao piano e se sentou — mas daquela vez algo parecia diferente. Ela abriu a tampa e viu as palavras pintadas nas teclas, letras simples, mas muito bonitas:

P | E | N | É | L | O | P | E    L | E | S | C | I | U | S | Z | K | O
Q | U | E | R    C | A | S | A | R    C | O | M | I | G | O

Ele lembrou.
Ele lembrou, e ela levou as mãos à boca, e abriu um sorriso gigante, e sentiu faíscas saindo dos olhos; toda a dúvida foi levada para longe, distante já naquele momento, em que ela hesitava diante das letras. Ela não queria perturbá-las ou borrar a tinta. Por mais que estivessem secas havia horas...
Mas ela logo se resolveu.
Deixou os dedos pousarem com delicadeza no meio das palavras CASAR e COMIGO.
Ela se virou e chamou.
Michael?
Nada de resposta, então ela saiu de casa, e os garotos já haviam ido embora, e havia apenas a cidade, o céu vermelho e a rua Pepper.
Ele estava sentado, sozinho, na entrada de sua casa.

***

Depois, muito depois, enquanto Michael Dunbar dormia na cama de solteiro que volta e meia dividiam no apartamento dela, Penélope deixou o quarto no escuro.
Acendeu a luz da sala.
Girou o interruptor até a penumbra e se sentou ao piano. Devagar, suas mãos deslizaram, e com cuidado ela apertou as notas mais altas. De leve, mas com vontade e precisão, onde usara a tinta restante.
Ela tocou as teclas S | I | M.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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