Logo
eles se casariam.
Penélope
Lesciuszko e Michael Dunbar.
Em
termos de tempo, levou aproximadamente um ano e sete meses.
Em
outros termos, mais difíceis de medir, levou uma garagem repleta de
retratos e uma pintura no piano.
Foi
uma curva à direita e uma colisão.
E
uma figura — a geometria do sangue.
***
Esse
período costuma vir em lampejos.
O
tempo reduzido a momentos.
Por
vezes, são momentos muito dispersos — como o inverno, e ela
aprendendo a dirigir. Ou setembro, e as horas preenchidas por música.
Há todo um novembro de esforços desastrosos dele para tentar
aprender a língua dela, e então dezembro e depois fevereiro
chegando a abril, e algumas visitas à cidade em que ele cresceu, e o
suor e o calor vigoroso do local.
Claro,
havia os filmes (e ele não ficava de olho para ver se ela riria ou
não de suas partes preferidas), e a paixão que ela desenvolveu por
eles — possivelmente os melhores professores de inglês que teve.
Ela gravava os filmes que passavam na TV para praticar: um catálogo
da década de 1980, de E.T.: O Extraterrestre a Entre Dois
Amores, de Amadeus a Atração Fatal.
Havia
a leitura contínua da Ilíada e da Odisseia. Partidas
de críquete na TV. (Como era possível uma coisa daquelas durar
cinco dias inteiros?) E incontáveis passeios de balsa por
aquela água salgada reluzente e de ondinhas brancas.
Também
havia turbilhões de dúvidas quando ele desaparecia, ia a algum
lugar, resguardando-se com todas as forças dentro de si. O terreno
interno da ausência de Abbey novamente; um cenário tão vasto
quanto árido. Ela o chamava pelo nome, mesmo estando ao lado dele:
— Michael.
Michael?
Ele
levava um susto.
— Que
foi?
Eles
pisavam nos limites da raiva, em brechas de pequenas irritações,
ambos ensaiando para ir mais fundo. Mas, assim que ele pensava em
dizer: “Não venha atrás de mim, não insista”, pousava a mão
no braço dela. E assim, com o passar dos meses, os medos dela foram
apaziguados.
***
De
vez em quando, contudo, os momentos se estendem.
Param,
desdobrando-se por completo.
Para
Clay, esses eram os momentos que Penny descrevera nos últimos meses
de vida — quando estava sob o efeito da morfina, ardendo de febre e
desesperada para contar tudo direito. Dois foram mais memoráveis,
ambos passados na mesma data, com exatos doze meses de intervalo.
Penélope
se referia a eles por títulos:
A
noite em que ele finalmente me mostrou.
E
Pintura no piano.
***
O
dia era 23 de dezembro, antevéspera de Natal.
No
primeiro ano, jantaram juntos na cozinha de Michael e, assim que
acabaram, ele se virou para ela e murmurou:
— Vem
cá. Vou te mostrar.
Os
dois saíram da casa e foram até a garagem.
Era
estranho como, em tantos meses, ela nunca pisara naquele lugar. Em
vez de entrar pela porta lateral, por dentro da casa, ele abriu o
portão automático, que fez o estrondo de um trem.
Quando
ele acendeu a luz e removeu os lençóis, Penny ficou estupefata —
envoltas por grãos flutuantes de pó havia inúmeras telas, todas
esticadas sobre chassis de madeira. Algumas eram enormes. Outras, do
tamanho de um bloco de papel. Em cada uma delas estava Abbey, e às
vezes ela era uma mulher, às vezes, uma garota. Ora cheia de
malícia, ora com a camisa abotoada até o pescoço. O cabelo batendo
na cintura, as corredeiras de madeixas amparadas pelos braços, ou
cortadas na altura dos ombros. Em todas as obras, contudo, ela era
uma força vital cuja ausência não perdurava por muito tempo.
Penélope se deu conta de que qualquer pessoa que visse aqueles
quadros saberia que o autor sentia muito mais do que sugeria nos
retratos. Estava em cada pincelada diante dela e em cada pincelada
omitida. Era a precisão da tela esticada, e os erros mantidos
perfeitamente intactos — como o pingo de violeta no tornozelo dela,
ou a orelha que pairava a um milímetro do rosto.
A
perfeição não importava:
Tudo
estava certo.
Em
um quadro, o maior deles, no qual os pés dela afundavam na areia,
Penny quase pediu emprestados os sapatos que a mulher segurava com as
mãos delicadas. Enquanto ela estudava as pinturas, Michael se sentou
no chão e se recostou na parede, e quando Penny viu tudo que lhe
cabia ver, se sentou ao lado dele, joelhos e cotovelos se roçando.
— Abbey
Dunbar? — perguntou.
Michael
fez que sim.
— Antes
Abbey Hanley, agora não faço ideia.
Ela
sentiu o coração quase sair pela boca e, devagar, o forçou a
voltar para o lugar.
— Me
desculpa... — Ele mal conseguia reunir forças para falar. — Por
não ter mostrado antes...
— Você
sabe pintar?
— Sabia.
Não sei mais.
Seu
primeiro instinto foi medir o que pensaria ou faria a seguir — mas
depois se recusou veementemente. Não pediria para ser pintada; não,
jamais competiria com aquela mulher, e agora passava a mão pelo
cabelo dele.
— Não
quero que você me pinte, jamais. — Ainda um pouco desnorteada, ela
se recompôs e tomou coragem. — Tente fazer alguma outra coisa...
Aquela
era uma memória que Clay guardava com carinho, pois foi difícil
para ela contar tudo (a morte foi uma motivação e tanto); Penny
contou como Michael se aproximou, e ela o conduziu diretamente ao
ponto onde Abbey o deixara, onde outrora ele estivera largado,
arrasado, no chão.
“Eu
disse a ele...”, relatara ela, já definhando. “Eu disse: Me
mostre exatamente onde você estava, e ele mostrou na hora.”
Sim,
os dois foram até lá e se abraçaram e cederam e se bateram e
brigaram e escorraçaram tudo que não desejavam. Havia a respiração
dela, o som dela, e uma enchente do que se tornaram; assim ficaram
pelo tempo que se fez necessário — e entre os turnos, deitavam-se
e conversavam; quase sempre Penélope falava primeiro. Ela contou que
fora uma criança solitária e que queria pelo menos cinco filhos, e
Michael disse que tudo bem. Ele até brincou:
— Minha
nossa, só espero que a gente não tenha cinco meninos!
Deveria
ter sido mais cuidadoso.
— Vamos
nos casar.
Foi
ele quem disse — simplesmente saiu.
Estavam
totalmente esfolados a essa altura, cobertos de hematomas; braços,
cotovelos e costas.
Ele
continuou.
— Vou
dar um jeito de fazer o pedido. Talvez nessa mesma época, ano que
vem.
E,
debaixo dele, abraçou-o com força.
— Claro
— respondeu, beijando-o e rolando com ele, ficando por cima.
E
então, quase em silêncio, um último “de novo”.
***
E
no ano seguinte veio o segundo título.
Pintura
no piano.
23
de dezembro.
Era
segunda à noite, a luz se avermelhando do lado de fora.
O
barulho dos garotos da vizinhança invadiu a casa. Estavam jogando
handebol. Penélope tinha acabado de passar por eles.
Todas
as segundas, ela chegava em casa por volta desse horário, pouco
depois das oito e meia; fizera a última faxina do dia, em um
escritório de advocacia, e naquela noite seguiu a rotina de sempre:
Entrou
em casa e deixou as sacolas na porta.
Dirigiu-se
ao piano e se sentou — mas daquela vez algo parecia diferente. Ela
abriu a tampa e viu as palavras pintadas nas teclas, letras simples,
mas muito bonitas:
P
| E | N | É | L | O | P | E L | E | S | C | I | U | S | Z | K | O
Q
| U | E | R C | A | S | A | R C | O | M | I | G | O
Ele
lembrou.
Ele
lembrou, e ela levou as mãos à boca, e abriu um sorriso gigante, e
sentiu faíscas saindo dos olhos; toda a dúvida foi levada para
longe, distante já naquele momento, em que ela hesitava diante das
letras. Ela não queria perturbá-las ou borrar a tinta. Por mais que
estivessem secas havia horas...
Mas
ela logo se resolveu.
Deixou
os dedos pousarem com delicadeza no meio das palavras CASAR e COMIGO.
Ela
se virou e chamou.
— Michael?
Nada
de resposta, então ela saiu de casa, e os garotos já haviam ido
embora, e havia apenas a cidade, o céu vermelho e a rua Pepper.
Ele
estava sentado, sozinho, na entrada de sua casa.
***
Depois,
muito depois, enquanto Michael Dunbar dormia na cama de solteiro que
volta e meia dividiam no apartamento dela, Penélope deixou o quarto
no escuro.
Acendeu
a luz da sala.
Girou
o interruptor até a penumbra e se sentou ao piano. Devagar, suas
mãos deslizaram, e com cuidado ela apertou as notas mais altas. De
leve, mas com vontade e precisão, onde usara a tinta restante.
Ela
tocou as teclas S | I | M.
Markus Zusak, em O construtor de pontes
Nenhum comentário:
Postar um comentário