quinta-feira, 4 de julho de 2024

Os Nascimentos | 1538 – São Domingos

O espelho

O sol do meio-dia arranca fumaça das pedras e relâmpagos dos metais. Alvoroço no porto: os galeões trouxeram de Sevilha a artilharia pesada para a fortaleza de São Domingos.
O prefeito, Fernández de Oviedo, dirige o transporte de colubrinas e canhões. A golpe de chibata, os negros arrastam a carga a todo vapor. Rangem os carros, sufocados pelo peso dos ferros e bronzes, e através do torvelhinho outros escravos vão e vêm jogando caldeirões de água contra o fogo que brota dos eixos aquecidos.
Em meio da zoeira e da gritaria, uma moça índia anda em busca de seu amo. Tem a pele coberta de bolhas. Cada passo é um triunfo e a pouca roupa que usa atormenta sua pele queimada. Durante a noite e meio dia, esta moça suportou, de alarido em alarido, os ardores do ácido. Ela mesma assou as raízes de guao e esfregou-as entre as mãos até convertê-las em pasta. Untou-se inteira de guao, da raiz dos cabelos até os dedos dos pés, porque o guao abrasa a pele e limpa a cor, e assim transforma as índias e negras em brancas damas de Castilha.
Me reconhece, senhor?
Oviedo afasta-a com um empurrão; mas a moça insiste, com seu fio de voz, agarrada ao amo como sombra, enquanto Oviedo corre gritando ordens aos capatazes.
Sabe quem sou?
A moça cai no chão e do chão continua perguntando:
Senhor, senhor, não sabe quem sou?

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

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