quarta-feira, 31 de julho de 2024

O garoto que saiu do forno


Não acredito no que estou vendo. Achei que você só fosse dar uma adiantada no serviço.
Foi o que Michael Dunbar disse sobre a vala gigantesca cavada por um único garoto em menos de uma semana. Não deveria ficar surpreso.
Mas como diabos você fez isso? Cavou dia e noite sem parar?
Clay olhou para baixo.
Dormi um pouco também.
Com a pá do lado?
O Assassino viu as mãos dele, e o garoto levantou a cabeça.
Jesus... — disse o homem.
Quando Clay me contou essa façanha, focou mais no resultado do que no processo em si. Ele estava louco para visitar a rua Archer, e as Cercanias, mas não podia, claro; por dois motivos.
Em primeiro lugar, não estava em condições de me encarar.
Segundo, voltar e não me encarar seria covardia da parte dele.
Não; depois do cemitério, Clay pegou o trem de volta para a estação Silver e passou alguns dias se recuperando. Não havia um pedaço dele que não estivesse doendo. No entanto, as mãos cheias de bolhas eram a pior parte, e ele dormia, passava noites em claro, e esperava.

***

Quando o Assassino voltou, estacionou o carro do outro lado do rio, entre as árvores.
Desceu a margem e parou no fundo do fosso cavado.
Dos dois lados, havia ondas gigantescas de pedregulhos e de terra.
Ele observou a vala e balançou a cabeça, incrédulo, então se voltou para a casa. Lá dentro, procurou Clay e o fuzilou com o olhar; suspirou, relaxou os ombros e balançou a cabeça mais uma vez, entre o choque e a decepção. E finalmente pensou em algo para dizer:
Tenho que admitir, garoto... Você tem coragem.
Clay não se conteve.
Aquelas palavras.
Elas iam e vinham sem parar, e agora Rory estava na cozinha, como se tivesse saído do forno, direto do parque Bernborough, da lendária marca dos trezentos metros:
Tenho que admitir, garoto...
Exatamente as mesmas palavras que Rory dissera a ele.
E Clay não conseguiu se conter.
Disparou pelo corredor e irrompeu no banheiro, batendo a porta e se jogando no chão, e...
Clay? Clay, tá tudo bem?
A pergunta foi como um eco, como se ouvisse aqueles berros debaixo d’água; ele veio à tona para respirar.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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