Não
chegou a acontecer.
A
criança brincava no ar do quintal. Apareceu a janela o rosto trágico
untado de creme, a mãe gritou: Catarina! A criança muda e delicada.
Catarina! – Foi só um instante: sou eu Catarina? perguntou-se o
sábio na sua janela. Catarina brincava ao vento rodando em torno de
si. Pé ante pé ele se tornou Catarina, correu entrando em casa,
descobriu a mulher deitada com o rosto cheio de creme, debruçou-se
tanto sobre ela que o perfume sufocou-o, fê-lo dar uma pirueta de
prazer e náusea, ele dançou no quarto levantando as abas do paletó
austero. A mulher no divã agitou-se. Ele parou, endireitou os
óculos, ofegante: pensou, correu, pensou, que vento! foi para o
quarto da criança, o reinado no papel de parede, a boneca valsou com
o homem, a perna da boneca dançava noutro movimento, e a macela se
derramava do pé rasgado. Voltou nas pontas dos pés e ainda arfando
soprou na mulher do creme que de olhos amargos esperava a beleza.
Ficou mais sério, começou a brincar pensativo com os dedos magros
da dama que suspirava de impaciência: ele separou o dedo mínimo da
mulher, alisou-o com bom humor e tristeza. De repente ei-la à
janela: Catarina! A criança parou de rodar atenta. Ele se
sobressaltou, olhou estupefato o livro aberto sobre a mesa. A
verdadeira Catarina corria em sombra leve para a casa. A mulher
permanecera à janela, o rosto duro, essa grande ofendida. Alta,
indevassável. O sábio riu baixinho se sacudindo e disse com malícia
um pouco fatigado: bem te conheço.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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