A
festa pós-première era no Copperfield, na Avenida La Brea. Frank
parou na frente, deixou-nos saltar e avançamos para a entrada
debaixo de mais flashes. Ocorreu-me que eles não sabiam a quem
fotografavam. Se a gente saltava de uma limusine, tinha direito.
Reconheceram-nos
à entrada e deixaram-nos entrar para o meio de um monte de gente,
todos espremidos e com copos de vinho tinto na mão. Formavam grupos
de três, quatro ou mais pessoas, conversando ou caladas. Não havia
ar-condicionado, e embora estivesse fresco lá fora, ali dentro fazia
calor, muito calor. Tinha gente demais sugando o oxigênio.
Sarah
e eu sacamos nosso vinho e ficamos ali, tentando bebê-lo. O vinho
era muito abrasivo. Não há nada pior que vinho tinto barato, a não
ser vinho branco que se deixou esquentar.
– Quem
são essas pessoas, Sarah? Que querem aqui?
– Algumas
são do ramo, outras são da periferia do ramo, e outras só estão
aqui porque não podem pensar em outro lugar.
– Que
estão fazendo?
– Algumas
tentando fazer contatos, outras permanecer em contato. Algumas vão a
todas as funções como esta que podem. Há também o pessoal da
imprensa.
A
sensação no ar não era boa. Faltava alegria. Aqueles eram os
sobreviventes, os cavadores, os tubarões, os ninguéns. As almas
penadas conversavam e conversavam, e fazia calor, calor, calor.
Então
um cara num terno caro se aproximou.
– Vocês
não são o Sr. e a Sra. Chinaski?
– Sim
– eu disse.
– O
lugar de vocês não é aqui embaixo. É lá em cima. Sigam-me.
Nós
o seguimos.
Seguimo-lo
escada acima até o segundo andar. Não tinha tanta gente. O cara de
terno caro voltou-se para nós.
– Não
bebam o vinho que estão servindo aqui. Eu pego outra garrafa pra
vocês.
– Obrigado.
Digamos duas.
– Claro.
Volto já.
– Hank,
que significa isso tudo?
– Aceite.
Nunca mais vai acontecer de novo.
Olhei
a multidão. Tive a mesma sensação que tivera da de lá de baixo.
– Imagino
quem será esse cara – eu disse.
Ele
voltou com duas garrafas de bom vinho e um saca-rolhas, além de
novos copos.
– Muito
obrigado – eu disse.
– De
nada – ele disse. – Eu lia sua coluna no L.A. Free Press.
– Não
parece tão velho assim.
– Não
sou. Meu pai era um hippie. Eu lia o jornal depois que ele acabava.
– Posso
perguntar o seu nome?
– Carl
Wilson. Sou o dono da casa.
– Oh,
entendo. Bem, obrigado de novo pelo vinho.
– De
nada. Me diga quando quiser mais.
E
foi-se. Abri uma garrafa e servi dois copos. Experimentamos. Vinho
realmente bom.
– Agora
– eu disse a Sarah –, quem são aquelas pessoas aqui em cima? Em
que são diferentes das de lá de baixo?
– São
as mesmas. Apenas têm mais influência, mais sorte. Dinheiro,
política, família. Os da indústria trazem a família e os amigos.
Capacidade e talento são secundários. Eu sei que pareço estar
fazendo discurso, mas é isso aí.
– Bate.
Mesmo os chamados melhores filmes me parecem muito ruins.
– Prefere
assistir a uma corrida de cavalos.
– É
claro...
Jon
Pinchot aproximou-se.
– Meu
Deus! Essas pessoas! Eu me sinto como se estivesse coberto de merda!
Dei
uma risada.
Aí
surgiu Francine Bowers. Estava eufórica. Fizera seu grande retorno.
– Você
estava muito boa, Francine – eu disse.
– É
– disse Jon.
– Soltou
o cabelo – disse Sarah.
– Soltei
demais?
– De
modo algum – eu disse.
– Escuta
– disse Francine –, que vinho é esse que estão bebendo? Parece
coisa boa.
– Tome
um pouco – virei a garrafa no copo dela.
– Eu
também – disse Jon.
– Como
é que vocês ganharam essa coisa boa? – perguntou Francine.
– O
pai do dono da casa era hippie. Os dois liam o L.A. Free Press. Eu
escrevia uma coluna, “Notas de um Homem de Neanderthal”.
E
ficamos ali calados. Não havia mais nada a dizer. O filme acabara.
– Onde
anda Jack Bledsoe? – perguntei.
– Oh
– disse Jon –, ele não vem a essas coisas.
– Bem,
eu venho – disse Francine.
– Nós
também – admitiu Sarah.
Alguém
chamou de outro grupo.
– Uma
revista quer entrevistar você, Francine. Movie Mirror.
– Claro
– disse Francine. – Me desculpem – disse pra nós.
– Claro.
Ela
se afastou, majestosa e altiva. Eu me sentia bem por ela. Me sentia
bem, por qualquer um que fizesse um retorno depois de ser relegado ao
deserto.
– Vá
lá com ela, Jon – disse Sarah. – Ela se sentirá melhor...
– Devo
ir, Sarah?
– Não,
Hank, vai só tentar roubar a entrevista. E lembre-se, você cobra
mil dólares agora.
– Tem
razão...
– Tudo
bem – disse Jon. – Vou lá.
Foi,
lá.
Aproximou-se
um jovem com um gravador.
– Eu
sou do Herald Examiner. Faço a coluna “Fale e Conte”. Que
tal acha que saiu o filme?
– Você
tem mil dólares? – perguntou Sarah.
– Sarah,
isso é só papo-furado, tá tudo bem.
– Bem,
que tal acha que saiu o filme?
– É
um filme acima da média. Muito depois de os Oscars deste ano serem
esquecidos, A Dança de Jim Beam estará sendo exibido de vez
em quando nas salas de arte. E surgirá na TV de vez em quando, se o
mundo durar.
– Pensa
mesmo isso?
– Penso.
E à medida que ele for sendo revisto várias vezes, as pessoas
descobrirão novos sentidos nos diálogos e cenas, sentidos que
ninguém pretendeu. Elogiar demais e de menos é a norma em nossa
sociedade.
– Os
bebuns falam daquele jeito?
– Alguns
falam, até alguém os matar.
– Você
parece ter um alto conceito desse filme.
– Não
é que seja tão bom. É só que os outros são muito ruins.
– Qual
o filme que você considera o melhor que já viu?
– Eraserhead.
– Eraserhead?
– É.
– E
o segundo em sua lista?
– Quem
tem Medo de Virginia Woolf?
Aí
Carl Wilson voltou.
– Chinaski,
tem um cara lá embaixo que diz conhecer você. Quer subir. Um tal
John Galt.
– Deixa
ele subir, por favor.
– Bem,
obrigado, Chinaski – disse o cara do Herald Examiner.
– De
nada.
Desarrolhei
a segunda garrafa e servi mais duas para a gente. Sarah aguentava a
bebida admiravelmente bem. Só se tornava faladora quando estávamos
a sós. E então falava com sensatez, também.
Lá
estava John Galt. Big John Galt. Ele se aproximou.
– Hank
e eu nunca apertamos as mãos – sorria. – Oi, Sarah – disse –,
tem esse cara sob controle?
– Tenho,
John.
Porra,
pensei, conheço tantos caras chamados John.
Os
nomes bíblicos permanecem. John, Mark, Peter, Paul.
Big
John Galt tinha boa aparência. Os olhos haviam ficado mais bondosos.
A bondade chegava por fim aos melhores. Havia menos egoísmo. Menos
medo. Menos competitividade.
– Está
com boa aparência, baby – eu disse a ele.
– Você
parece melhor do que há 25 anos – ele disse.
– Melhor
bebida, John.
– São
as vitaminas e comidas saudáveis – disse Sarah. – Nada de carne
vermelha, sal, açúcar.
– Se
algum dia se publicar isso, as vendas de meus livros vão desabar,
John.
– Seu
material vai vender sempre, Hank. Até uma criança pode ler.
Big
John Galt. Porra, que salva-vida tinha sido. Quando eu trabalhava
para os correios, ia para a casa dele, em vez de comer, dormir ou
fazer tudo mais. Big John estava sempre lá. Sustentado por uma dona.
As donas sempre sustentavam Big John.
– Hank,
quando eu trabalho, não sou feliz. Quero ser feliz – ele dizia.
Havia
sempre aquela grande tigela de baratos na mesa de café, entre nós.
Geralmente cheia até a borda de pílulas e cápsulas.
– Pegue
uma.
Eu
metia a mão e comia-as como doce.
– John,
esta merda vai acabar destruindo seu cérebro.
– Cada
homem é diferente, Hank, o que destrói um não afeta outro.
Noites
maravilhosas de bobagens. Eu trazia minha cerveja e engolia as
pílulas. John fora o cara mais lido que eu já conhecera, mas sem
ser pedante. No entanto, era esquisito. Talvez fosse o barato.
Às
vezes, às três ou quatro horas da manhã, ele tinha um impulso de
ir vasculhar latas de lixo e quintais. Eu ia com ele.
– Merda,
John, é só um resto velho que alguém jogou fora.
– Eu
quero.
A
casa toda era cheia de lixo. Montes de lixo por toda parte. Quando se
queria sentar num sofá, era preciso afastar para um lado um monte de
lixo. E as paredes eram cobertas de dísticos e estranhas manchetes
de jornais. Tudo meio fora de esquadro. Como as últimas palavras do
último maníaco da terra. No porão da casa havia milhares de livros
empilhados, inchados, molhados e apodrecidos pela umidade. Ele os lia
todos e se saía bem. Precisava de um mínimo para viver e era melhor
ninguém se meter num jogo de xadrez com ele, nem numa luta até a
morte. Era uma maravilha. Creio que naquele tempo eu tinha muita pena
de mim mesmo e ele me fez ver isso. Mas acima de tudo aquela época e
aquelas horas eram divertidas. Eu me alimentava de Big John
quando mais nada havia em volta. Ele também era escritor. E mais
tarde eu dei sorte no mundo e ele não. John escrevia uns poemas de
bastante força, mas entre um tempo e outro havia espaços em que
parecia vazio. Ele me explicou:
– Não
quero ser famoso, só quero me sentir bem.
Foi
um dos melhores leitores de poesia, dele mesmo ou de qualquer outro,
que já ouvi. Era um belo homem. E depois, depois de minha sorte,
quando eu citava John Galt aqui e ali, recebia o mesmo retorno: “Não
vejo o que Chinaski vê nesse velho fanfarrão”. Os que me tinham
aceito e à minha obra não aceitavam a ele e à sua obra, e eu me
perguntava se talvez minha obra não era feita para idiotas. O que eu
não podia evitar. Um pássaro voa, uma serpente se arrasta, eu mudo
fitas de máquina de escrever.
De
qualquer modo, era bom tornar a ver John Galt. Ele trazia uma nova
dona consigo.
– Esta
é Lisa – disse. – Também escreve poesia.
Lisa
saltou dentro e pôs-se a falar. Armou uma tempestade de palavras e
John apenas ficou ali parado. Talvez fosse a noite dela, mas falava
como uma feminista dos velhos tempos. O que está direito, para
elas, só que elas tendem a consumir o oxigênio e já fazia calor
demais ali dentro por falta de ar fresco. Ela falava e falava,
contando-nos tudo. John e ela muitas vezes recitavam juntos. Eu já
ouvira falar de Bab Danish?
– Não
– respondi.
Bem,
Bab Danish era de cor negra e mulher, e quando recitava usava grandes
argolas, e como era muito apaixonada as argolas saltavam para cima e
para baixo, enquanto o irmão dela, Tip, fazia o fundo musical das
suas leituras. Eu devia ouvi-la.
– Hank
não vai a recitais de poesia – disse Sarah –, mas eu ouvi Bab
Danish e gosto muito dela.
– John,
eu e Bab vamos dar um recital no Beyond Baroque na próxima quarta à
noite, vocês vêm?
– Eu
provavelmente irei – disse Sarah. E provavelmente iria.
Dei
então uma boa olhada em John Galt. Ele parecia delicado e bom, mas
eu via em seus olhos um profundo sofrimento que nunca vira antes.
Para um homem que queria ser feliz, parecia alguém que perdera dois
peões nas primeiras jogadas de uma partida de xadrez, sem ganhar
vantagem alguma.
Aí
o cara do Herald Examiner voltou.
– Sr.
Chinaski – disse –, eu queria lhe fazer outra pergunta.
Apresentei-lhe
John Galt e Lisa.
– John
Galt – eu disse – é o maior poeta não descoberto dos Estados
Unidos. Esse homem me ajudou a seguir em frente quando tudo mais me
mandava parar.
– Bem,
Sr. John Galt.
– Hank
e eu nos conhecemos há uns vinte anos...
Sarah
e eu nos afastamos.
– Parece
que, com Lisa, John está com tudo – eu disse.
– Talvez
seja bom pra ele.
– Talvez.
Mais
pessoas haviam subido. Parecia que ninguém se fora. O que havia ali?
Contatos? Oportunidades? Valia a pena? Não seria melhor não estar
no show business? Não, não. Quem quer ser jardineiro ou motorista
de táxi? Quem quer ser consultor de impostos? Não éramos todos
artistas? Não estavam nossas mentes acima disso? Mais dispostas a
sofrer daquele jeito que de outro? Pelo menos aquele parecia melhor.
Nossa
segunda garrafa estava quase vazia.
Aí
Jon Pinchot voltou.
– Jack
Bledsoe está aqui. Quer falar com você.
– Onde
está ele?
– Ali,
junto da porta.
E
sem dúvida lá estava Jack Bledsoe, encostado no umbral da porta com
seu sorriso famoso e sensível.
Sarah
e eu nos aproximamos dele. Estendi a mão e apertei a de Jack.
Pensei
na frase de John Galt: “Eu e Hank nunca apertamos as mãos”.
– Belo
espetáculo, Jack, grande desempenho. Estou realmente feliz pela sua
participação.
– Enganei
bem?
– Acho
que sim.
– Eu
não queria pôr muito da sua voz, nem do seu porre...
– Conseguiu.
– Só
quis aparecer pra cumprimentar você.
Essa
me pegou. Eu não sabia como reagir.
– Bem,
diabos, baby, a gente pode tomar um porre juntos qualquer dia desses.
– Eu
não bebo.
– Oh,
ééé... Bem, obrigado, Jack, foi um prazer você ter vindo. Que tal
uma saideira, de qualquer modo?
– Não,
já vou indo...
Voltou-se
e desceu a escada.
Estava
sozinho. Sem guarda-costas nem motoqueiros. Garoto bacana, belo
sorriso.
Adeus,
Jack Bledsoe.
Arranquei
outra garrafa de Carl Wilson e fiquei por ali com Sarah e as outras
pessoas, mas na verdade nada acontecia. Só pessoas paradas por ali.
Talvez esperassem que eu me embebedasse e ficasse insano e xingasse
todo mundo, como às vezes fazia nas festas. Mas eu duvidava disso.
Elas eram simplesmente embotadas por dentro. Não tinham nada a fazer
senão permanecer dentro de seus eus, que na verdade não estavam
exatamente ali. Isso não doía muito. Era um lugar suave para se
estar.
Quanto
a mim, minha visão principal da vida era evitar o máximo de pessoas
possível. Quanto menos pessoas via, melhor me sentia. Conheci outro
cara que partilhava de minha filosofia, Sam, o Cara dos Puteiros. Ele
vivia no pátio atrás do meu em East Hollywood.
– Hank
– me disse –, quando eu cumpria pena, vivia em encrenca. O
diretor vivia me jogando na solitária. Mas eu gostava da solitária.
O diretor vinha, suspendia a tampa, olhava pra dentro, e uma vez me
perguntou:
“– JÁ
BASTA? ESTÁ PRONTO PRA SAIR DAÍ?
“Eu
peguei um pouco do meu cocô e joguei na cara dele. O cara fechou a
tampa e me deixou lá embaixo. Eu simplesmente fiquei lá. Quando o
diretor voltou, não suspendeu inteiramente a tampa.
“– BEM,
JÁ BASTA?
“– DE
JEITO NENHUM – berrei de volta.
“Finalmente,
ele me tirou de lá.
“– ELE
GOSTA DEMAIS DAÍ – disse aos guardas. – TIREM ESSE PUTO DAÍ!”
Sam
era um grande praça, depois se meteu no jogo. Não podia pagar o
aluguel, vivia no Gardena, dormia nos banheiros de lá e recomeçava
a jogar assim que acordava. Finalmente foi despejado do apartamento.
Eu o localizei num minúsculo quartinho no bairro coreano. Ele se
sentava num canto.
– Hank,
tudo que consigo beber é leite, mas volta imediatamente. Só que os
médicos dizem que eu não tenho nada.
Duas
semanas depois, estava morto. O cara que partilhava minha filosofia
sobre as pessoas.
– Escuta
– eu disse a Sarah –, não está acontecendo nada aqui. Isto é a
morte. Vamos dar o fora.
– Temos
todos os drinques grátis que precisamos...
– Não
vale a pena.
– Mas
a noite é uma criança, talvez aconteça alguma coisa.
– Só
se eu fizer acontecer, e não estou no estado de espírito.
– Vamos
esperar só um pouco mais...
Eu
sabia o que ela queria dizer. Para nós, era o fim de Hollywood. No
todo, ela gostava mais daquele mundo que eu. Não muito, mas um
pouco. Começara a estudar para ser atriz.
Contudo,
eram só pessoas paradas, só isso. As mulheres não eram bonitas,
nem os homens interessantes. Chatíssimo. A chatice na verdade
chegava a doer.
– Eu
vou explodir se não sair daqui – eu disse a Sarah.
– Tudo
bem – ela disse –, vamos embora.
O
bom e velho Frank estava lá embaixo com a limusine.
– Estão
saindo cedo – ele disse.
– Um-hum
– eu disse.
Frank
nos instalou atrás e encontramos uma nova garrafa de vinho na
limusine. Abrimos enquanto nosso homem de confiança tomava a
autoestrada do Porto em direção ao sul.
– Ei,
Frank, quer um gole?
– Claro,
cara!
Apertou
um botão, e a pequena divisória de vidro baixou. Passei a garrafa.
Dirigindo
em frente, ele tomou uma golada da garrafa de vinho. Eu não sei, mas
de certa forma aquilo tudo parecia muito estranho e engraçado, e
Sarah e eu começamos a rir.
Finalmente,
a noite estava viva.
Charles Bukowski, em Hollywood
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