segunda-feira, 1 de julho de 2024

Hollywood | 46


A festa pós-première era no Copperfield, na Avenida La Brea. Frank parou na frente, deixou-nos saltar e avançamos para a entrada debaixo de mais flashes. Ocorreu-me que eles não sabiam a quem fotografavam. Se a gente saltava de uma limusine, tinha direito.
Reconheceram-nos à entrada e deixaram-nos entrar para o meio de um monte de gente, todos espremidos e com copos de vinho tinto na mão. Formavam grupos de três, quatro ou mais pessoas, conversando ou caladas. Não havia ar-condicionado, e embora estivesse fresco lá fora, ali dentro fazia calor, muito calor. Tinha gente demais sugando o oxigênio.
Sarah e eu sacamos nosso vinho e ficamos ali, tentando bebê-lo. O vinho era muito abrasivo. Não há nada pior que vinho tinto barato, a não ser vinho branco que se deixou esquentar.
Quem são essas pessoas, Sarah? Que querem aqui?
Algumas são do ramo, outras são da periferia do ramo, e outras só estão aqui porque não podem pensar em outro lugar.
Que estão fazendo?
Algumas tentando fazer contatos, outras permanecer em contato. Algumas vão a todas as funções como esta que podem. Há também o pessoal da imprensa.
A sensação no ar não era boa. Faltava alegria. Aqueles eram os sobreviventes, os cavadores, os tubarões, os ninguéns. As almas penadas conversavam e conversavam, e fazia calor, calor, calor.
Então um cara num terno caro se aproximou.
Vocês não são o Sr. e a Sra. Chinaski?
Sim – eu disse.
O lugar de vocês não é aqui embaixo. É lá em cima. Sigam-me.
Nós o seguimos.
Seguimo-lo escada acima até o segundo andar. Não tinha tanta gente. O cara de terno caro voltou-se para nós.
Não bebam o vinho que estão servindo aqui. Eu pego outra garrafa pra vocês.
Obrigado. Digamos duas.
Claro. Volto já.
Hank, que significa isso tudo?
Aceite. Nunca mais vai acontecer de novo.
Olhei a multidão. Tive a mesma sensação que tivera da de lá de baixo.
Imagino quem será esse cara – eu disse.
Ele voltou com duas garrafas de bom vinho e um saca-rolhas, além de novos copos.
Muito obrigado – eu disse.
De nada – ele disse. – Eu lia sua coluna no L.A. Free Press.
Não parece tão velho assim.
Não sou. Meu pai era um hippie. Eu lia o jornal depois que ele acabava.
Posso perguntar o seu nome?
Carl Wilson. Sou o dono da casa.
Oh, entendo. Bem, obrigado de novo pelo vinho.
De nada. Me diga quando quiser mais.
E foi-se. Abri uma garrafa e servi dois copos. Experimentamos. Vinho realmente bom.
Agora – eu disse a Sarah –, quem são aquelas pessoas aqui em cima? Em que são diferentes das de lá de baixo?
São as mesmas. Apenas têm mais influência, mais sorte. Dinheiro, política, família. Os da indústria trazem a família e os amigos. Capacidade e talento são secundários. Eu sei que pareço estar fazendo discurso, mas é isso aí.
Bate. Mesmo os chamados melhores filmes me parecem muito ruins.
Prefere assistir a uma corrida de cavalos.
É claro...
Jon Pinchot aproximou-se.
Meu Deus! Essas pessoas! Eu me sinto como se estivesse coberto de merda!
Dei uma risada.
Aí surgiu Francine Bowers. Estava eufórica. Fizera seu grande retorno.
Você estava muito boa, Francine – eu disse.
É – disse Jon.
Soltou o cabelo – disse Sarah.
Soltei demais?
De modo algum – eu disse.
Escuta – disse Francine –, que vinho é esse que estão bebendo? Parece coisa boa.
Tome um pouco – virei a garrafa no copo dela.
Eu também – disse Jon.
Como é que vocês ganharam essa coisa boa? – perguntou Francine.
O pai do dono da casa era hippie. Os dois liam o L.A. Free Press. Eu escrevia uma coluna, “Notas de um Homem de Neanderthal”.
E ficamos ali calados. Não havia mais nada a dizer. O filme acabara.
Onde anda Jack Bledsoe? – perguntei.
Oh – disse Jon –, ele não vem a essas coisas.
Bem, eu venho – disse Francine.
Nós também – admitiu Sarah.
Alguém chamou de outro grupo.
Uma revista quer entrevistar você, Francine. Movie Mirror.
Claro – disse Francine. – Me desculpem – disse pra nós.
Claro.
Ela se afastou, majestosa e altiva. Eu me sentia bem por ela. Me sentia bem, por qualquer um que fizesse um retorno depois de ser relegado ao deserto.
Vá lá com ela, Jon – disse Sarah. – Ela se sentirá melhor...
Devo ir, Sarah?
Não, Hank, vai só tentar roubar a entrevista. E lembre-se, você cobra mil dólares agora.
Tem razão...
Tudo bem – disse Jon. – Vou lá.
Foi, lá.
Aproximou-se um jovem com um gravador.
Eu sou do Herald Examiner. Faço a coluna “Fale e Conte”. Que tal acha que saiu o filme?
Você tem mil dólares? – perguntou Sarah.
Sarah, isso é só papo-furado, tá tudo bem.
Bem, que tal acha que saiu o filme?
É um filme acima da média. Muito depois de os Oscars deste ano serem esquecidos, A Dança de Jim Beam estará sendo exibido de vez em quando nas salas de arte. E surgirá na TV de vez em quando, se o mundo durar.
Pensa mesmo isso?
Penso. E à medida que ele for sendo revisto várias vezes, as pessoas descobrirão novos sentidos nos diálogos e cenas, sentidos que ninguém pretendeu. Elogiar demais e de menos é a norma em nossa sociedade.
Os bebuns falam daquele jeito?
Alguns falam, até alguém os matar.
Você parece ter um alto conceito desse filme.
Não é que seja tão bom. É só que os outros são muito ruins.
Qual o filme que você considera o melhor que já viu?
Eraserhead.
Eraserhead?
É.
E o segundo em sua lista?
Quem tem Medo de Virginia Woolf?
Aí Carl Wilson voltou.
Chinaski, tem um cara lá embaixo que diz conhecer você. Quer subir. Um tal John Galt.
Deixa ele subir, por favor.
Bem, obrigado, Chinaski – disse o cara do Herald Examiner.
De nada.
Desarrolhei a segunda garrafa e servi mais duas para a gente. Sarah aguentava a bebida admiravelmente bem. Só se tornava faladora quando estávamos a sós. E então falava com sensatez, também.
Lá estava John Galt. Big John Galt. Ele se aproximou.
Hank e eu nunca apertamos as mãos – sorria. – Oi, Sarah – disse –, tem esse cara sob controle?
Tenho, John.
Porra, pensei, conheço tantos caras chamados John.
Os nomes bíblicos permanecem. John, Mark, Peter, Paul.
Big John Galt tinha boa aparência. Os olhos haviam ficado mais bondosos. A bondade chegava por fim aos melhores. Havia menos egoísmo. Menos medo. Menos competitividade.
Está com boa aparência, baby – eu disse a ele.
Você parece melhor do que há 25 anos – ele disse.
Melhor bebida, John.
São as vitaminas e comidas saudáveis – disse Sarah. – Nada de carne vermelha, sal, açúcar.
Se algum dia se publicar isso, as vendas de meus livros vão desabar, John.
Seu material vai vender sempre, Hank. Até uma criança pode ler.
Big John Galt. Porra, que salva-vida tinha sido. Quando eu trabalhava para os correios, ia para a casa dele, em vez de comer, dormir ou fazer tudo mais. Big John estava sempre lá. Sustentado por uma dona. As donas sempre sustentavam Big John.
Hank, quando eu trabalho, não sou feliz. Quero ser feliz – ele dizia.
Havia sempre aquela grande tigela de baratos na mesa de café, entre nós. Geralmente cheia até a borda de pílulas e cápsulas.
Pegue uma.
Eu metia a mão e comia-as como doce.
John, esta merda vai acabar destruindo seu cérebro.
Cada homem é diferente, Hank, o que destrói um não afeta outro.
Noites maravilhosas de bobagens. Eu trazia minha cerveja e engolia as pílulas. John fora o cara mais lido que eu já conhecera, mas sem ser pedante. No entanto, era esquisito. Talvez fosse o barato.
Às vezes, às três ou quatro horas da manhã, ele tinha um impulso de ir vasculhar latas de lixo e quintais. Eu ia com ele.
Merda, John, é só um resto velho que alguém jogou fora.
Eu quero.
A casa toda era cheia de lixo. Montes de lixo por toda parte. Quando se queria sentar num sofá, era preciso afastar para um lado um monte de lixo. E as paredes eram cobertas de dísticos e estranhas manchetes de jornais. Tudo meio fora de esquadro. Como as últimas palavras do último maníaco da terra. No porão da casa havia milhares de livros empilhados, inchados, molhados e apodrecidos pela umidade. Ele os lia todos e se saía bem. Precisava de um mínimo para viver e era melhor ninguém se meter num jogo de xadrez com ele, nem numa luta até a morte. Era uma maravilha. Creio que naquele tempo eu tinha muita pena de mim mesmo e ele me fez ver isso. Mas acima de tudo aquela época e aquelas horas eram divertidas. Eu me alimentava de Big John quando mais nada havia em volta. Ele também era escritor. E mais tarde eu dei sorte no mundo e ele não. John escrevia uns poemas de bastante força, mas entre um tempo e outro havia espaços em que parecia vazio. Ele me explicou:
Não quero ser famoso, só quero me sentir bem.
Foi um dos melhores leitores de poesia, dele mesmo ou de qualquer outro, que já ouvi. Era um belo homem. E depois, depois de minha sorte, quando eu citava John Galt aqui e ali, recebia o mesmo retorno: “Não vejo o que Chinaski vê nesse velho fanfarrão”. Os que me tinham aceito e à minha obra não aceitavam a ele e à sua obra, e eu me perguntava se talvez minha obra não era feita para idiotas. O que eu não podia evitar. Um pássaro voa, uma serpente se arrasta, eu mudo fitas de máquina de escrever.
De qualquer modo, era bom tornar a ver John Galt. Ele trazia uma nova dona consigo.
Esta é Lisa – disse. – Também escreve poesia.
Lisa saltou dentro e pôs-se a falar. Armou uma tempestade de palavras e John apenas ficou ali parado. Talvez fosse a noite dela, mas falava como uma feminista dos velhos tempos. O que está direito, para elas, só que elas tendem a consumir o oxigênio e já fazia calor demais ali dentro por falta de ar fresco. Ela falava e falava, contando-nos tudo. John e ela muitas vezes recitavam juntos. Eu já ouvira falar de Bab Danish?
Não – respondi.
Bem, Bab Danish era de cor negra e mulher, e quando recitava usava grandes argolas, e como era muito apaixonada as argolas saltavam para cima e para baixo, enquanto o irmão dela, Tip, fazia o fundo musical das suas leituras. Eu devia ouvi-la.
Hank não vai a recitais de poesia – disse Sarah –, mas eu ouvi Bab Danish e gosto muito dela.
John, eu e Bab vamos dar um recital no Beyond Baroque na próxima quarta à noite, vocês vêm?
Eu provavelmente irei – disse Sarah. E provavelmente iria.
Dei então uma boa olhada em John Galt. Ele parecia delicado e bom, mas eu via em seus olhos um profundo sofrimento que nunca vira antes. Para um homem que queria ser feliz, parecia alguém que perdera dois peões nas primeiras jogadas de uma partida de xadrez, sem ganhar vantagem alguma.
Aí o cara do Herald Examiner voltou.
Sr. Chinaski – disse –, eu queria lhe fazer outra pergunta.
Apresentei-lhe John Galt e Lisa.
John Galt – eu disse – é o maior poeta não descoberto dos Estados Unidos. Esse homem me ajudou a seguir em frente quando tudo mais me mandava parar.
Bem, Sr. John Galt.
Hank e eu nos conhecemos há uns vinte anos...
Sarah e eu nos afastamos.
Parece que, com Lisa, John está com tudo – eu disse.
Talvez seja bom pra ele.
Talvez.
Mais pessoas haviam subido. Parecia que ninguém se fora. O que havia ali? Contatos? Oportunidades? Valia a pena? Não seria melhor não estar no show business? Não, não. Quem quer ser jardineiro ou motorista de táxi? Quem quer ser consultor de impostos? Não éramos todos artistas? Não estavam nossas mentes acima disso? Mais dispostas a sofrer daquele jeito que de outro? Pelo menos aquele parecia melhor.
Nossa segunda garrafa estava quase vazia.
Aí Jon Pinchot voltou.
Jack Bledsoe está aqui. Quer falar com você.
Onde está ele?
Ali, junto da porta.
E sem dúvida lá estava Jack Bledsoe, encostado no umbral da porta com seu sorriso famoso e sensível.
Sarah e eu nos aproximamos dele. Estendi a mão e apertei a de Jack.
Pensei na frase de John Galt: “Eu e Hank nunca apertamos as mãos”.
Belo espetáculo, Jack, grande desempenho. Estou realmente feliz pela sua participação.
Enganei bem?
Acho que sim.
Eu não queria pôr muito da sua voz, nem do seu porre...
Conseguiu.
Só quis aparecer pra cumprimentar você.
Essa me pegou. Eu não sabia como reagir.
Bem, diabos, baby, a gente pode tomar um porre juntos qualquer dia desses.
Eu não bebo.
Oh, ééé... Bem, obrigado, Jack, foi um prazer você ter vindo. Que tal uma saideira, de qualquer modo?
Não, já vou indo...
Voltou-se e desceu a escada.
Estava sozinho. Sem guarda-costas nem motoqueiros. Garoto bacana, belo sorriso.
Adeus, Jack Bledsoe.

Arranquei outra garrafa de Carl Wilson e fiquei por ali com Sarah e as outras pessoas, mas na verdade nada acontecia. Só pessoas paradas por ali. Talvez esperassem que eu me embebedasse e ficasse insano e xingasse todo mundo, como às vezes fazia nas festas. Mas eu duvidava disso. Elas eram simplesmente embotadas por dentro. Não tinham nada a fazer senão permanecer dentro de seus eus, que na verdade não estavam exatamente ali. Isso não doía muito. Era um lugar suave para se estar.
Quanto a mim, minha visão principal da vida era evitar o máximo de pessoas possível. Quanto menos pessoas via, melhor me sentia. Conheci outro cara que partilhava de minha filosofia, Sam, o Cara dos Puteiros. Ele vivia no pátio atrás do meu em East Hollywood.
Hank – me disse –, quando eu cumpria pena, vivia em encrenca. O diretor vivia me jogando na solitária. Mas eu gostava da solitária. O diretor vinha, suspendia a tampa, olhava pra dentro, e uma vez me perguntou:
“– JÁ BASTA? ESTÁ PRONTO PRA SAIR DAÍ?
Eu peguei um pouco do meu cocô e joguei na cara dele. O cara fechou a tampa e me deixou lá embaixo. Eu simplesmente fiquei lá. Quando o diretor voltou, não suspendeu inteiramente a tampa.
“– BEM, JÁ BASTA?
“– DE JEITO NENHUM – berrei de volta.
Finalmente, ele me tirou de lá.
“– ELE GOSTA DEMAIS DAÍ – disse aos guardas. – TIREM ESSE PUTO DAÍ!”
Sam era um grande praça, depois se meteu no jogo. Não podia pagar o aluguel, vivia no Gardena, dormia nos banheiros de lá e recomeçava a jogar assim que acordava. Finalmente foi despejado do apartamento. Eu o localizei num minúsculo quartinho no bairro coreano. Ele se sentava num canto.
Hank, tudo que consigo beber é leite, mas volta imediatamente. Só que os médicos dizem que eu não tenho nada.
Duas semanas depois, estava morto. O cara que partilhava minha filosofia sobre as pessoas.
Escuta – eu disse a Sarah –, não está acontecendo nada aqui. Isto é a morte. Vamos dar o fora.
Temos todos os drinques grátis que precisamos...
Não vale a pena.
Mas a noite é uma criança, talvez aconteça alguma coisa.
Só se eu fizer acontecer, e não estou no estado de espírito.
Vamos esperar só um pouco mais...
Eu sabia o que ela queria dizer. Para nós, era o fim de Hollywood. No todo, ela gostava mais daquele mundo que eu. Não muito, mas um pouco. Começara a estudar para ser atriz.
Contudo, eram só pessoas paradas, só isso. As mulheres não eram bonitas, nem os homens interessantes. Chatíssimo. A chatice na verdade chegava a doer.
Eu vou explodir se não sair daqui – eu disse a Sarah.
Tudo bem – ela disse –, vamos embora.

O bom e velho Frank estava lá embaixo com a limusine.
Estão saindo cedo – ele disse.
Um-hum – eu disse.
Frank nos instalou atrás e encontramos uma nova garrafa de vinho na limusine. Abrimos enquanto nosso homem de confiança tomava a autoestrada do Porto em direção ao sul.
Ei, Frank, quer um gole?
Claro, cara!
Apertou um botão, e a pequena divisória de vidro baixou. Passei a garrafa.
Dirigindo em frente, ele tomou uma golada da garrafa de vinho. Eu não sei, mas de certa forma aquilo tudo parecia muito estranho e engraçado, e Sarah e eu começamos a rir.
Finalmente, a noite estava viva.

Charles Bukowski, em Hollywood

Nenhum comentário:

Postar um comentário