terça-feira, 9 de julho de 2024

Guararavacã do Guaicuí




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Lugar perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã, nome que chamava-se. Ali era bom? Sossegava. Mas, tem horas em que me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista, não se carecia de fazer nada. Nós estávamos em vinte e três homens.Titão Passos determinou uma esquadrazinha deles ― com Alaripe em testa! fossem para a outra banda do morro, baixada própria da Guararavacã, esperar o que não acontecesse. Nós ficamos.
O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era! bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão ― que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil! curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe ― fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, nunca faltava tempo para à-tôa se permanecer. Dormi, sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro dágua. As vezes chegavam a nado até em cima duma ilha comprida, onde o capim era lindo verdêjo. O que é de paz, cresce por si! de ouvir boi berrando à forra, me vinha ideia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber. E eu não tinha notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo ― o senhor pode raciocinar. Eu queria uma mulher, qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente, tanto, que até um referver de mau desejo, no meio da quebreira, serve como benefício.
Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados ― e ali era vau de gado. Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago... ― foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dór-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei ― um riachim à-tóa de branquinho ― olhou para mim e me disse: ― Não... ― e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flór. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo ― Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava.
Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha ideia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a ideia da gente não dá para se entender ― e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto! ― Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... ― que era como se Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim! que foi que, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir dele.
A Guararavacã do Guaicuí! o senhor tome nota deste nome. Mas, não tem mais, não encontra ― de derradeiro, ali se chama é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia de minha vida. Guararavacã ― o senhor veja, o senhor escreva. As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o mundo quer ficar sem sertão. Caixeirópolis, ouvi dizer. Acho que nem coisas assim não acontecem mais. Se um dia acontecer, o mundo se acaba. Guararavacã. O senhor vá escutando.
Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim ― de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu! falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei ― na hora. Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era na borda-da-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por pêjo de vento ― o que vem da Serra do Espinhaço ― um vento com todas almas. Arrepio que fuchicava as folhagens ali, e ia, lá adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre, pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em campim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais. O senhor vê! o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Mas, lá na Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda pastava, meu vizinho, cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aos casais, corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campo claro. Mas, nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho, vindo do dentro do mato, de um macuco ― sempre solerte. Era mês de macuco ainda passear solitário ― macho e fêmea desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinha andando, sarandando, macucando! aquilo ele ciscava no chão, feito galinha de casa. Eu ri ― Vigia este, Diadorim! ― eu disse; pensei que Diadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. O macuco me olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quase endireito em mim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou os olhos. Aquele pássaro procurava o que? Vinha me pôr quebrantos. Eu podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei. Peguei só num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu um susto, trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a cabeça, cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de costas, fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro para o bom adormecer.
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente ― Diadorim, meu amor... Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas ― como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim ― que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas ― de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.
O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí, levantei.
Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé ― isso é que vale.
Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e ósso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado. ― Hê, Riobaldo, eh, uê, você carece de alguma coisa? ― ele me perguntou, quem-me-vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. Se é o que é ― eu pensei ― eu estou meio perdido... Acertei minha ideia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! ― com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia ― virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso ― consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro ― no mato ― um tiraço que ribombou. ― Ao que foi? ― me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. ― Acho que um macaquinho miúdo, que acho que errei... ― eu expendi. Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim, encarando, para duro, calado comigo, me dizer: Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!... Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! ― como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?
[…]

Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas

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