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Lugar
perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã, nome que chamava-se.
Ali era bom? Sossegava. Mas, tem horas em que me pergunto: se melhor
não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito,
sim senhor. Não se tinha perigos em vista, não se carecia de fazer
nada. Nós estávamos em vinte e três homens.Titão Passos
determinou uma esquadrazinha deles ― com Alaripe em testa! fossem
para a outra banda do morro, baixada própria da Guararavacã,
esperar o que não acontecesse. Nós ficamos.
O
que, por começo, corria destino para a gente, ali, era! bondosos
dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do
pássaro rexenxão ― que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até
brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem
necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se
levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem
rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no
campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia
bom peixe novo, pescado fácil! curimatã ou dourado; cozinheiro era
o Paspe ― fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta.
Também razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e
irmãos, nunca faltava tempo para à-tôa se permanecer. Dormi,
sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia
muito se esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam
para a beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro
dágua. As vezes chegavam a nado até em cima duma ilha comprida,
onde o capim era lindo verdêjo. O que é de paz, cresce por si! de
ouvir boi berrando à forra, me vinha ideia de tudo só ser o passado
no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber. E eu não
tinha notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo ― o senhor
pode raciocinar. Eu queria uma mulher, qualquer. Tem trechos em que a
vida amolece a gente, tanto, que até um referver de mau desejo, no
meio da quebreira, serve como benefício.
Um
dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão,
escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas
léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu
tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde,
com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados ― e ali era vau de gado.
Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho
do vago... ― foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me
desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como
não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a
sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dór-de-cabeça,
e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me
serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem
aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que
defrontei ― um riachim à-tóa de branquinho ― olhou para mim e
me disse: ― Não... ― e eu tive que obedecer a ele. Era para eu
não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O
bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei,
baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado
num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira
flór. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas
lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas
fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte.
Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de
cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento,
tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre
adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono.
Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é
absurdo ― Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a
uns dois passos de mim, me vigiava.
Sério,
quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha
notado minha ideia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não
sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O calor do dia
abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre,
como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele
verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice,
querendo me contar coisas que a ideia da gente não dá para se
entender ― e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim
ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo
meu dormir, era engraçado, era para se dar feliz risada. Não dei.
Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um
decreto! ― Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar
para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... ― que era como se
Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, digo ao
senhor como foi que eu gostava de Diadorim! que foi que, em hora
nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir dele.
A
Guararavacã do Guaicuí! o senhor tome nota deste nome. Mas, não
tem mais, não encontra ― de derradeiro, ali se chama é
Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não
dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus
destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente
não podendo mais voltar para trás? Travessia de minha vida.
Guararavacã ― o senhor veja, o senhor escreva. As grandes coisas,
antes de acontecerem. Agora, o mundo quer ficar sem sertão.
Caixeirópolis, ouvi dizer. Acho que nem coisas assim não acontecem
mais. Se um dia acontecer, o mundo se acaba. Guararavacã. O senhor
vá escutando.
Aquele
lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim ― de
amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente,
que aquilo se esclareceu! falei comigo. Não tive assombro, não
achei ruim, não me reprovei ― na hora. Melhor alembro. Eu estava
sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu
estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas
armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu
mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é
que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era na
borda-da-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por
pêjo de vento ― o que vem da Serra do Espinhaço ― um vento com
todas almas. Arrepio que fuchicava as folhagens ali, e ia, lá
adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão
branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre,
pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma
vereda em campim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades, dessas
que respondem ao vento; saudade dos Gerais. O senhor vê! o remôo do
vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade.
Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor
pega o silêncio põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros
lugares. Mas, lá na Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda
pastava, meu vizinho, cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem,
aos casais, corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campo
claro. Mas, nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho,
vindo do dentro do mato, de um macuco ― sempre solerte. Era mês de
macuco ainda passear solitário ― macho e fêmea desemparelhados,
cada um por si. E o macuco vinha andando, sarandando, macucando!
aquilo ele ciscava no chão, feito galinha de casa. Eu ri ― Vigia
este, Diadorim! ― eu disse; pensei que Diadorim estivesse em voz de
alcance. Ele não estava. O macuco me olhou, de cabecinha alta. Ele
tinha vindo quase endireito em mim, por pouco entrou no rancho. Me
olhou, rolou os olhos. Aquele pássaro procurava o que? Vinha me pôr
quebrantos. Eu podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não
dei. Peguei só num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu
um susto, trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a
cabeça, cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de
costas, fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro
para o bom adormecer.
O
nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei
com ele. Mel se sente é todo lambente ― Diadorim, meu amor... Como
era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse
para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim
escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por
fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de
todas as outras pessoas ― como quando a chuva entre-onde-os-campos.
Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia.
Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim ―
que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode
explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do
jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho
pegar. Mas ― de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me
transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela
hora, eu pudesse morrer, não me importava.
O
que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes meses, de
estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase sem
espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em mim, mas
amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim,
sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o
claro que rompia, rebentava. Era e era. Sobrestive um momento,
fechados os olhos, sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí,
levantei.
Levantei,
por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o
que a gente pode pensar em pé ― isso é que vale.
Aí
fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o Drumõo,
o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e ósso; eu carecia
de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha
inventado. ― Hê, Riobaldo, eh, uê, você carece de alguma coisa?
― ele me perguntou, quem-me-vê, com o certo espanto. Eu pedi um
tição, acendi um cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar,
passos que dava. Se é o que é ― eu pensei ― eu estou meio
perdido... Acertei minha ideia: eu não podia, por lei de rei,
admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar
esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu
devia de quebrar o morro: acabar comigo! ― com uma bala no lado de
minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia ―
virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas.
Rangi nisso ― consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio
salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro ― no mato ― um
tiraço que ribombou. ― Ao que foi? ― me gritaram pergunta,
sempre riam do tiro tolo dado. ― Acho que um macaquinho miúdo, que
acho que errei... ― eu expendi. Tanto também, fiz de conta
estivesse olhando Diadorim, encarando, para duro, calado comigo, me
dizer: Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...
Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso,
sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo
acreditei. Ah, meu senhor! ― como se o obedecer do amor não fosse
sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares,
encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que
vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?
[…]
Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas
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