sexta-feira, 5 de julho de 2024

Feito esquiadores no topo da montanha


Naquela primeira noite, na rua Pepper, no número 37, ficou combinado.
Ele a acompanhou de volta e disse que no sábado, às quatro da tarde, passaria na casa dela.
A rua estava escura e vazia.
Nada mais foi dito.
Quando o sábado chegou, ele apareceu de barba feita e com margaridas.
Demorou um pouco até ela tocar piano e, quando tocou, Michael ficou ao seu lado, o dedo pousado na última tecla da direita.
Ela assentiu, para que ele a apertasse.
Acontece que a nota mais alta de um piano é instável.
Se você não apertar forte o bastante, ou do jeito certo, não sai nada.
De novo — disse ela, e sorriu, nervosa, e ele sorriu também, nervoso, e dessa vez deu certo.
Como um tapinha na mão de Mozart.
Ou no pulso de Chopin ou Bach.
E dessa vez foi ela:
Havia hesitação e constrangimento, mas ela lhe deu um beijo na nuca, bem de leve, bem suave.
E então comeram os biscoitinhos amanteigados.
Até não sobrar nenhum.

***

Quando penso nisso hoje, recapitulo tudo que me disseram, e especialmente tudo que disseram a Clay, e me pergunto o que é mais importante.
Imagino que tenha sido o seguinte:
Durante seis ou sete semanas, eles se viram, alternando pontos de encontro, pra lá e pra cá na rua Pepper. A todo instante, Michael Dunbar tinha a impressão de que algo estava brotando em meio à novidade e ao cabelo louro de Penélope. Quando a beijava, sentia o gosto da Europa, mas também o gosto da ausência de Abbey. Quando se levantava para ir embora e ela apertava suas mãos, Michael sentia o toque de um refugiado, e era ela, mas também ele.

***

Finalmente, ele contou a ela, nos degraus do número 37.
Era domingo de manhã, um dia cinza e ameno, e os degraus estavam frios — e ele já tinha sido casado, e se divorciado; o nome dela era Abbey Dunbar. Ele ficou prostrado no chão da garagem.
Passaram um carro e uma garota de bicicleta.
Ele contou que ficou arrasado, seguiu em frente, aguentou firme, sozinho. Contou que queria ter ido ao encontro dela muito antes. Queria, mas não foi capaz. Não poderia arriscar uma queda como aquela de novo, não mais.
É curioso ver como se desenrolam as confissões:
Admitimos quase tudo, e é o quase que conta.
No caso de Michael Dunbar, duas coisas foram deixadas de fora.
Em primeiro lugar, ele simplesmente não admitiu que também era capaz de produzir algo próximo à beleza — as pinturas.
Além disso, como extensão do primeiro item, ele não revelou que, no fundo, nos recônditos mais obscuros de sua alma, seu maior medo não era ser deixado novamente, mas condenar alguém a ser o segundo melhor, a ficar em uma posição inferior. Era assim que ele se sentia em relação a Abbey e à vida que um dia tivera e perdera.

***

Mas até aí, que escolha ele tinha?
Aquele era um mundo onde a lógica era desafiada por entregadores de piano briguentos e desajeitados. Onde o destino poderia bater à porta, ao mesmo tempo pálido e corado. Por Deus, até Stálin estava envolvido. Como ele poderia dizer não?
Há quem diga que não nos cabe tomar decisões. Talvez seja verdade.
Achamos que estamos no controle, mas não estamos.
Damos voltas na vizinhança.
Passamos por certa porta.
Quando apertamos uma tecla de piano e não sai nada, apertamos de novo, porque temos que apertar. Precisamos ouvir algo e esperamos que não seja um erro...
Para começo de conversa, não era nem para Penélope estar ali.
Não era para nosso pai ter se divorciado.
Mas lá estavam, seguindo em frente, dando o melhor de si rumo a uma linha de chegada. Esperaram a contagem regressiva, feito esquiadores no topo da montanha, e pressionaram a tecla na hora do . O resto é história.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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