1
Esta
história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite
enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua
altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde
também a lua desapareceu.
Nada
agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando
um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela
árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.
Algumas
árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto
das próprias copas e o limite de seu destino. Outras já haviam
saído da terra em bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que
procurava concentradamente servir a uma simetria. Se esta era
discernível do alto da sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao
nível dos canteiros não descobria essa ordem; entre os canteiros o
caminho se pormenorizava em pequenas pedras talhadas.
Sobretudo
numa das alamedas o Ford estava parado há tanto tempo que já fazia
parte do grande jardim entrelaçado e de seu silêncio.
No
entanto, de dia a paisagem era outra, e os grilos vibrando ocos e
duros deixavam a extensão inteiramente aberta, sem uma sombra.
Enquanto o cheiro era o seco cheiro de pedra exasperada que o dia tem
no campo. Ainda nesse mesmo dia Martim ficara de pé na sacada
procurando, com inútil obediência, não perder nada do que se
passava. Mas o que se passava não era muito: antes de começar a
estrada que se perdia em suspensa poeira de sol, apenas o jardim nada
mais que contemplável; compreensível e simétrico do alto da
sacada; emaranhado quando se fazia parte dele – e esta lembrança o
homem há duas semanas guardava nos pés com aplicação cuidadosa,
conservando-a para um uso eventual. Por mais atenção, no entanto, o
dia era inescalável; e como um ponto desenhado sobre o mesmo ponto,
a voz do grilo era o próprio corpo do grilo, e nada informava. A
única vantagem do dia é que na extrema luz o carro se tornava um
pequeno besouro que facilmente alcançaria a estrada.
Mas
enquanto o homem dormia o carro se tornava enorme como é gigantesca
uma máquina parada. E de noite o jardim era ocupado pela secreta
urdidura com que o escuro se mantém, num trabalho cuja existência
os vaga-lumes inesperadamente traem; certa umidade também denunciava
o labor. E a noite era um elemento em que a vida, por se tornar
estranha, era reconhecível.
Foi
nessa noite que, atingindo o hotel vazio e adormecido, o motor do
carro se sacudiu. Lentamente o escuro se pusera em movimento.
Em
vez de acordar e diretamente ouvir, foi através de um sono ainda
mais profundo que Martim passou para o outro lado da escuridão e
ouviu o ruído que as rodas fizeram cuspindo areia seca. Depois seu
nome foi pronunciado, destacado e limpo, de algum modo agradável de
se ouvir. Era o alemão quem falara. No sono Martim fruiu o som do
próprio nome. Em seguida o arrebatado grito de uma ave, cujas asas
haviam sido espantadas na sua imobilidade, esse modo como o espanto
parece com a grande alegria.
Quando
o silêncio se refez dentro do silêncio, Martim adormeceu ainda mais
longe. Embora no fundo do sono alguma coisa ecoasse difícil,
tentando se organizar. Até que, sem nenhum sentido e livre do
incômodo de precisar ser compreendido, o ruído do carro se refez na
sua memória com as minúcias mais finamente discriminadas. A ideia
do carro despertou um aviso suave que ele não entendeu de pronto.
Mas que já espalhara pelo mundo um vago alarme, cujo centro
irradiador era o próprio homem: “assim, pois, eu”, pensou seu
corpo se comovendo. Continuou deitado, remotamente gozando.
Há
duas semanas aquele homem viera para o hotel, encontrado no meio da
noite quase sem surpresa, de tal modo a exaustão tornava tudo
possível. Era um hotel vazio, só com o alemão e o criado, se
criado era. E durante duas semanas, enquanto Martim recuperava as
forças num sono quase ininterrupto, o carro continuara parado numa
das alamedas, com as rodas enterradas na areia. E tão imóvel, tão
resistente ao hábito de incredulidade do homem e ao seu cuidado em
não se deixar ludibriar, que Martim terminara finalmente por
considerá-lo à sua disposição.
Mas
a verdade é que já naquela noite de pés cambaleantes – quando
ele enfim se deixara cair meio morto numa cama verdadeira com
verdadeiros lençóis – já naquele instante o carro representara a
garantia de nova fuga, caso os dois homens se mostrassem mais
curiosos pela identidade do hóspede. E este tombara confiante no
sono como se ninguém jamais conseguisse tirar de sua firme garra,
que prendia apenas o lençol, a roda imaginária de um volante.
O
alemão, no entanto, nada lhe havia perguntado e o criado, se o era,
mal o olhara. A relutância com que o tinham aceito não vinha da
desconfiança, mas do fato do hotel não ser mais hotel havia muito
tempo – há tanto tempo quanto estava inutilmente à venda,
explicara-lhe o alemão, e, para não ter um ar suspeito, Martim
balançara a cabeça sorrindo. Enquanto não tinham construído a
estrada nova, era por ali que passavam os carros, e o casarão
isolado não poderia estar melhor situado como pouso forçado para
pernoites. Quando a nova estrada fora traçada e asfaltada a
cinquenta quilômetros dali, desviando para longe o curso de
passagem, o lugar todo morrera e não havia mais motivo de alguém
vir a precisar de hotel na zona agora entregue ao vento. Mas apesar
da indiferença aparente dos dois homens, a obstinada procura de
segurança de Martim se ancorara naquele carro sobre o qual também
as aranhas, tranquilizadas pela imobilidade envernizada, haviam
executado o aéreo trabalho ideal.
Era
esse carro que em plena noite se desenraizara com rouquidão.
Dentro
do silêncio de novo intato, o homem agora olhou estupidamente o teto
invisível que no escuro era tão alto quanto o céu. Largado de
costas na cama, tentou num esforço de prazer gratuito reconstituir o
ruído das rodas, pois enquanto não sentia dor era de um modo geral
prazer que ele sentia. Da cama não via o jardim. Um pouco de bruma
entrava pelas venezianas abertas, o que se denunciou ao homem pelo
cheiro de algodão úmido e por uma certa ânsia física de
felicidade que a cerração dá. Fora apenas um sonho, então.
Cético, embora, ele se ergueu.
Nas
trevas nada viu da sacada, e nem sequer adivinhou a simetria dos
canteiros. Algumas manchas mais negras que o próprio negrume
indicaram o provável lugar das árvores. O jardim não passava ainda
de um esforço de sua memória, e o homem olhou quieto, adormecido.
Um ou outro vaga-lume tornava mais vasta a escuridão.
Esquecido
do sonho que o guiara até a sacada, o corpo do homem achou bom se
sentir saudavelmente de pé: é que o ar suspenso mal alterava a
escura posição das folhas. Ali, pois, deixou-se ficar, dócil,
atordoado, com a sucessão de quartos desocupados atrás de si. Sem
emoção aqueles quartos vazios repetiam-no e repetiam-no até se
apagarem aonde o homem já não se alcançava mais. Martim suspirou
dentro de seu largo sono acordado. Sem insistir demais, tentou
atingir a noção dos últimos quartos como se ele próprio se
tivesse tornado grande demais e espalhado, e, por algum motivo que já
esquecera, precisasse obscuramente se recolher para talvez pensar ou
sentir. Mas não conseguiu, e estava muito aprazível. Assim ele
ficou, com o ar cortês de um homem que levou uma pancada na cabeça.
Até que – como quando um relógio para de bater e só então nos
adverte que antes batia – Martim percebeu o silêncio e dentro do
silêncio a sua própria presença. Agora, através de uma
incompreensão muito familiar, o homem começou enfim a ser
indistintamente ele mesmo.
Então
as coisas passaram a se reorganizar a partir dele próprio: trevas
foram sendo entendidas, ramos começaram lentamente a se formar sob o
balcão, sombras se dividiram em flores ainda irresolutas – com os
limites ocultos pelo viço imóvel das plantas, os canteiros se
delinearam cheios, macios. O homem grunhiu aprovando: com certa
dificuldade acabara de reconhecer o jardim que nessas duas semanas de
sono constituíra em intervalos a sua irredutível visão.
Foi
nesse momento que uma lua desfalecida perpassou uma nuvem em grande
silêncio, em silêncio derramou-se sobre pedras calmas,
desaparecendo em silêncio na escuridão. A cara enluarada do homem
se dirigiu então para a alameda onde o Ford estaria imóvel.
Mas
o carro desaparecera.
O
corpo inteiro do homem subitamente despertou. Num relance astuto seus
olhos percorreram a escuridão toda do jardim – e, sem um gesto de
aviso, ele se virou para o quarto em leve pulo de macaco.
Nada
porém se mexia no oco do aposento que de escuro se tornara enorme. O
homem ficou resfolegando atento e inutilmente feroz, com as mãos
avançadas para o ataque. Mas o silêncio do hotel era o mesmo da
noite. E sem limites visíveis, o quarto prolongava no mesmo
exalar-se a escuridão do jardim. Para se despertar o homem esfregou
várias vezes os olhos com o dorso de uma das mãos enquanto deixava
a outra livre para a defesa. Foi inútil sua nova sensibilidade: nas
trevas os olhos totalmente abertos não viram sequer as paredes.
Era
como se o tivessem depositado solto num campo. E enfim ele acordasse
de um longo sonho do qual haviam feito parte um hotel agora
desmanchado num chão vazio, um carro apenas imaginado pelo desejo, e
sobretudo tivessem desaparecido os motivos de um homem estar todo
expectante num lugar que também este era expectativa.
De
real só lhe restou a sagacidade que o fizera dar um pulo para
indistintamente se defender. A mesma que o levava agora a raciocinar
com inesperada lucidez que se o alemão tivesse ido denunciá-lo
levaria algum tempo para ir e voltar com a Polícia.
O
que ainda o deixava temporariamente livre – a menos que o criado
tivesse sido encarregado de vigiá-lo. E nesse caso o criado, se o
era, estaria neste mesmo instante à porta daquele mesmo quarto com o
ouvido atento ao menor movimento do hóspede.
Assim
pensou ele. E findo o raciocínio, ao qual chegara com a
maleabilidade com que um invertebrado se torna menor para deslizar,
Martim mergulhou de novo na mesma ausência anterior de razões e na
mesma obtusa imparcialidade, como se nada tivesse a ver consigo
mesmo, e a espécie se encarregasse dele. Sem um olhar para trás,
guiado por uma escorregadia destreza de movimentos, começou a descer
pela sacada apoiando pés inesperadamente flexíveis na saliência
dos tijolos. Na sua atenta remotidão o homem sentia perto da cara o
cheiro malévolo das heras quebradas como se nunca o fosse esquecer.
Sua alma agora apenas alerta não distinguia o que era ou não
importante, e a toda operação ele deu a mesma consideração
escrupulosa.
Num
pulo macio, que fez o jardim asfixiar-se em suspiro retido, ele se
achou em pleno centro de um canteiro – que se arrepiou todo e
depois se fechou. Com o corpo advertido o homem esperou que a
mensagem de seu pulo fosse transmitida de secreto em secreto eco até
se transformar em longínquo silêncio; seu baque terminou se
espraiando nas encostas de alguma montanha. Ninguém ensinara ao
homem essa conivência com o que se passa de noite, mas um corpo
sabe.
Ele
esperou um pouco mais. Até que nada aconteceu. Só então tateou com
minúcia os óculos no bolso: estavam inteiros. Suspirou com cuidado
e finalmente olhou em torno. A noite era de uma grande e escura
delicadeza.
Clarice Lispector, em A maça no escuro
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