sábado, 13 de julho de 2024

Como se faz um homem


1

Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.
Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.
Algumas árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto das próprias copas e o limite de seu destino. Outras já haviam saído da terra em bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que procurava concentradamente servir a uma simetria. Se esta era discernível do alto da sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao nível dos canteiros não descobria essa ordem; entre os canteiros o caminho se pormenorizava em pequenas pedras talhadas.
Sobretudo numa das alamedas o Ford estava parado há tanto tempo que já fazia parte do grande jardim entrelaçado e de seu silêncio.
No entanto, de dia a paisagem era outra, e os grilos vibrando ocos e duros deixavam a extensão inteiramente aberta, sem uma sombra. Enquanto o cheiro era o seco cheiro de pedra exasperada que o dia tem no campo. Ainda nesse mesmo dia Martim ficara de pé na sacada procurando, com inútil obediência, não perder nada do que se passava. Mas o que se passava não era muito: antes de começar a estrada que se perdia em suspensa poeira de sol, apenas o jardim nada mais que contemplável; compreensível e simétrico do alto da sacada; emaranhado quando se fazia parte dele – e esta lembrança o homem há duas semanas guardava nos pés com aplicação cuidadosa, conservando-a para um uso eventual. Por mais atenção, no entanto, o dia era inescalável; e como um ponto desenhado sobre o mesmo ponto, a voz do grilo era o próprio corpo do grilo, e nada informava. A única vantagem do dia é que na extrema luz o carro se tornava um pequeno besouro que facilmente alcançaria a estrada.
Mas enquanto o homem dormia o carro se tornava enorme como é gigantesca uma máquina parada. E de noite o jardim era ocupado pela secreta urdidura com que o escuro se mantém, num trabalho cuja existência os vaga-lumes inesperadamente traem; certa umidade também denunciava o labor. E a noite era um elemento em que a vida, por se tornar estranha, era reconhecível.
Foi nessa noite que, atingindo o hotel vazio e adormecido, o motor do carro se sacudiu. Lentamente o escuro se pusera em movimento.
Em vez de acordar e diretamente ouvir, foi através de um sono ainda mais profundo que Martim passou para o outro lado da escuridão e ouviu o ruído que as rodas fizeram cuspindo areia seca. Depois seu nome foi pronunciado, destacado e limpo, de algum modo agradável de se ouvir. Era o alemão quem falara. No sono Martim fruiu o som do próprio nome. Em seguida o arrebatado grito de uma ave, cujas asas haviam sido espantadas na sua imobilidade, esse modo como o espanto parece com a grande alegria.
Quando o silêncio se refez dentro do silêncio, Martim adormeceu ainda mais longe. Embora no fundo do sono alguma coisa ecoasse difícil, tentando se organizar. Até que, sem nenhum sentido e livre do incômodo de precisar ser compreendido, o ruído do carro se refez na sua memória com as minúcias mais finamente discriminadas. A ideia do carro despertou um aviso suave que ele não entendeu de pronto. Mas que já espalhara pelo mundo um vago alarme, cujo centro irradiador era o próprio homem: “assim, pois, eu”, pensou seu corpo se comovendo. Continuou deitado, remotamente gozando.
Há duas semanas aquele homem viera para o hotel, encontrado no meio da noite quase sem surpresa, de tal modo a exaustão tornava tudo possível. Era um hotel vazio, só com o alemão e o criado, se criado era. E durante duas semanas, enquanto Martim recuperava as forças num sono quase ininterrupto, o carro continuara parado numa das alamedas, com as rodas enterradas na areia. E tão imóvel, tão resistente ao hábito de incredulidade do homem e ao seu cuidado em não se deixar ludibriar, que Martim terminara finalmente por considerá-lo à sua disposição.
Mas a verdade é que já naquela noite de pés cambaleantes – quando ele enfim se deixara cair meio morto numa cama verdadeira com verdadeiros lençóis – já naquele instante o carro representara a garantia de nova fuga, caso os dois homens se mostrassem mais curiosos pela identidade do hóspede. E este tombara confiante no sono como se ninguém jamais conseguisse tirar de sua firme garra, que prendia apenas o lençol, a roda imaginária de um volante.
O alemão, no entanto, nada lhe havia perguntado e o criado, se o era, mal o olhara. A relutância com que o tinham aceito não vinha da desconfiança, mas do fato do hotel não ser mais hotel havia muito tempo – há tanto tempo quanto estava inutilmente à venda, explicara-lhe o alemão, e, para não ter um ar suspeito, Martim balançara a cabeça sorrindo. Enquanto não tinham construído a estrada nova, era por ali que passavam os carros, e o casarão isolado não poderia estar melhor situado como pouso forçado para pernoites. Quando a nova estrada fora traçada e asfaltada a cinquenta quilômetros dali, desviando para longe o curso de passagem, o lugar todo morrera e não havia mais motivo de alguém vir a precisar de hotel na zona agora entregue ao vento. Mas apesar da indiferença aparente dos dois homens, a obstinada procura de segurança de Martim se ancorara naquele carro sobre o qual também as aranhas, tranquilizadas pela imobilidade envernizada, haviam executado o aéreo trabalho ideal.
Era esse carro que em plena noite se desenraizara com rouquidão.
Dentro do silêncio de novo intato, o homem agora olhou estupidamente o teto invisível que no escuro era tão alto quanto o céu. Largado de costas na cama, tentou num esforço de prazer gratuito reconstituir o ruído das rodas, pois enquanto não sentia dor era de um modo geral prazer que ele sentia. Da cama não via o jardim. Um pouco de bruma entrava pelas venezianas abertas, o que se denunciou ao homem pelo cheiro de algodão úmido e por uma certa ânsia física de felicidade que a cerração dá. Fora apenas um sonho, então. Cético, embora, ele se ergueu.
Nas trevas nada viu da sacada, e nem sequer adivinhou a simetria dos canteiros. Algumas manchas mais negras que o próprio negrume indicaram o provável lugar das árvores. O jardim não passava ainda de um esforço de sua memória, e o homem olhou quieto, adormecido. Um ou outro vaga-lume tornava mais vasta a escuridão.
Esquecido do sonho que o guiara até a sacada, o corpo do homem achou bom se sentir saudavelmente de pé: é que o ar suspenso mal alterava a escura posição das folhas. Ali, pois, deixou-se ficar, dócil, atordoado, com a sucessão de quartos desocupados atrás de si. Sem emoção aqueles quartos vazios repetiam-no e repetiam-no até se apagarem aonde o homem já não se alcançava mais. Martim suspirou dentro de seu largo sono acordado. Sem insistir demais, tentou atingir a noção dos últimos quartos como se ele próprio se tivesse tornado grande demais e espalhado, e, por algum motivo que já esquecera, precisasse obscuramente se recolher para talvez pensar ou sentir. Mas não conseguiu, e estava muito aprazível. Assim ele ficou, com o ar cortês de um homem que levou uma pancada na cabeça. Até que – como quando um relógio para de bater e só então nos adverte que antes batia – Martim percebeu o silêncio e dentro do silêncio a sua própria presença. Agora, através de uma incompreensão muito familiar, o homem começou enfim a ser indistintamente ele mesmo.
Então as coisas passaram a se reorganizar a partir dele próprio: trevas foram sendo entendidas, ramos começaram lentamente a se formar sob o balcão, sombras se dividiram em flores ainda irresolutas – com os limites ocultos pelo viço imóvel das plantas, os canteiros se delinearam cheios, macios. O homem grunhiu aprovando: com certa dificuldade acabara de reconhecer o jardim que nessas duas semanas de sono constituíra em intervalos a sua irredutível visão.
Foi nesse momento que uma lua desfalecida perpassou uma nuvem em grande silêncio, em silêncio derramou-se sobre pedras calmas, desaparecendo em silêncio na escuridão. A cara enluarada do homem se dirigiu então para a alameda onde o Ford estaria imóvel.
Mas o carro desaparecera.
O corpo inteiro do homem subitamente despertou. Num relance astuto seus olhos percorreram a escuridão toda do jardim – e, sem um gesto de aviso, ele se virou para o quarto em leve pulo de macaco.
Nada porém se mexia no oco do aposento que de escuro se tornara enorme. O homem ficou resfolegando atento e inutilmente feroz, com as mãos avançadas para o ataque. Mas o silêncio do hotel era o mesmo da noite. E sem limites visíveis, o quarto prolongava no mesmo exalar-se a escuridão do jardim. Para se despertar o homem esfregou várias vezes os olhos com o dorso de uma das mãos enquanto deixava a outra livre para a defesa. Foi inútil sua nova sensibilidade: nas trevas os olhos totalmente abertos não viram sequer as paredes.
Era como se o tivessem depositado solto num campo. E enfim ele acordasse de um longo sonho do qual haviam feito parte um hotel agora desmanchado num chão vazio, um carro apenas imaginado pelo desejo, e sobretudo tivessem desaparecido os motivos de um homem estar todo expectante num lugar que também este era expectativa.
De real só lhe restou a sagacidade que o fizera dar um pulo para indistintamente se defender. A mesma que o levava agora a raciocinar com inesperada lucidez que se o alemão tivesse ido denunciá-lo levaria algum tempo para ir e voltar com a Polícia.
O que ainda o deixava temporariamente livre – a menos que o criado tivesse sido encarregado de vigiá-lo. E nesse caso o criado, se o era, estaria neste mesmo instante à porta daquele mesmo quarto com o ouvido atento ao menor movimento do hóspede.
Assim pensou ele. E findo o raciocínio, ao qual chegara com a maleabilidade com que um invertebrado se torna menor para deslizar, Martim mergulhou de novo na mesma ausência anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como se nada tivesse a ver consigo mesmo, e a espécie se encarregasse dele. Sem um olhar para trás, guiado por uma escorregadia destreza de movimentos, começou a descer pela sacada apoiando pés inesperadamente flexíveis na saliência dos tijolos. Na sua atenta remotidão o homem sentia perto da cara o cheiro malévolo das heras quebradas como se nunca o fosse esquecer. Sua alma agora apenas alerta não distinguia o que era ou não importante, e a toda operação ele deu a mesma consideração escrupulosa.
Num pulo macio, que fez o jardim asfixiar-se em suspiro retido, ele se achou em pleno centro de um canteiro – que se arrepiou todo e depois se fechou. Com o corpo advertido o homem esperou que a mensagem de seu pulo fosse transmitida de secreto em secreto eco até se transformar em longínquo silêncio; seu baque terminou se espraiando nas encostas de alguma montanha. Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe.
Ele esperou um pouco mais. Até que nada aconteceu. Só então tateou com minúcia os óculos no bolso: estavam inteiros. Suspirou com cuidado e finalmente olhou em torno. A noite era de uma grande e escura delicadeza.

Clarice Lispector, em A maça no escuro

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