quinta-feira, 18 de julho de 2024

A morada


Já tinham se passado muitos dias desde a nossa chegada, e como estávamos gostando bastante, a minha avó resolveu procurar um lugar para morarmos. Ficamos felizes quando soubemos da vaga em uma casa de cômodos na rua em que a Titilayo morava, um pouco mais perto do mercado. Era uma construção comprida, na verdade duas construções, uma de frente para a outra e separadas por um quintal, que servia de cozinha para as mulheres e onde as crianças brincavam e os homens se perdiam em conversas sob a sombra de alguma árvore. De cada lado do quintal havia cinco cômodos, e ficamos com um cômodo do meio, muito maior do que o corredor em que morávamos na casa da Titilayo. Tinha espaço para as três esteiras, mais o altar de Xangô, de Nanã e dos Ibêjis, e ainda uma mesa e duas cadeiras que o Ayodele conseguiu com um amigo que sabia fabricá-las como as do estrangeiro e que nos custaram quatro colares de cauris, dos médios. Ainda me lembro do valor porque foi uma grande extravagância, mas uma pequena alegria que a minha avó resolveu se dar. Ela tinha medo de que o dinheiro não desse para pagar o aluguel, mas a Titilayo disse para ter fé porque, além de vender fumo, obi e acará no mercado, ela também poderia dançar, exercendo um direito que tinha sido da minha mãe, e passado para ela quando se tornou responsável por nós. Ela concordou, achando que não ia ganhar muito dinheiro porque já estava velha e feia, mas, precisando, seria de grande ajuda. E se mesmo assim não desse, em último caso eu e a Taiwo ainda poderíamos pedir prendas em nome dos Ibêjis. Por medo, respeito ou agrado, os comerciantes sempre haveriam de dar, mas este último caso nunca chegou a acontecer.
No dia em que nos mudamos para o cômodo, a Titilayo organizou uma grande festa, com tambor e gente para cantar, com acará, obi, aluá, vinho de palma, mandioca e peixe seco assado com farinha, além de muitos doces. Só da casa da Titilayo foram dez pessoas, porque a Meni estava noiva de um igbo que, como o nome dizia e a Titilayo confirmou, era “bom de coração”, o Obioma. Ele dançava engraçado, dava piruetas no ar e fazia todo mundo rir, e mais ainda quando o Ayodele tentava imitá-lo e caía no chão. Todos os que moravam nos outros cômodos também compareceram e levaram mais comida e mais bebida, e, atraídas pelo barulho da festa, muitas pessoas ficaram olhando da rua, aproveitando a música para fazer um baile em frente à casa de cômodos. Alguns nos deram presentes, que entregaram para a minha avó desejando boa sorte. Um homem alto e vestido com roupa de branco, que morava no cômodo à direita do nosso, segurou as mãos da minha avó e disse algo como “ó mãe abençoada que vem do norte como a lufada do vento que traz a fartura, que sejas duas vezes abençoada, mãe de mãe de ibêjis, que o fogo de Xangô queime as impurezas dos seus caminhos e que nunca lhe falte na mesa o óleo de palma e o sal, que dão tempero à vida, nem a doçura do mel e nem a pureza da água, nem a ti e nem aos Teus”, e muitas outras coisas bonitas que depois a Titilayo disse se chamarem orikis. Foi naquele dia que eu e a Taiwo ganhamos presentes das filhas da Titilayo, duas fitas para cabelo e dois panos que pareciam vestidos, tudo azul, da cor do véu de Iemanjá, que usamos na manhã seguinte para passear pelo mercado.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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