Moro
no bairro do Maracanã. Da minha casa ao estádio levo cinco minutos,
se tanto. Já cansei de escutar, em dias de clássico, o barulho da
torcida soando aos meus ouvidos como a mais bonita das sinfonias. O
Maracanã parecia rugir na minha varanda, farfalhando as cortinas e
ventando em gol.
Não
moro perto do Maraca por acaso. Quando procurei apartamento para
comprar, a proximidade do estádio foi um fator decisivo. Realizei um
alumbramento de moleque. Nunca cogitei morar perto da praia, conhecer
a Disney ou coisa parecida. Sempre imaginei a felicidade como a
chance de ir a pé, quando bem entendesse, ao estádio que assombrava
meus olhos de menino.
Jorge
Luís Borges sonhava um paraíso que fosse uma infinita biblioteca. O
meu paraíso sempre teve traves, redes, arquibancada e bola.
Mas
o meu Maracanã morreu. É paraíso que já não há.O meu Maracanã
foi vítima da mania de modernizar o eterno, profanar o sagrado e
tornar provisório, marcado pelas vicissitudes do tempo, o que já
transcendeu a esse próprio tempo, o cronológico, e vive no
território do mito.
Não
há dia em que eu pise no velho cais da Praça XV sem lembrar que ali
vivem, consagrados na memória das pedras, os marujos que quebraram
as chibatas da marinha de guerra do Brasil na revolta de 1910.Na
materialidade bruta da Pedra do Sal ressoam batuques de primitivos
sambas e berram todos os bodes imolados aos deuses que chegaram da
África nos porões dos negreiros, acompanhando seu povo. A Pedra do
Sal tem um silêncio que grita Laroiê! nas noites.
Cada
degrau da escadaria da ermida de Nossa Senhora da Penha, a mais
carioca das santinhas, materializa os milagres e a dor – redentora
– de milhares de joelhos esfolados em sacrifícios de louvor e
graças aos prodígios da Virgem.
Existem
lugares de esquecimento, territórios do efêmero, e lugares de
memória, territórios de permanência. Esses últimos são espaços
que, sacralizados pelos homens em suas geografias de ritos, antecedem
a sua própria criação e parecem estar aí desde a véspera da
primeira manhã do mundo.
O
meu Maracanã é assim. É feito a Penha, a Pedra e o Cais. Nasceu
estádio de futebol antes do rio que lhe nomeia; é carioca antes de
Estácio de Sá; é de um tempo anterior ao tempo e foi erguido perto
da minha casa antes que a primeira flecha tupinambá cortasse o céu
da Guanabara.
O
meu Maracanã, velho Maraca não reformado, é o Santuário de Bom
Jesus de Matosinhos, onde Jeremias e Daniel bailam no ar como Zizinho
e Didi bailaram nas quatro linhas. É o terreiro do Axé Opô Afonjá,
onde Xangô dançou pelo corpo de Mãe Aninha como Ademir, feito
raio, rasgou o campo em direção ao gol. O Maraca é a primeira
ponte do rio Capibaribe e todas as pontes de São Castilho. O meu
estádio é a ciranda de Lia e a areia da praia onde Lia dançou
ciranda, pois ali, na grama verde, um anjo de pernas tortas cirandou
um dia.
Mas
o Maraca é mais, muito mais, do que tudo isso. É o templo onde
oraram e comungaram brasileiros comuns – feito eu, meu pai e meu
avô. Sempre juntos, na alegria e na tristeza, na vitória e na
derrota, porque aqueles a quem os deuses da bola uniram no cimento
das arquibancadas, dinheiro nenhum, meu Maracanã, há de separar.
Luiz Antonio Simas, em Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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