segunda-feira, 3 de junho de 2024

Réquiem para o maracanã


Moro no bairro do Maracanã. Da minha casa ao estádio levo cinco minutos, se tanto. Já cansei de escutar, em dias de clássico, o barulho da torcida soando aos meus ouvidos como a mais bonita das sinfonias. O Maracanã parecia rugir na minha varanda, farfalhando as cortinas e ventando em gol.
Não moro perto do Maraca por acaso. Quando procurei apartamento para comprar, a proximidade do estádio foi um fator decisivo. Realizei um alumbramento de moleque. Nunca cogitei morar perto da praia, conhecer a Disney ou coisa parecida. Sempre imaginei a felicidade como a chance de ir a pé, quando bem entendesse, ao estádio que assombrava meus olhos de menino.
Jorge Luís Borges sonhava um paraíso que fosse uma infinita biblioteca. O meu paraíso sempre teve traves, redes, arquibancada e bola.
Mas o meu Maracanã morreu. É paraíso que já não há.O meu Maracanã foi vítima da mania de modernizar o eterno, profanar o sagrado e tornar provisório, marcado pelas vicissitudes do tempo, o que já transcendeu a esse próprio tempo, o cronológico, e vive no território do mito.
Não há dia em que eu pise no velho cais da Praça XV sem lembrar que ali vivem, consagrados na memória das pedras, os marujos que quebraram as chibatas da marinha de guerra do Brasil na revolta de 1910.Na materialidade bruta da Pedra do Sal ressoam batuques de primitivos sambas e berram todos os bodes imolados aos deuses que chegaram da África nos porões dos negreiros, acompanhando seu povo. A Pedra do Sal tem um silêncio que grita Laroiê! nas noites.
Cada degrau da escadaria da ermida de Nossa Senhora da Penha, a mais carioca das santinhas, materializa os milagres e a dor – redentora – de milhares de joelhos esfolados em sacrifícios de louvor e graças aos prodígios da Virgem.
Existem lugares de esquecimento, territórios do efêmero, e lugares de memória, territórios de permanência. Esses últimos são espaços que, sacralizados pelos homens em suas geografias de ritos, antecedem a sua própria criação e parecem estar aí desde a véspera da primeira manhã do mundo.
O meu Maracanã é assim. É feito a Penha, a Pedra e o Cais. Nasceu estádio de futebol antes do rio que lhe nomeia; é carioca antes de Estácio de Sá; é de um tempo anterior ao tempo e foi erguido perto da minha casa antes que a primeira flecha tupinambá cortasse o céu da Guanabara.
O meu Maracanã, velho Maraca não reformado, é o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, onde Jeremias e Daniel bailam no ar como Zizinho e Didi bailaram nas quatro linhas. É o terreiro do Axé Opô Afonjá, onde Xangô dançou pelo corpo de Mãe Aninha como Ademir, feito raio, rasgou o campo em direção ao gol. O Maraca é a primeira ponte do rio Capibaribe e todas as pontes de São Castilho. O meu estádio é a ciranda de Lia e a areia da praia onde Lia dançou ciranda, pois ali, na grama verde, um anjo de pernas tortas cirandou um dia.
Mas o Maraca é mais, muito mais, do que tudo isso. É o templo onde oraram e comungaram brasileiros comuns – feito eu, meu pai e meu avô. Sempre juntos, na alegria e na tristeza, na vitória e na derrota, porque aqueles a quem os deuses da bola uniram no cimento das arquibancadas, dinheiro nenhum, meu Maracanã, há de separar.

Luiz Antonio Simas, em Pedrinhas miudinhas  Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros

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