domingo, 2 de junho de 2024

O que será que lhe dá? / O que será que me dá?/ O que será que dá dentro da gente?: tradução da tradição na canção de Chico Buarque


Que nova ideologia da intimidade estaria se delineando a partir da “nova” (nem tão nova assim...) atitude dita “feminina” representada em verso, que assume seu “ser” e “estar” social e que tem obrigado o mundo dito “masculino” a integrar o que antes mantinha a uma distância psicológica segura? A representação simbólica do mundo feminino por um homem é uma das maneiras de tratar a tradição amorosa de forma empática, o que Chico Buarque especializou-se em fazer, como sabemos. Tentemos, portanto, observar na letra da canção “O que será” a convergência desses olhares.
Os movimentos para identificar um feminino temático e estético, desde a explosão da crítica literária feminista dos anos 1970, continuam instigantes, já que a questão da fala feminina inclui, também, a do reposicionamento social do falo, a partir de sua representação nas artes que se apresentam como “práticas sociais”, como a canção popular.
A canção popular configura um sistema de significações para o qual convergem e do qual partem os sentidos sociológicos e culturais lato sensu de um modo de vida urbano geracional. A partir de uma análise estética da letra iremos demonstrar como o letrista incorpora as informações simbólicas presentes nos signos sociais e recupera um ideário mitopoético historicamente tematizado. Visamos aqui explicitar de que forma a tradição da lírica amorosa interfere no discurso da mulher e do homem em tempos de amor “líquido”, como o cunhou Zygmunt Bauman.
As imagens míticas do amor constituem inscrições simbólicas na cultura e nela circulam permeadas por fatores tais como força de representação da problemática humano-existencial, aceitação do grupo social em que circulam, injunções sociopolíticas relacionadas aos canais de sua circulação, entre outros. A representação literária, por sua vez, conjuga, de diferentes modos, o prazer estético e o papel social, em obras nas quais se reconhecem as transformações das relações pessoais. É possível por essa via investigar os deslizamentos de sentido que o amor sofre na difícil integração do desejo dos indivíduos na ordem social.
É preciso ratificar que o mundo moderno inaugura um novo lugar para o amor na vida social. Na Antiguidade a experiência amorosa ocupava um lugar marginal na biografia de seus indivíduos e grupos, mas a formação da indústria da cultura, a partir do século XIX, simultânea ao desenvolvimento da sociedade burguesa e do individualismo, que marca sua visão de mundo, inaugura a possibilidade de intimidade como berço de uma nova subjetividade que se pressupõe autônoma e livre. É fato que a temática existencial divide e habita esse imaginário coletivo, ao abarcar a angústia de um eu lírico em constante busca de respostas para os questionamentos sobre sua própria identidade na vivência com o outro.
Nas diversas narrativas das letras de Chico Buarque vinculadas ao amor, podemos perceber um modelo de indivíduo que tem a identidade irremediavelmente ligada à intensidade de sua experiência passional. Sendo assim, estamos diante da “tradução” contemporânea de uma tradição amorosa – tanto pela voz masculina quanto pela voz feminina – que vai deslocar o amor do mundo privado para o interior do indivíduo, na tentativa de vivenciar experiências e sentimentos e, dessa forma, integrar-se em sua condição humana.
A influência dos padrões culturais no mundo moderno transfere o sentimento amoroso do seu lugar idealizado para outro, que envolve conceitos como o corpo, a intimidade e o próprio reconhecimento que o indivíduo faz de si – “o que era considerado imutável é agora encarado como uma construção cultural, sujeita a variações tanto no tempo como no espaço. Isso é possível pelo enfoque básico da análise das estruturas, ou seja, as mudanças ocorridas em nível social, econômico, geográfico e antropológico de longo prazo”. Segundo Lázaro, somente descobriremos uma nova faceta do amor por trás das paredes do mundo privado quando revelarmos o desejo latente de experimentar o eu intensamente por meio do jogo amoroso, o que só será possível quando esse eu conseguir desvincular-se das amarras sociais que fornecem ao indivíduo sua posição no mundo.
O novo momento histórico vivido no Brasil e no Ocidente a partir da década de 1970, com os movimentos da contracultura nos EUA e na Europa, com os discursos afirmativos das chamadas minorias raciais, dos homossexuais e com o próprio movimento feminista, provoca uma sensível mudança nas relações humanas e nos conceitos enrijecidos da família patriarcal. Na canção “O que será” percebem-se as marcas dessa transformação: o eu lírico feminino abandona a atitude passiva e acomodada diante da vida e assume um papel definido, de questionamentos diante da sua individualidade e da atitude do outro – o que inclui a sexualidade.
Duas vozes são ouvidas na canção de Chico, composta para o filme de Bruno Barreto Dona Flor e seus dois maridos. Este conta a história de uma mulher que se divide entre a presença de um marido vivo, mas inoperante na cama, e a imagem onipresente do marido morto, mas bem vivo na cama. Na letra de “O que será (Abertura)”, a mulher pergunta “O que será que lhe dá / O que será meu nego, será que lhe dá / [...] / Será que o meu chamego quer me judiar”. A voz masculina sublinha inquietações semelhantes quando reflete em “O que será (À flor da pele)”: “O que será que me dá / [...] / E que me faz mendigo, me faz suplicar”. Ambos convergem para a mesma conclusão. É... “O que não tem vergonha, nem nunca terá / O que não tem governo, nem nunca terá / O que não tem juízo”.
A letra dessa canção, que ganhou outros versos na voz de Milton Nascimento em “O que será (À flor da terra)” (“O que será que será / Que vive nas ideias desses amantes / Que cantam os poetas mais delirantes”), é um dos exemplos de referência poetizada do corpo e da sensualidade, que são a chave e o salto estético da lírica amorosa de Chico Buarque. O amor romântico é, no entanto, ainda valorizado pela mobilização que o sentimento promove no sujeito enquanto ele se questiona e tenta racionalizar as sensações que vêm “de dentro”:

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá

Observemos que esse procedimento se dá textualmente colocando em oposição sensações e ações, concretude e ilusão, extensividade e intensidade. O individualismo ressoa e se transmuta em universal quando o sujeito pergunta “O que será que me dá”, mas não só em mim, pois é algo partilhado por “todos”: o que será que dá dentro “da gente” – mulher ou homem – de forma semelhante?
Os intensificadores linguísticos absolutos (“todos”, “nunca”) reforçam o questionamento existencial sobre o sentimento amoroso. Observemos o amor que ultrapassa os limites da compreensão, permanecendo como um espanto perene que não pode ser pacificado:

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar

A representação da subjetividade do eu e de sua relação com o outro tem como base o imaginário coletivo da sociedade ocidental que remete à tradição da poesia de língua portuguesa e, especialmente, à lírica amorosa de Camões, permanente entre nós há mais de cinco séculos. Lírica que redefine o amor pelos contrários, pelos paradoxos (“Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer”) e pelas questões existenciais (“Amor um mal, que mata e não se vê / Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como, e dói não sei por quê”). Tais procedimentos aproximam o conceitual desenvolvido pelo poeta clássico à pergunta “O que será que me dá” e seus desdobramentos, ressignificados por Chico Buarque na descrição desse conturbado sentimento, definido em Camões apenas como seria filosoficamente possível, pela indefinição: “Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como [...]”. De forma semelhante na letra de Chico, é o “Que dá dentro da gente e que não devia / Que desacata a gente, que é revelia”.
Nessa letra as vozes dos amantes assumem os efeitos da sexualidade e retomam a tradição do amor romântico, idealizado em sua intensidade máxima, como demonstra a semântica dos vocábulos “tremores”, “ardores”, “suores”, “nervos” compondo pares linguísticos com os verbos “agitar”, “atiçar”, “encharcar”, “rogar”, “clamar”, “implorar”, “queimar”, “perturbar”. Ações sensíveis que deixam o eu poético “à flor da pele”.
A presença de elementos físicos e abstratos em “O que será” revela diferentes aspectos da confusão promovida pelo sentimento amoroso, que se constrói e é reforçado pelos questionamentos do eu, atônito, dominado por emoções que o definem e que têm o poder de conduzir sua vida, acima de qualquer racionalidade. As marcas abstratas desdobram o tema também para a dimensão do mágico-espiritual:

Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será

A referência ao estado de apaixonamento é reforçada pela combinação de reações do corpo. As angústias e dúvidas diante da perspectiva da descontinuidade implicam num processo de tomada de consciência por parte do eu lírico, que ao final de cada estrofe responde a si mesmo, encontrando definições do sentimento pelo polo negativo – o que “não” é –, avaliado tanto pelo vetor moral (“O que não tem vergonha”) quanto pelo vetor social (“O que não tem governo”), como ainda pelo vetor psicológico (“O que não tem juízo”).
O que “brota à flor da pele” é, portanto

O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
[...]
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
[...]
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

O contexto embutido nos sentidos é o do momento de transição pelo qual as relações amorosas passaram a partir da década de 1970, como já mencionamos. Segundo Giddens,221 as ideias de amor romântico exerceram a principal função de alterar os laços familiares, o que culminou na transformação da sexualidade feminina, que se afasta de um círculo crônico de passividade. A sexualidade torna-se totalmente “uma qualidade dos indivíduos e de suas relações mútuas”.

O amor aqui representado aponta para a ideia do “amor confluente” de Giddens, para o qual o mais importante é o “relacionamento especial”: “O amor romântico há muito tempo tem mostrado uma qualidade igualitária, intrínseca à ideia de que um relacionamento pode derivar muito mais do envolvimento emocional de duas pessoas do que de critérios sociais externos. [...] O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais [...]”. A partir daí o amor só se desenvolve, pois a intimidade e a vulnerabilidade agora são escolhas e não imposições.
O sentimento presente na canção “O que será” remete ao conceito de que o amor é capaz de superar a vida social e as marcas de moralidade (sociais e/ou religiosas) que ela produz no sujeito. Amar, nesse sentido, “é libertar-se das amarras que fazem de um indivíduo um ser socialmente inscrito e, portanto, limitado”.223 Os poemas contemporâneos – e considero as letras das canções de Chico Buarque representantes legítimas do projeto poético brasileiro – convivem num espaço de discursos diferenciados e plurais em que o tema do amor amplia-se para configurar as questões existenciais que implicam a relação do sujeito com o “outro”, conformando sua identidade.
Ou seja, apesar de estilhaçado e confuso pela velocidade e urgência das transformações de seu tempo, o eu poético não perdeu a preocupação de ampliar o conhecimento de sua condição humana. Ele se volta às questões internas, em busca da unicidade física e da completude universal. Portanto, estamos diante de um aparente paradoxo: de um lado, o fragmento pós-moderno; de outro, a busca de reintegração do ser, na relação amorosa. A literatura espelha, assim, esse indivíduo transitório, (sobre)vivente em um mundo líquido, fragilizado pela suspensão das antigas certezas (família, religião, pátria) que serviam de alicerce, mas também de barreira confortável (pois indutora de comodismo) para sua constituição.
A voz feminilizada de Chico Buarque rompe essas barreiras, mas mantém fronteiras nas diferenças que enriquecem o ser e que são os novos parâmetros para a afirmação da identidade. É a vivência integral do amor que integraliza o sujeito (autor e personagem). Como Lipovetsky bem define a questão, “A modernidade da qual estamos saindo era negadora; a supermodernidade é integradora”. O sujeito não está só. Ele é coletivo disseminado pela ressignificação do sentimento universal.
A pergunta “O que será que será” já tinha resposta há cinco séculos no paradoxo. A diferença para a mulher é que hoje pode confirmar sua humanidade híbrida em tempos nos quais assumi-la não é mais condenação, mas aceitação prazerosa do que vem “à revelia”, sobrepujando-se ao mágico (“Nem todos os unguentos vão aliviar / Nem todos os quebrantos, toda alquimia”).
Quanto à pergunta retórica do soneto camoniano que circula desde o século XVI (“Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”), serve agora como artifício de catarse e provocação. A resposta, que todos sempre soubemos, é na verdade o que menos importa à ideia do amor romântico contemporâneo, reinventado pelas vozes magistralmente feminilizadas de Chico Buarque, em uma obra poética que... essa sim, “não tem medida, nem nunca terá”.

O que será (Abertura)
(Chico Buarque – 1976)

O que será que lhe dá
O que será meu nego, será que lhe dá
Que não lhe dá sossego, será que lhe dá
Será que o meu chamego quer me judiar
Será que isso são horas dele vadiar
Será que passa fora o resto do dia
Será que foi-se embora em má companhia
Será que essa criança quer me agoniar
Será que não se cansa de desafiar
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
[…]

O que será (À flor da pele)
(Chico Buarque – 1976)

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite.

Sylvia Cyntrão, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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