Que
nova ideologia da intimidade estaria se delineando a partir da “nova”
(nem tão nova assim...) atitude dita “feminina” representada em
verso, que assume seu “ser” e “estar” social e que tem
obrigado o mundo dito “masculino” a integrar o que antes mantinha
a uma distância psicológica segura? A representação simbólica do
mundo feminino por um homem é uma das maneiras de tratar a tradição
amorosa de forma empática, o que Chico Buarque especializou-se em
fazer, como sabemos. Tentemos, portanto, observar na letra da canção
“O que será” a convergência desses olhares.
Os
movimentos para identificar um feminino temático e estético, desde
a explosão da crítica literária feminista dos anos 1970, continuam
instigantes, já que a questão da fala feminina inclui, também, a
do reposicionamento social do falo, a partir de sua representação
nas artes que se apresentam como “práticas sociais”, como a
canção popular.
A
canção popular configura um sistema de significações para o qual
convergem e do qual partem os sentidos sociológicos e culturais lato
sensu de um modo de vida urbano geracional. A partir de uma análise
estética da letra iremos demonstrar como o letrista incorpora as
informações simbólicas presentes nos signos sociais e recupera um
ideário mitopoético historicamente tematizado. Visamos aqui
explicitar de que forma a tradição da lírica amorosa interfere no
discurso da mulher e do homem em tempos de amor “líquido”, como
o cunhou Zygmunt Bauman.
As
imagens míticas do amor constituem inscrições simbólicas na
cultura e nela circulam permeadas por fatores tais como força de
representação da problemática humano-existencial, aceitação do
grupo social em que circulam, injunções sociopolíticas
relacionadas aos canais de sua circulação, entre outros. A
representação literária, por sua vez, conjuga, de diferentes
modos, o prazer estético e o papel social, em obras nas quais se
reconhecem as transformações das relações pessoais. É possível
por essa via investigar os deslizamentos de sentido que o amor sofre
na difícil integração do desejo dos indivíduos na ordem social.
É
preciso ratificar que o mundo moderno inaugura um novo lugar para o
amor na vida social. Na Antiguidade a experiência amorosa ocupava um
lugar marginal na biografia de seus indivíduos e grupos, mas a
formação da indústria da cultura, a partir do século XIX,
simultânea ao desenvolvimento da sociedade burguesa e do
individualismo, que marca sua visão de mundo, inaugura a
possibilidade de intimidade como berço de uma nova subjetividade que
se pressupõe autônoma e livre. É fato que a temática existencial
divide e habita esse imaginário coletivo, ao abarcar a angústia de
um eu lírico em constante busca de respostas para os questionamentos
sobre sua própria identidade na vivência com o outro.
Nas
diversas narrativas das letras de Chico Buarque vinculadas ao amor,
podemos perceber um modelo de indivíduo que tem a identidade
irremediavelmente ligada à intensidade de sua experiência
passional. Sendo assim, estamos diante da “tradução”
contemporânea de uma tradição amorosa – tanto pela voz masculina
quanto pela voz feminina – que vai deslocar o amor do mundo privado
para o interior do indivíduo, na tentativa de vivenciar experiências
e sentimentos e, dessa forma, integrar-se em sua condição humana.
A
influência dos padrões culturais no mundo moderno transfere o
sentimento amoroso do seu lugar idealizado para outro, que envolve
conceitos como o corpo, a intimidade e o próprio reconhecimento que
o indivíduo faz de si – “o que era considerado imutável é
agora encarado como uma construção cultural, sujeita a variações
tanto no tempo como no espaço. Isso é possível pelo enfoque básico
da análise das estruturas, ou seja, as mudanças ocorridas em nível
social, econômico, geográfico e antropológico de longo prazo”.
Segundo Lázaro, somente descobriremos uma nova faceta do amor por
trás das paredes do mundo privado quando revelarmos o desejo latente
de experimentar o eu intensamente por meio do jogo amoroso, o que só
será possível quando esse eu conseguir desvincular-se das amarras
sociais que fornecem ao indivíduo sua posição no mundo.
O
novo momento histórico vivido no Brasil e no Ocidente a partir da
década de 1970, com os movimentos da contracultura nos EUA e na
Europa, com os discursos afirmativos das chamadas minorias raciais,
dos homossexuais e com o próprio movimento feminista, provoca uma
sensível mudança nas relações humanas e nos conceitos enrijecidos
da família patriarcal. Na canção “O que será” percebem-se as
marcas dessa transformação: o eu lírico feminino abandona a
atitude passiva e acomodada diante da vida e assume um papel
definido, de questionamentos diante da sua individualidade e da
atitude do outro – o que inclui a sexualidade.
Duas
vozes são ouvidas na canção de Chico, composta para o filme de
Bruno Barreto Dona Flor e seus dois maridos. Este conta a
história de uma mulher que se divide entre a presença de um marido
vivo, mas inoperante na cama, e a imagem onipresente do marido morto,
mas bem vivo na cama. Na letra de “O que será (Abertura)”, a
mulher pergunta “O que será que lhe dá / O que será meu
nego, será que lhe dá / [...] / Será que o meu chamego quer
me judiar”. A voz masculina sublinha inquietações semelhantes
quando reflete em “O que será (À flor da pele)”: “O que será
que me dá / [...] / E que me faz mendigo, me faz suplicar”.
Ambos convergem para a mesma conclusão. É... “O que não tem
vergonha, nem nunca terá / O que não tem governo, nem nunca terá /
O que não tem juízo”.
A
letra dessa canção, que ganhou outros versos na voz de Milton
Nascimento em “O que será (À flor da terra)” (“O que será
que será / Que vive nas ideias desses amantes / Que cantam os poetas
mais delirantes”), é um dos exemplos de referência poetizada do
corpo e da sensualidade, que são a chave e o salto estético da
lírica amorosa de Chico Buarque. O amor romântico é, no entanto,
ainda valorizado pela mobilização que o sentimento promove no
sujeito enquanto ele se questiona e tenta racionalizar as sensações
que vêm “de dentro”:
O
que será que me dá
Que
me bole por dentro, será que me dá
Que
brota à flor da pele, será que me dá
Observemos
que esse procedimento se dá textualmente colocando em oposição
sensações e ações, concretude e ilusão, extensividade e
intensidade. O individualismo ressoa e se transmuta em universal
quando o sujeito pergunta “O que será que me dá”, mas não só
em mim, pois é algo partilhado por “todos”: o que será
que dá dentro “da gente” – mulher ou homem – de forma
semelhante?
Os
intensificadores linguísticos absolutos (“todos”, “nunca”)
reforçam o questionamento existencial sobre o sentimento amoroso.
Observemos o amor que ultrapassa os limites da compreensão,
permanecendo como um espanto perene que não pode ser pacificado:
O
que será que será
Que
dá dentro da gente e que não devia
Que
desacata a gente, que é revelia
Que
é feito uma aguardente que não sacia
Que
é feito estar doente de uma folia
Que
nem dez mandamentos vão conciliar
A
representação da subjetividade do eu e de sua relação com o outro
tem como base o imaginário coletivo da sociedade ocidental que
remete à tradição da poesia de língua portuguesa e,
especialmente, à lírica amorosa de Camões, permanente entre nós
há mais de cinco séculos. Lírica que redefine o amor pelos
contrários, pelos paradoxos (“Amor é fogo que arde sem se ver / É
ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente / É
dor que desatina sem doer”) e pelas questões existenciais (“Amor
um mal, que mata e não se vê / Que dias há que na alma me tem
posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei
como, e dói não sei por quê”). Tais procedimentos aproximam o
conceitual desenvolvido pelo poeta clássico à pergunta “O que
será que me dá” e seus desdobramentos, ressignificados por Chico
Buarque na descrição desse conturbado sentimento, definido em
Camões apenas como seria filosoficamente possível, pela
indefinição: “Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não
sei como [...]”. De forma semelhante na letra de Chico, é o “Que
dá dentro da gente e que não devia / Que desacata a gente, que é
revelia”.
Nessa
letra as vozes dos amantes assumem os efeitos da sexualidade e
retomam a tradição do amor romântico, idealizado em sua
intensidade máxima, como demonstra a semântica dos vocábulos
“tremores”, “ardores”, “suores”, “nervos” compondo
pares linguísticos com os verbos “agitar”, “atiçar”,
“encharcar”, “rogar”, “clamar”, “implorar”,
“queimar”, “perturbar”. Ações sensíveis que deixam o eu
poético “à flor da pele”.
A
presença de elementos físicos e abstratos em “O que será”
revela diferentes aspectos da confusão promovida pelo sentimento
amoroso, que se constrói e é reforçado pelos questionamentos do
eu, atônito, dominado por emoções que o definem e que têm o poder
de conduzir sua vida, acima de qualquer racionalidade. As marcas
abstratas desdobram o tema também para a dimensão do
mágico-espiritual:
Que
nem dez mandamentos vão conciliar
Nem
todos os unguentos vão aliviar
Nem
todos os quebrantos, toda alquimia
Que
nem todos os santos, será que será
A
referência ao estado de apaixonamento é reforçada pela combinação
de reações do corpo. As angústias e dúvidas diante da perspectiva
da descontinuidade implicam num processo de tomada de consciência
por parte do eu lírico, que ao final de cada estrofe responde a si
mesmo, encontrando definições do sentimento pelo polo negativo –
o que “não” é –, avaliado tanto pelo vetor moral (“O que
não tem vergonha”) quanto pelo vetor social (“O que não tem
governo”), como ainda pelo vetor psicológico (“O que não tem
juízo”).
O
que “brota à flor da pele” é, portanto
O
que não tem medida, nem nunca terá
O
que não tem remédio, nem nunca terá
O
que não tem receita
[...]
O
que não tem descanso, nem nunca terá
O
que não tem cansaço, nem nunca terá
O
que não tem limite
[...]
O
que não tem vergonha, nem nunca terá
O
que não tem governo, nem nunca terá
O
que não tem juízo
O
contexto embutido nos sentidos é o do momento de transição pelo
qual as relações amorosas passaram a partir da década de 1970,
como já mencionamos. Segundo Giddens,221 as ideias de amor romântico
exerceram a principal função de alterar os laços familiares, o que
culminou na transformação da sexualidade feminina, que se afasta de
um círculo crônico de passividade. A sexualidade torna-se
totalmente “uma qualidade dos indivíduos e de suas relações
mútuas”.
O
amor aqui representado aponta para a ideia do “amor confluente”
de Giddens, para o qual o mais importante é o “relacionamento
especial”: “O amor romântico há muito tempo tem mostrado uma
qualidade igualitária, intrínseca à ideia de que um relacionamento
pode derivar muito mais do envolvimento emocional de duas pessoas do
que de critérios sociais externos. [...] O amor confluente presume
igualdade na doação e no recebimento emocionais [...]”. A partir
daí o amor só se desenvolve, pois a intimidade e a vulnerabilidade
agora são escolhas e não imposições.
O
sentimento presente na canção “O que será” remete ao conceito
de que o amor é capaz de superar a vida social e as marcas de
moralidade (sociais e/ou religiosas) que ela produz no sujeito. Amar,
nesse sentido, “é libertar-se das amarras que fazem de um
indivíduo um ser socialmente inscrito e, portanto, limitado”.223
Os poemas contemporâneos – e considero as letras das canções de
Chico Buarque representantes legítimas do projeto poético
brasileiro – convivem num espaço de discursos diferenciados e
plurais em que o tema do amor amplia-se para configurar as questões
existenciais que implicam a relação do sujeito com o “outro”,
conformando sua identidade.
Ou
seja, apesar de estilhaçado e confuso pela velocidade e urgência
das transformações de seu tempo, o eu poético não perdeu a
preocupação de ampliar o conhecimento de sua condição humana. Ele
se volta às questões internas, em busca da unicidade física e da
completude universal. Portanto, estamos diante de um aparente
paradoxo: de um lado, o fragmento pós-moderno; de outro, a busca de
reintegração do ser, na relação amorosa. A literatura espelha,
assim, esse indivíduo transitório, (sobre)vivente em um mundo
líquido, fragilizado pela suspensão das antigas certezas
(família, religião, pátria) que serviam de alicerce, mas também
de barreira confortável (pois indutora de comodismo) para sua
constituição.
A
voz feminilizada de Chico Buarque rompe essas barreiras, mas mantém
fronteiras nas diferenças que enriquecem o ser e que são os novos
parâmetros para a afirmação da identidade. É a vivência integral
do amor que integraliza o sujeito (autor e personagem). Como
Lipovetsky bem define a questão, “A modernidade da qual estamos
saindo era negadora; a supermodernidade é integradora”. O sujeito
não está só. Ele é coletivo disseminado pela ressignificação do
sentimento universal.
A
pergunta “O que será que será” já tinha resposta há cinco
séculos no paradoxo. A diferença para a mulher é que hoje pode
confirmar sua humanidade híbrida em tempos nos quais assumi-la não
é mais condenação, mas aceitação prazerosa do que vem “à
revelia”, sobrepujando-se ao mágico (“Nem todos os unguentos vão
aliviar / Nem todos os quebrantos, toda alquimia”).
Quanto
à pergunta retórica do soneto camoniano que circula desde o século
XVI (“Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos
amizade / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”), serve agora
como artifício de catarse e provocação. A resposta, que todos
sempre soubemos, é na verdade o que menos importa à ideia do amor
romântico contemporâneo, reinventado pelas vozes magistralmente
feminilizadas de Chico Buarque, em uma obra poética que... essa sim,
“não tem medida, nem nunca terá”.
O
que será (Abertura)
(Chico
Buarque – 1976)
O
que será que lhe dá
O
que será meu nego, será que lhe dá
Que
não lhe dá sossego, será que lhe dá
Será
que o meu chamego quer me judiar
Será
que isso são horas dele vadiar
Será
que passa fora o resto do dia
Será
que foi-se embora em má companhia
Será
que essa criança quer me agoniar
Será
que não se cansa de desafiar
O
que não tem descanso, nem nunca terá
O
que não tem cansaço, nem nunca terá
O
que não tem limite
[…]
O
que será (À flor da pele)
(Chico
Buarque – 1976)
O
que será que me dá
Que
me bole por dentro, será que me dá
Que
brota à flor da pele, será que me dá
E
que me sobe às faces e me faz corar
E
que me salta aos olhos a me atraiçoar
E
que me aperta o peito e me faz confessar
O
que não tem mais jeito de dissimular
E
que nem é direito ninguém recusar
E
que me faz mendigo, me faz suplicar
O
que não tem medida, nem nunca terá
O
que não tem remédio, nem nunca terá
O
que não tem receita
O
que será que será
Que
dá dentro da gente e que não devia
Que
desacata a gente, que é revelia
Que
é feito uma aguardente que não sacia
Que
é feito estar doente de uma folia
Que
nem dez mandamentos vão conciliar
Nem
todos os unguentos vão aliviar
Nem
todos os quebrantos, toda alquimia
Que
nem todos os santos, será que será
O
que não tem descanso, nem nunca terá
O
que não tem cansaço, nem nunca terá
O
que não tem limite.
Sylvia Cyntrão, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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