terça-feira, 4 de junho de 2024

O mundo à revelia

 


[…]
Diadorim me chamou, fomos caminhando, no meio da queleleia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes! ele se amargou, engulindo de boca fechada. ― Diadorim ― eu disse ― esse Hermógenes está em verde, nas portas da inveja... ― Mas Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou dizendo: ― Deus é servido... Não sosseguei. Aquele pessoal tribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha: panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a valer. Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por nada não, mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos a lembrança do Hermógenes, na hora do julgamento. De como primeiro ele, sortuno, não se sobressaía, só escancarava muito as pernas, facãozão na mão; mas depois ficou artimanhado, com uma tristeza fechada aos cantos, como cão que consome raivas. E o Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas, quando esbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolando que nem apostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudo estava passado, terminado. Estava? Pois, pedi espera a Diadorim, na beira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse, desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu cacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele. Virando que eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: ― ...Mamãezada... Ao que seria? O Hermógenes não era nenhum toleimado, para desfazer na decisão de Joca Ramiro. Mamãezada? Mais não ouvi, relembro que não sei direito. Com pouco, Zé Bebelo estava dando as despedidas. Se viu, montado num bom cavalo de duas cores, arreado com sela boa de Minas-Velhas. Deram que levasse carabina, suas outras armas, e cruz-cruz cartucheiras. Aí já tinha jantado. E o bornal com matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou na sela. Se foi. Saíu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o sol na beira. Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por o uso de resguardado território, de uma légua. Me deu certa tristeza. Mas a minha satisfação ainda era maior.
Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram essas grandes abundâncias. Angú e couve, abóbora moranga cozida, torresmos, e em toda fogueira assavam mantas de carnes. Quem quisesse sôpa, era só ir se aquinhoar na porta-da-cozinha. A quantidade de pratos era que faltava. E assaz muita cachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou satisfazer goles a todos ― extraordinária de boa. O senhor havia de gostar de ver aquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito como podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos, entalagados. Daí, escureceu. Homens deitados no chão, escornados até quase debaixo do mijo dos cavalos pastantes. Eu estava que impava, queria um bom sono. A ver, fui com Diadorim para o rumo dos pés de fruta, seguindo o rego. Com a entrada da noite, o passar da água canta friinho, permeio, engrossa, e a gente aprecia o cheiro do musgúz das árvores. Zé Bebelo tinha ido embora, para sempre, no cavalo de duas cores, fez pouca poeira. Nós estávamos no jaz ali, repimpados, enfunando as redes. Disso não esqueço? Não esqueço. A gente estava desagasalhados na alegria, feito meninos.
Eu tinha vindo para ali, para o sertão do Norte, como todos uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmo notar que vinha ― mas presado, precisão de agenciar um resto melhor para a minha vida. Agora me expulsassem? Do jeito, isto é, tinham repelido para trás Zé Bebelo. Não me esqueci daquelas palavras dele! que agora era o mundo à revelia... Disse a Diadorim. Mas Diadorim menos me respondeu. Ao dar, que falou! ― Riobaldo, você prezava de ir viver nOs-Porcos, que lá é bonito sempre ― com as estrelas tão reluzidas?... Dei que sim. Como ia querer dizer diferente! pois lá nOs Porcos não era a terra de Diadorim própria, lugar dele de crescimento? Mas, mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse que Diadorim podia ter me respondido, assim nestas fações: ― … Mundo à revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve... Toleima, sei, bobeia disso, a basba do basbaque. Que eu dizia e pensava numa coisa, mas Diadorim recruzava com outras. ― ...Zé Bebelo, Diadorim: que é que você achou daquele homem? ― ainda indaguei. ― Para ele, de agora, não tem dia nem noite: vai seu rumo, fazendo a viagem... Teve sorte! Entestou foi com Joca Ramiro ― com sua alta bondade... ― foi o que Diadorim me respondeu. E ficou pensando, ficamos. Aí quando eu acabei até à pontinha meu cigarro, ainda perguntei: ― A ver, quem salvou Zé Bebelo da morte? Diadorim, o que quis me dizer foi em tanto segredo, que ele puxou a beira da minha rede, para a gente falar quase cara a cara: ― Ah, quem salvou Zé Bebelo de morte? Pois, abaixo de Joca Ramiro, por começar foi ele Zé Bebelo mesmo. Depois, numa ponta do dito de Zé Bebelo, tomou figura Só Candelário ― homem esquipático e enorme de si, mas fiel, e que põe mais de trezentas armas. Cabras que, por um gesto dele, avançam e matam e matam... Eu queria que ele tivesse explicado o fato de outro jeito. Mas Diadorim estava prosseguindo: ― ...A ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio, meu medo... Deus não queira... Depois, ele terminou assim: ― ... Ao enquanto Joca Ramiro pode precisar da gente, você mesmo me prometeu, Riobaldo: a gente persiste por aqui. Prometi outra vez, confirmei. Desde, no sereno da noite, não se conversou mais, não me recordo.
Diadorim estava triste, na voz. Eu também estive. Por que? ― há-de o senhor querer saber. Por causa de Zé Bebelo ter ido embora; e aquilo era motivo? Depois de Paracatú, é o mundo... Zé Bebelo ido, sei lá bem porque, tirava meu poder de pensar com a ideia em ordem, e eu sentia minha barriga demais cheia, demais de tantas comidas e bebidas. Só o que me consolava era ter havido aquele julgamento, com a vida e a fama de Zé Bebelo autorizadas. O julgamento? Digo! aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras. ― O que nem foi julgamento legítimo nenhum! só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão... ― o senhor dirá. Pois! por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro. Por causa de Zé Bebelo. Porque, Zé Bebelo, na hora, naquela ocasião, estava sendo maior do que pessoa. Eu gostava dele do jeito que agora gosto de compadre meu Quelemém; gostava por entender no ar. Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha ideia ― por dizer bem! meu coração. Dormi, adeus disso. Como é que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveis que vieram depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto?
Curtamente! dali da Sempre-Verde, com um dia mais, desapartamos. O bando muito grande de jagunços não tem composição de proveito em ocasião normal, só serve para chamar soldados e dar atrasamento e desrazoada despesa. Constava que João Goanhá torasse para a Bahia, e que o Antenor seguindo rumo em beira do Ramalhada, com um punhado dos hermógenes. Novas ordens, muitas ordens. Alaripe ia vir comTitão Passos.Titão Passos chamou a gente! Diadorim e eu. Se tinha um roteiro, sendo para ser! o mais encostado possível no São Francisco, até para lá do Jequitaí, e mais. Aquilo, por que? A gente não ia junto com Joca Ramiro, em caso de lhe a ele podermos valer, em caso, com maior ajuda, mão a mão? Ah, mas nossa tarefa era de muito encoberto empenho e valor: pelo que tínhamos de estanciar em certos lugares, com o fito de receber remessas; e em acontecer de vigiar algum rompimento de soldados, que para o Norte entrassem. Arreamos, montamos, saímos. Naquela mesma da hora, Joca Ramiro dava partida também, de volta para o São João do Paraíso. Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete ― ladeado por Só Candelário e o Ricardão, igual iguais galopavam. Saíam os chefes todos ― assim o desenrolar dos bandos, em caracol, aos gritos de vozear. Ao que reluzia o bem belo. Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz, cordial. ― Assim, ele me botou a benção... ― foi o que disse. Dá sempre tristezas algumas, um destravo de grande povo se desmanchar. Mas, nesse dia mesmo, em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas.
As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amargoso. E sete, para chegar numa cachoeira no Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim, a garrixa-do-brejo, frangos-dágua, gaivotas. O manuelzinho-da-cróa! Diadorim, comigo. As garças, elas em asas. O rio desmazelado, livre rolador. E aí esbarramos parada, para demora, num campo solteiro, em varjaria descoberta, pasto de muito gado.
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Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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