Sentada
sob o iroco, a minha avó fazia um tapete enquanto eu e a Taiwo
brincávamos ao lado dela. Ouvimos o barulho das galinhas e logo
depois o pio triste de um pássaro escondido entre a folhagem da
Grande Árvore, e a minha avó disse que aquilo não era bom sinal.
Vimos então cinco homens contornando a Grande Sombra e a minha avó
disse que eram guerreiros do rei Adandozan, por causa das marcas que
tinham nos rostos. Eu falava iorubá e eve, e eles conversavam em um
iorubá um pouco diferente do meu, mas entendi que iam levar as
galinhas, em nome do rei. A minha avó não se mexeu, não disse que
concordava nem que discordava, e eu e a Taiwo não tiramos os olhos
do chão. Os guerreiros já estavam de partida quando um deles se
interessou pelo tapete da minha avó e reconheceu alguns símbolos de
Dan. Ele tirou o tapete das mãos dela e começou a chamá-la de
feiticeira, enquanto outro guerreiro apontava a lança para o desenho
da cobra que engole o próprio rabo que havia, mais sugerida do que
desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa.
Os
guerreiros conversavam depressa e aos gritos, decerto resolvendo o
que fazer, enquanto eu e a Taiwo nos demos as mãos, sem entendermos
direito o que estava acontecendo. A minha avó se atirou ao chão
diante deles, implorando que fossem embora, que levassem tudo o que
quisessem levar, que Olorum os acompanhasse. Eles não a ouviam e
falavam de feitiços, de pragas e de Agontimé. Como se já não
houvesse sombra sob o iroco, uma outra sombra ainda mais escura e no
formato de asas de um grande pássaro voou sobre a cabeça da minha
avó. Eu já tinha ouvido falar daquele tipo de pássaro, era uma das
ìyámis, uma das sete mulheres-pássaro que quase sempre carregam
más notícias.
Atraída
pelo barulho, a minha mãe surgiu correndo da beira do rio, onde se
banhava acompanhada do Kokumo, que estava pescando. Naquele dia, a
minha mãe tinha acabado de voltar do mercado, lavado as pinturas com
que enfeitava o corpo e passado ori nele. Eu nunca tinha visto
a minha mãe tão bonita. Ela tinha peitos pequenos, dentes brancos e
a pele escura que brilhava ainda mais por causa do ori. A minha mãe
cuidava dos meus cabelos e dos cabelos da Taiwo como cuidava dos
dela, dividindo em muitas partes e prendendo rolinhos enfeitados com
fitas coloridas, que comprava no mercado. O Kokumo apareceu correndo
atrás dela e foi pego por um dos guerreiros, que o agarrou pela
cintura e o levantou, até que ele ficasse com os pés balançando no
ar. Outro guerreiro pegou a minha mãe pelos braços e a apertou
contra o próprio corpo, e, de imediato, o membro dele começou a
crescer. Ele disse que queria se deitar com a minha mãe e ela cuspiu
na cara dele. O Kokumo chutava o ar, querendo se soltar para nos
defender, pois tinha sangue guerreiro, e foi o primeiro a ser morto.
Um dos guerreiros, que até então tinha ficado apenas olhando e
sorrindo, chegou bem perto do Kokumo e enfiou a lança na barriga
dele. Eu me lembro do sangue que saiu da boca do meu irmão e
espirrou na roupa do guerreiro, e continuou a escorrer mesmo depois
que o jogaram no chão, com a cara virada para baixo. O sangue
imediatamente formou um riozinho, daqueles turvos e de água espessa,
como os que recebem muita água de chuva na cabeceira.
A
minha avó continuava deitada na frente de um dos guerreiros, batendo
a cabeça no chão e pedindo que fossem embora, mas eles não se
importavam. O guerreiro que segurava a minha mãe, o que aos meus
olhos era só membro duro e grande, jogou-a no chão e se enfiou
dentro da racha dela. Ela chorava e eu olhava assustada, imaginando
que devia estar doendo, imaginando que a minha avó, por ser grande,
também já tinha feito aquilo e sabia que não era bom, pois ela
também chorava e pedia que parassem, perguntando se já não estavam
satisfeitos com o que tinham feito ao Kokumo. Eles continuaram
fingindo que ela não existia. Na estrada que passava ao lado da
nossa casa, algumas pessoas pararam para olhar, mas ninguém se
aproximou. Dois dos guerreiros repararam em mim e na Taiwo. O
primeiro pegou uma das mãos dela e apertou em volta do membro dele,
e logo foi copiado pelo amigo, que usou a minha mão. Acho que a
direita, porque a Taiwo estava sentada à minha esquerda e nem por um
momento nos separamos, apertando ainda com mais força as mãos
livres. O guerreiro forçava a minha mão contra o membro, que, de
início, estava mole, e mexia o corpo para a frente e para trás,
fazendo com que ficasse duro e quente. A minha avó chorava
encobrindo o rosto, não sei se para esconder as lágrimas ou se para
se esconder do que via. Um outro guerreiro se aproximou dela e, com a
ponta da lança, sem se importar se estava machucando ou não,
descobriu os seus olhos, mandando que ela olhasse o que estava
acontecendo, dizendo que a feitiçaria dela nada adiantava contra a
força deles.
Eu
lembro que o riozinho de sangue que escorreu da boca do Kokumo quase
alcançou o tronco do iroco, e as formigas tiveram que se desviar
dele. Elas andavam com as costas carregadas de folhas, e quando
chegavam à margem do riozinho, se desviavam e seguiam ao longo dele,
com pressa para alcançar o final, cruzar na frente e seguir adiante.
Como se acompanhasse a pressa das formigas, o guerreiro acelerava o
movimento com o corpo e apertava cada vez mais a minha mão ao redor
do membro, enquanto a outra estava amortecida dentro da mão da
Taiwo, de tão forte que nos segurávamos, parecendo mesmo uma só
pessoa, e não duas. Acho que os guerreiros também perceberam isso e
riram, divertidos. A minha mãe ficou quieta, calada, e nem mesmo se
mexeu quando outro guerreiro tomou o lugar do que estava dentro dela.
Quase ao mesmo tempo, a minha mão e a da Taiwo ficaram sujas com o
líquido pegajoso e esbranquiçado que saiu dos membros dos
guerreiros e espirrou longe, quase atingindo o riozinho
vermelho-escuro do Kokumo, que, àquela hora, já tinha perdido a
força, sem conseguir chegar ao tronco do iroco, embora tivesse
ficado mais largo. Percebi que a Taiwo estava observando o mesmo que
eu, mas não comentamos nada, nem mesmo apostamos se o riozinho ainda
se moveria ou não. Depois de um tempo, os guerreiros se deitaram
para descansar, menos o que ainda estava dentro da minha mãe. Todo o
resto permaneceu quieto, calado, e até mesmo o bando de pássaros
que costumava passar por cima da casa àquela hora, barulhento e
fugindo da noite, devia ter se desviado do caminho, como as formigas
fizeram com o riozinho de sangue.
Foi
então que vi o Kokumo se levantar e começar a cantar e a correr em
volta da minha mãe, fazendo festa como se não visse o guerreiro
entrando e saindo de dentro dela, com força e cada vez mais rápido.
O guerreiro gemia e o Kokumo cantava, e seu canto atraiu outras
crianças, outros abikus, que apareceram de repente e logo
também estavam cantando e formando uma roda junto com ele. Uns
surgiram correndo do lado do rio, outros pulando das árvores, outros
brotando do chão, e estavam todos alegres ao abraçar o Kokumo, que,
junto com eles, começou a rir, a cantar e a brincar de roda,
convidando a minha mãe para se divertir também. Enquanto isso, o
riozinho tinha parado mesmo de correr e estava ficando com uma cor
cada vez mais escura. A minha mãe começou a sorrir e a girar o
pescoço de um lado para o outro, acompanhando a brincadeira das
crianças. Eu nunca soube se a minha avó pôde vê-las, mas decerto
os guerreiros não viram, porque o que estava em cima da minha mãe
não gostou da inquietação dela e mandou que parasse. Quanto mais
ele falava e dava tapas no rosto dela, mais ela sorria e girava o
pescoço, seguindo os abikus. Até que ele se acabou dentro
dela, jogou o corpo um pouco para o lado, apanhou a lança e a enfiou
sorriso adentro da minha mãe. Ela não parou de sorrir um minuto
sequer, e tão logo surgiu um riozinho de sangue escorrendo na
direção do riozinho do Kokumo, a minha mãe correu para perto dele
e o abraçou. O guerreiro, que estava saindo de dentro dela, nem
percebeu. Eu lembro que, naquela hora, a minha mãe, sempre tão
alta, tinha o mesmo tamanho do Kokumo e das outras crianças, que
brincavam felizes como se há muito tempo esperassem por aquele
momento. Até que viram a minha avó e correram para conversar com
ela. Por sorte o guerreiro já não mantinha mais a cabeça dela
levantada pela lança. A minha avó olhava para o chão e rezava,
ignorando a quizomba, como também fez com todos os convites para
brincar. Finalmente, as crianças se cansaram e foram embora, sumindo
tão de repente como tinham aparecido, levando o Kokumo e a minha mãe
sem que eles ao menos tivessem se despedido de mim, da Taiwo e da
minha avó.
O
riozinho da minha mãe primeiro correu lado a lado com o do Kokumo,
depois se juntou a ele e o espichou um pouco mais. As formigas foram
obrigadas a dar uma volta maior, subindo pelo tronco do iroco. Quando
não consegui mais acompanhar o trajeto delas foi que percebi que já
era noite e eu ainda tinha a mão presa à da Taiwo, nós duas muito
quietas, não sabendo que providências tomar. Só então a minha avó
se levantou e acendeu uma fogueira, para depois puxar o corpo do
Kokumo e colocá-lo dentro dos braços do corpo da minha mãe. Fez
aquilo como se estivesse arrumando a casa e escolhendo a melhor
posição para um enfeite, mudando tudo de lugar enquanto não achava
uma boa ordem para aqueles dois pares de braços e de pernas. Quando
se deu por satisfeita, ela se sentou perto deles, pegou a cabeça da
minha mãe, colocou-a sobre o próprio colo e começou a cantar com o
mesmo alheamento com que cantava enquanto tecia seus tapetes. Passou
o resto da noite embalando a filha e o neto mortos, e a luz do dia a
encontrou buscando água no rio para molhar e esfregar os dois
corpos. Depois cavou o chão no lugar onde dormiam, enrolou cada
corpo em uma esteira e os colocou dentro do buraco. Uma única cova
rasa para os dois, que mal deu para abrigá-los e à terra que jogou
por cima enquanto cantava, para em seguida se ajoelhar ao lado e
rezar por horas e horas. No meio da tarde, reacendeu o fogo no
quintal e fez comida, que dividiu em cinco partes iguais: uma para
mim, uma para a Taiwo, uma para ela e duas para colocar ao lado da
cova. Só então desenrolou sua esteira e dormiu, sem ter dito uma
única palavra para mim ou para a Taiwo, sem ter chorado uma só
lágrima a mais desde a partida dos guerreiros.
Eu
e a Taiwo já estávamos com medo de que ela tivesse morrido também,
quando afinal se levantou na manhã seguinte e começou a recolher
roupas, panos, um pouco de comida e as estátuas de Xangô, de Nanã
e dos Ibêjis, colocando tudo em uma trouxa. Ela não disse nada, mas
entendemos que devíamos fazer o mesmo e separamos as nossas poucas
coisas em duas trouxas pequenas, para que conseguíssemos carregar.
Estávamos cansadas porque tínhamos passado a noite inteira vigiando
para que as crianças não voltassem e tentassem levar a nossa avó.
Não chegamos a combinar nada, mas tenho certeza de que, caso se
aproximassem, assim como eu, a Taiwo trataria de expulsá-las a
qualquer custo, mesmo se o Kokumo e a minha mãe estivessem junto,
mesmo se tivéssemos que brigar com todos ao mesmo tempo. Só
afrouxamos a vigília quando finalmente amanheceu e acreditamos que
não apareceriam mais, porque seria mais fácil para eles levarem a
minha avó enquanto ela dormia, enquanto mantinha os olhos fechados e
não via o quanto eu e a Taiwo precisávamos dela. Mas ela sabia,
pelo jeito como nos olhou enquanto tentávamos equilibrar as trouxas
sobre a cabeça, ela sabia. E era por isso que estava nos tirando de
lá, pois tinha acontecido algo do qual nunca mais conseguiríamos
esquecer. Até aquela hora, desde a hora do destino, nenhuma de nós
três tinha falado nada, e foi assim, em silêncio, que pegamos a
estrada sem que eu e a Taiwo soubéssemos para onde. Talvez a minha
avó já soubesse, ou talvez tenha decidido quando estávamos a
caminho.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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