Depois
de Cannes, ainda havia mais trabalho a fazer na sala de montagem.
Pinchot dava duro nisso.
Eu
tinha um pequeno papel no filme. Fazia um bebum numa cena. Era curta,
mas podia ter sido mais longa. Cortaram quase toda. Eu explico. Estou
sentado ali, com os dois camaradas, no balcão, não juntos, mas
separados. É a cena em que Jack conhece Francine. Nós três, como
bebuns, temos apenas de ficar ali como bebuns. Assim que a câmera
nos pegou, porém, eu não pude me conter. Tomei uma grande golada de
cerveja, rolei-a gostosamente na boca, depois a esguichei de volta ao
gargalo da garrafa a uns bons vinte centímetros. Um truque
excelente. Nem uma gota caiu no balcão. Não sei o que me fez fazer
aquilo. Nunca tinha feito isso antes. Mas essa parte morreu na sala
de montagem.
– Escuta,
Jon – eu disse. – Por que não põe aquela parte de volta?
– Não
posso. Todo mundo ia perguntar: “Quem diabos é aquele cara?”.
Quando
a gente é extra, não improvisa.
De
qualquer modo, chegou a hora em que nada mais se tinha a fazer no
filme. Marcou-se a data da distribuição.
Numa
certa noite, cerca de uma semana antes da estreia, Jon estava em
nossa casa e nos sentávamos todos juntos.
– Bem,
vai escrever outro argumento pra gente? Eu estou pronto, quando você
estiver.
– Não,
Jon. Eu tenho medo de Hollywood. Acho que isso é tudo. Ou espero,
com certeza, que seja tudo.
– Que
vai fazer agora?
– Um
romance, imagino.
– Sobre
o quê?
– A
gente nunca fala sobre isso antes.
– Por
que não?
– Esvazia
os pneus.
– Hank
vive verificando a pressão dos pneus dele – disse Sarah. – Anda
com um calibradorzinho. Pra testar os romances.
– Ela
tem razão... Escuta, Jon, vai ter première?
– Première?
Ora, não...
– Não
vai ter première? – perguntou Sarah. – Mas isso é ridículo!
– Jon
– eu disse – eu quero uma première!
– Vocês
querem uma première? Eu não acredito! Por quê?
– Por
quê? De farra. Por tolice. Eu quero uma longa limusine branca com
chofer, um estoque do melhor vinho, TV a cores, telefone no carro,
charutos...
– É
isso mesmo, porra – disse Sarah –, e Francine vai adorar!
– Bem
– disse Jon –, vou ver o que posso fazer.
– Diga
a Friedman que é publicidade – disse Sarah. – Diga que vai
aumentar o faturamento.
– Vou
batalhar isso...
– E,
Jon – lembrei-lhe –, não esqueça a longa limusine branca.
De
algum modo, ele conseguiu. Chegou a noite da première. Sarah estava
lá em cima se aprontando quando chegou a longa limusine branca. Os
garotinhos das vizinhanças a viram e já se juntavam no pátio da
casa ao lado. Eu saí e orientei a limusine pela estradinha de acesso
adentro.
– Hank,
você é famoso? – perguntou um dos garotos.
– Famoso?
Oh, sim, sim...
– Hank,
a gente também pode ir junto?
– Não
iam gostar.
– Íamos,
sim.
O
motorista desligou o motor e saltou.
– Eu
sou Frank – ele disse.
– Eu
sou Hank – eu disse.
– Você
é o escritor?
– Sou.
Você leu meus livros?
– Não.
– Bem,
também ainda não vi você dirigir.
– Oh,
sim, viu, sim, senhor. Acaba de me ver entrar na estradinha de
acesso.
– Tem
razão, não tem? Escuta, minha mulher ainda está se vestindo. Não
demora muito.
– Que
é que o senhor escreve?
– Que
quer dizer?
– Quero
dizer exatamente isso, senhor. Que é que o senhor escreve?
O
cara começava a me deixar meio puto. Eu não estava acostumado com
motoristas.
– Bem,
eu escrevo poemas, contos, romances...
– E
escreveu um argumento, senhor.
– Oh.
Esse. É.
– Sobre
o que escreve, senhor?
– Sobre?
– É,
sobre...
– Oh,
ha-ha. Escrevo sobre a vida, você sabe. Só a vida, você sabe.
– Minha
mãe – disse um dos garotos, enfiando a cabeça por cima da cerca –
diz que ele escreve coisas indecentes.
O
chofer me olhou.
– Por
favor, diga à sua esposa que é um longo trajeto. Não devemos nos
atrasar.
– Quem
que disse?
– O
Sr. Friedman.
Entrei
em casa e berrei do pé da escada.
– Sarah,
a limusine está aqui. Se apresse...
– Chegou
adiantada...
– Eu
sei. Mas é noite de sexta-feira, e é um longo trajeto.
– Desço
num instante. Não se preocupe. A gente consegue.
Abri
uma cerveja e liguei a TV. Havia uma luta na ESPN. Os dois batiam com
força, na verdade. Agora os lutadores apresentavam melhor forma que
em minha juventude. Eu me maravilhava com a energia que podiam gastar
e ainda assim continuar e continuar. Os meses de trabalho na estrada
e no ginásio que tinham de suportar pareciam quase insuportáveis. E
depois, aqueles últimos dois ou três dias intensos antes de uma
grande luta. A forma era a chave. Talento e raça eram necessários,
mas sem forma física não existiam.
Eu
gostava de ver lutas. De alguma forma me lembrava do ato de escrever.
A gente precisava da mesma coisa, talento, raça e forma. Só que a
forma era mental, espiritual. Jamais se era um escritor. A gente
tinha de se tornar um escritor toda vez que se sentava à máquina.
Não era tão difícil, assim que a gente se sentava diante da
máquina. O que era difícil às vezes era pegar aquela cadeira e
sentar. Às vezes não se podia. Como todo mundo no mundo, havia
coisas que atrapalhavam: pequenos problemas, grandes problemas,
portas e outras coisas batendo sem parar. Era preciso estar em forma
para suportar o que tentava nos matar. Essa era a mensagem que eu
extraía das lutas que via, ou das corridas de cavalo, ou da maneira
como os jóqueis superavam o azar, as quedas e os pequenos horrores
pessoais na pista. Eu escrevia sobre a vida, ha-ha. Mas o que
realmente me pasmava era a imensa coragem de algumas das pessoas que
viviam essa vida. Isso me fazia seguir em frente.
Sarah
desceu a escada. Tinha uma aparência sensacional.
– Vamos!
Desliguei
a TV. Saímos.
Apresentei-a
ao motorista.
– Sarah!
Sarah! Sarah! – gritaram os garotos. Gostavam dela.
– A
gente pode ir com você, Sarah?
– Vão
ter de pedir às suas mães – ela riu.
Mães?
Alguém algum dia pediu aos pais?
O
motorista ajudou-nos a entrar para o banco de trás. A limusine
deslizou lentamente para trás, os garotos acompanhando ao longo da
cerca. Diabos, em breve eu estaria morto e a metade deles se sentaria
diante de processadores de textos escrevendo merdas inimaginavelmente
ruins.
Descemos
a ladeira íngreme e eu saquei a rolha da primeira garrafa de vinho.
Servi duas taças altas.
– À
lama no seu olho – eu disse a Sarah, tocando os copos.
– À
lama nos seus dois olhos – ela disse.
Liguei
a TV. Não pegava a ESPN. Desliguei.
– Sabe
como chegar lá? – perguntou Sarah ao chofer.
– Oh,
sim...
Ela
me olhou.
– Você
algum dia pensou que estaria indo de limusine à première de um
filme que você escreveu?
– Nunca.
Já estou muito feliz por ter largado aquele banco de jardim.
– Eu
gosto de limusines. Não gosta do jeito como elas deslizam?
– Deslizam.
Estamos num tobogã para o inferno. Aqui, olha, deixa eu servir outro
drinque a você.
– Grande
vinho...
– Oh,
sim...
Subimos
a autoestrada do Porto em direção ao norte, depois viramos para a
de San Diego, no mesmo sentido. Eu detestava a autoestrada de San
Diego. Vivia engarrafada. Aí notei que começava a cair um leve
chuvisco.
– É
isso aí – eu disse. – Está começando a chover.
Todos
os carros iam parar. Os motoristas da Califórnia não sabiam dirigir
na chuva. Dirigiam rápido demais ou devagar demais. A maioria
devagar demais.
– Vamos
nos atrasar – disse Sarah.
– Eu
acho, garota.
Aí
a chuva começou realmente a despencar. Os outros motoristas da
autoestrada encolheram-se de terror. Espiavam por detrás dos
limpadores de para-brisa com seus olhinhos desalmados. Os putos
deviam dar-se por satisfeitos por terem limpadores de para-brisa. Uma
vez eu tive um carro velho sem eles. Querem saber o que é dirigir
difícil? Experimentem essa. Em tempo de chuva, eu andava com uma
fatia de batata. Parava o carro, limpava o para-brisa com a batata e
prosseguia. Era preciso saber como fazer: só uma esfregadinha muito
de leve.
Mas
aqueles motoristas ali em seus carros agiam como se estivessem
praticamente em seus leitos de morte. A gente sentia o pânico deles
na tromba d’água. Pânico surdo. Pânico inútil. Pânico
desperdiçado. Se algum dia quiserem usar o pânico, guardem-no para
alguma coisa concreta.
– Bem,
baby, temos vinho à vontade.
Servi
mais um pouco.
Mas
tinha de dar um pouco de crédito ao chofer. Era um profissional.
Parecia saber que a pista ia ficar lenta e que outra se moveria, e
passava a enorme limusine de uma para outra, pegando o melhor do
fluxo. Quase o perdoei por não ser um dos meus leitores. Adorava
profissionais que sabiam fazer o que deviam. Esses eram raros. Havia
tantos profissionais incompetentes: médicos, advogados, presidentes,
bombeiros-mecânicos, zagueiros, dentistas, policiais, pilotos de
voos comerciais e etc.
– Acho
que vamos conseguir – eu lhe disse.
– Podemos
– ele admitiu.
– Quem
é seu escritor predileto? – perguntei.
– Shakespeare.
– Se
a gente conseguir, eu te perdoo.
– Se
a gente conseguir, eu me perdoo.
Eu
não conseguia amarrar um papo com o cara. Ele me arrolhava toda vez.
Sarah
e eu mamávamos nosso vinho.
E
então chegamos. O chofer encostou e abriu a porta. Saltamos.
Era
na frente de um grande centro comercial. O comércio ficava em algum
lugar lá para dentro.
– Obrigado,
Frank – eu disse.
– De
nada. Agora vou estacionar. Encontro vocês quando saírem.
– Como
vai nos encontrar?
– Eu
encontro...
Meteu-se
em seu assento de motorista, e a longa limusine branca enfiou-se no
trânsito. A chuva ainda caía.
Olhei,
e lá estavam quatro ou cinco caras de guarda-chuvas esperando por
nós. Era a parte aberta do centro comercial e entrara um pouco de
chuva. Os homens de guarda-chuvas correram para nós, parecendo
muitíssimo preocupados com que nos molhássemos.
Eu
ri.
– Isso
é ridículo!
– Eu
gosto! – Sarah riu.
Corremos
uns para os outros. Depois entramos no centro. Câmeras espocavam.
Grande momento. Eu deixara para trás o banco de jardim.
Charles Bukowski, em Hollywood
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