domingo, 9 de junho de 2024

Hollywood | 44


Depois de Cannes, ainda havia mais trabalho a fazer na sala de montagem. Pinchot dava duro nisso.
Eu tinha um pequeno papel no filme. Fazia um bebum numa cena. Era curta, mas podia ter sido mais longa. Cortaram quase toda. Eu explico. Estou sentado ali, com os dois camaradas, no balcão, não juntos, mas separados. É a cena em que Jack conhece Francine. Nós três, como bebuns, temos apenas de ficar ali como bebuns. Assim que a câmera nos pegou, porém, eu não pude me conter. Tomei uma grande golada de cerveja, rolei-a gostosamente na boca, depois a esguichei de volta ao gargalo da garrafa a uns bons vinte centímetros. Um truque excelente. Nem uma gota caiu no balcão. Não sei o que me fez fazer aquilo. Nunca tinha feito isso antes. Mas essa parte morreu na sala de montagem.
Escuta, Jon – eu disse. – Por que não põe aquela parte de volta?
Não posso. Todo mundo ia perguntar: “Quem diabos é aquele cara?”.
Quando a gente é extra, não improvisa.
De qualquer modo, chegou a hora em que nada mais se tinha a fazer no filme. Marcou-se a data da distribuição.
Numa certa noite, cerca de uma semana antes da estreia, Jon estava em nossa casa e nos sentávamos todos juntos.
Bem, vai escrever outro argumento pra gente? Eu estou pronto, quando você estiver.
Não, Jon. Eu tenho medo de Hollywood. Acho que isso é tudo. Ou espero, com certeza, que seja tudo.
Que vai fazer agora?
Um romance, imagino.
Sobre o quê?
A gente nunca fala sobre isso antes.
Por que não?
Esvazia os pneus.
Hank vive verificando a pressão dos pneus dele – disse Sarah. – Anda com um calibradorzinho. Pra testar os romances.
Ela tem razão... Escuta, Jon, vai ter première?
Première? Ora, não...
Não vai ter première? – perguntou Sarah. – Mas isso é ridículo!
Jon – eu disse – eu quero uma première!
Vocês querem uma première? Eu não acredito! Por quê?
Por quê? De farra. Por tolice. Eu quero uma longa limusine branca com chofer, um estoque do melhor vinho, TV a cores, telefone no carro, charutos...
É isso mesmo, porra – disse Sarah –, e Francine vai adorar!
Bem – disse Jon –, vou ver o que posso fazer.
Diga a Friedman que é publicidade – disse Sarah. – Diga que vai aumentar o faturamento.
Vou batalhar isso...
E, Jon – lembrei-lhe –, não esqueça a longa limusine branca.

De algum modo, ele conseguiu. Chegou a noite da première. Sarah estava lá em cima se aprontando quando chegou a longa limusine branca. Os garotinhos das vizinhanças a viram e já se juntavam no pátio da casa ao lado. Eu saí e orientei a limusine pela estradinha de acesso adentro.
Hank, você é famoso? – perguntou um dos garotos.
Famoso? Oh, sim, sim...
Hank, a gente também pode ir junto?
Não iam gostar.
Íamos, sim.
O motorista desligou o motor e saltou.
Eu sou Frank – ele disse.
Eu sou Hank – eu disse.
Você é o escritor?
Sou. Você leu meus livros?
Não.
Bem, também ainda não vi você dirigir.
Oh, sim, viu, sim, senhor. Acaba de me ver entrar na estradinha de acesso.
Tem razão, não tem? Escuta, minha mulher ainda está se vestindo. Não demora muito.
Que é que o senhor escreve?
Que quer dizer?
Quero dizer exatamente isso, senhor. Que é que o senhor escreve?
O cara começava a me deixar meio puto. Eu não estava acostumado com motoristas.
Bem, eu escrevo poemas, contos, romances...
E escreveu um argumento, senhor.
Oh. Esse. É.
Sobre o que escreve, senhor?
Sobre?
É, sobre...
Oh, ha-ha. Escrevo sobre a vida, você sabe. Só a vida, você sabe.
Minha mãe – disse um dos garotos, enfiando a cabeça por cima da cerca – diz que ele escreve coisas indecentes.
O chofer me olhou.
Por favor, diga à sua esposa que é um longo trajeto. Não devemos nos atrasar.
Quem que disse?
O Sr. Friedman.
Entrei em casa e berrei do pé da escada.
Sarah, a limusine está aqui. Se apresse...
Chegou adiantada...
Eu sei. Mas é noite de sexta-feira, e é um longo trajeto.
Desço num instante. Não se preocupe. A gente consegue.
Abri uma cerveja e liguei a TV. Havia uma luta na ESPN. Os dois batiam com força, na verdade. Agora os lutadores apresentavam melhor forma que em minha juventude. Eu me maravilhava com a energia que podiam gastar e ainda assim continuar e continuar. Os meses de trabalho na estrada e no ginásio que tinham de suportar pareciam quase insuportáveis. E depois, aqueles últimos dois ou três dias intensos antes de uma grande luta. A forma era a chave. Talento e raça eram necessários, mas sem forma física não existiam.
Eu gostava de ver lutas. De alguma forma me lembrava do ato de escrever. A gente precisava da mesma coisa, talento, raça e forma. Só que a forma era mental, espiritual. Jamais se era um escritor. A gente tinha de se tornar um escritor toda vez que se sentava à máquina. Não era tão difícil, assim que a gente se sentava diante da máquina. O que era difícil às vezes era pegar aquela cadeira e sentar. Às vezes não se podia. Como todo mundo no mundo, havia coisas que atrapalhavam: pequenos problemas, grandes problemas, portas e outras coisas batendo sem parar. Era preciso estar em forma para suportar o que tentava nos matar. Essa era a mensagem que eu extraía das lutas que via, ou das corridas de cavalo, ou da maneira como os jóqueis superavam o azar, as quedas e os pequenos horrores pessoais na pista. Eu escrevia sobre a vida, ha-ha. Mas o que realmente me pasmava era a imensa coragem de algumas das pessoas que viviam essa vida. Isso me fazia seguir em frente.
Sarah desceu a escada. Tinha uma aparência sensacional.
Vamos!
Desliguei a TV. Saímos.
Apresentei-a ao motorista.
Sarah! Sarah! Sarah! – gritaram os garotos. Gostavam dela.
A gente pode ir com você, Sarah?
Vão ter de pedir às suas mães – ela riu.
Mães? Alguém algum dia pediu aos pais?
O motorista ajudou-nos a entrar para o banco de trás. A limusine deslizou lentamente para trás, os garotos acompanhando ao longo da cerca. Diabos, em breve eu estaria morto e a metade deles se sentaria diante de processadores de textos escrevendo merdas inimaginavelmente ruins.
Descemos a ladeira íngreme e eu saquei a rolha da primeira garrafa de vinho. Servi duas taças altas.
À lama no seu olho – eu disse a Sarah, tocando os copos.
À lama nos seus dois olhos – ela disse.
Liguei a TV. Não pegava a ESPN. Desliguei.
Sabe como chegar lá? – perguntou Sarah ao chofer.
Oh, sim...
Ela me olhou.
Você algum dia pensou que estaria indo de limusine à première de um filme que você escreveu?
Nunca. Já estou muito feliz por ter largado aquele banco de jardim.
Eu gosto de limusines. Não gosta do jeito como elas deslizam?
Deslizam. Estamos num tobogã para o inferno. Aqui, olha, deixa eu servir outro drinque a você.
Grande vinho...
Oh, sim...
Subimos a autoestrada do Porto em direção ao norte, depois viramos para a de San Diego, no mesmo sentido. Eu detestava a autoestrada de San Diego. Vivia engarrafada. Aí notei que começava a cair um leve chuvisco.
É isso aí – eu disse. – Está começando a chover.
Todos os carros iam parar. Os motoristas da Califórnia não sabiam dirigir na chuva. Dirigiam rápido demais ou devagar demais. A maioria devagar demais.
Vamos nos atrasar – disse Sarah.
Eu acho, garota.
Aí a chuva começou realmente a despencar. Os outros motoristas da autoestrada encolheram-se de terror. Espiavam por detrás dos limpadores de para-brisa com seus olhinhos desalmados. Os putos deviam dar-se por satisfeitos por terem limpadores de para-brisa. Uma vez eu tive um carro velho sem eles. Querem saber o que é dirigir difícil? Experimentem essa. Em tempo de chuva, eu andava com uma fatia de batata. Parava o carro, limpava o para-brisa com a batata e prosseguia. Era preciso saber como fazer: só uma esfregadinha muito de leve.
Mas aqueles motoristas ali em seus carros agiam como se estivessem praticamente em seus leitos de morte. A gente sentia o pânico deles na tromba d’água. Pânico surdo. Pânico inútil. Pânico desperdiçado. Se algum dia quiserem usar o pânico, guardem-no para alguma coisa concreta.
Bem, baby, temos vinho à vontade.
Servi mais um pouco.
Mas tinha de dar um pouco de crédito ao chofer. Era um profissional. Parecia saber que a pista ia ficar lenta e que outra se moveria, e passava a enorme limusine de uma para outra, pegando o melhor do fluxo. Quase o perdoei por não ser um dos meus leitores. Adorava profissionais que sabiam fazer o que deviam. Esses eram raros. Havia tantos profissionais incompetentes: médicos, advogados, presidentes, bombeiros-mecânicos, zagueiros, dentistas, policiais, pilotos de voos comerciais e etc.
Acho que vamos conseguir – eu lhe disse.
Podemos – ele admitiu.
Quem é seu escritor predileto? – perguntei.
Shakespeare.
Se a gente conseguir, eu te perdoo.
Se a gente conseguir, eu me perdoo.
Eu não conseguia amarrar um papo com o cara. Ele me arrolhava toda vez.
Sarah e eu mamávamos nosso vinho.
E então chegamos. O chofer encostou e abriu a porta. Saltamos.
Era na frente de um grande centro comercial. O comércio ficava em algum lugar lá para dentro.
Obrigado, Frank – eu disse.
De nada. Agora vou estacionar. Encontro vocês quando saírem.
Como vai nos encontrar?
Eu encontro...
Meteu-se em seu assento de motorista, e a longa limusine branca enfiou-se no trânsito. A chuva ainda caía.
Olhei, e lá estavam quatro ou cinco caras de guarda-chuvas esperando por nós. Era a parte aberta do centro comercial e entrara um pouco de chuva. Os homens de guarda-chuvas correram para nós, parecendo muitíssimo preocupados com que nos molhássemos.
Eu ri.
Isso é ridículo!
Eu gosto! – Sarah riu.
Corremos uns para os outros. Depois entramos no centro. Câmeras espocavam. Grande momento. Eu deixara para trás o banco de jardim.

Charles Bukowski, em Hollywood

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