domingo, 9 de junho de 2024

Começar bem o dia

A missa matinal, obrigação
de fervor maquinal.

Em fila religiosa penetramos
na haendeliana atmosfera do órgão,
no incenso do recinto.
Cada um de nós pensa em outra coisa
diferente de Deus.
Ai, nosso Deus compulsório!
Proibido olhar o fundo da capela
onde rezam as moças de Friburgo,
as inacessíveis, castelanárias
moças friorentas de Friburgo.
Alguma delas me vê, sabe que existo?
Um dia notará que penso nela,
sem que eu saiba sequer em qual eu penso?

Se acaso, prosternado,
eu virasse o pescoço e vislumbrasse
entre rostos o rosto que me espera
e ele me sorrisse,
a vida era de súbito radiante,
o colégio era a Grécia, a Pérsia, o Não Narrável.

Baixo, entanto, a cabeça,
ouço a voz do oficiante, monocórdia.
Convida-me a pastar arrependimento
de faltas nem de longe cometidas,
obscuros crimes em ser.
Moça alguma verei no só relance
de entrada e saída, em fila cega.

Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo – Esquecer para lembrar

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