quarta-feira, 19 de junho de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo três


[…]

A cela era ampla, de paredes ásperas e pé-direito muito alto, e com nervuras de cupim no madeiramento. Junto à única porta havia uma janela de corpo inteiro com barrotes de madeira torneada e os batentes presos com uma tranca de ferro. Na parede do fundo, que dava para o mar havia outra janela alta, inutilizada com cruzetas de madeira. A cama era uma base de argamassa com um colchão de fazenda recheado de palha e maltratado pelo uso. Havia um banco fixo de pedra e uma mesa que servia ao mesmo tempo de altar e lavatório, debaixo de um crucifixo solitário pregado na parede. Ali deixaram Sierva María, ensopada até a trança e tiritando de medo, aos cuidados de uma guardiã instruída para ganhar a guerra milenar contra o demônio.
Sentou-se no catre, olhando os barrotes de ferro da porta blindada, e assim a encontrou a criada que lhe trouxe o prato da merenda às cinco da tarde. Não se alterou. Quando a criada quis tirar-lhe os colares, ela a agarrou pelo pulso e a obrigou a soltá-los. Na ata do convento referente àquela noite, a criada declarou que uma força do outro mundo a tinha derrubado.
A menina ficou imóvel enquanto a porta se fechava e se ouvia o barulho da corrente e das duas voltas da chave no cadeado. Viu o que havia para comer: umas pelancas de carne-seca, um bolo de aipim. e uma xícara de chocolate. Provou o bolo, mastigou e cuspiu. Deitou-se de costas.
Escutou o ofegar das ondas, o vento de água, os primeiros trovões da estação cada vez mais perto. Ao amanhecer do dia seguinte, quando voltou a criada com o desjejum, encontrou-a dormindo em cima dos montes de palha do colchão, que tinha destripado com os dentes e as unhas.
Na hora do almoço deixou-se levar com bons modos ao refeitório das internas sem voto de clausura. Era um salão amplo, com uma abóbada alta e grandes janelas por onde entrava livre a claridade do mar e se ouvia muito próximo o estrondo dos penhascos. Vinte noviças, na maioria jovens, estavam sentadas diante de duas filas de mesas toscas.
Vestiam hábitos de estamenha ordinária e tinham a cabeça raspada; eram alegres e apatetadas, e não escondiam a emoção de estar comendo sua ração de quartel na mesma mesa de uma energúmena.
Sierva María estava sentada junto à porta principal, entre duas guardiãs distraídas, e mal provou a comida. Tinham-lhe posto uma bata igual à das noviças, e os chinelos ainda molhados. Ninguém a olhou enquanto comiam, mas no fim várias noviças a rodearam para admirar seus colares. Uma delas procurou arrancá-los. Sierva María se encabritou. Com um repelão, tirou de cima as guardiãs que tentavam subjugá-la. Subiu na mesa, correu de uma ponta a outra gritando como uma possessa de verdade que não se deixa dominar.
Quebrou tudo quanto encontrou no caminho, pulou pela janela e desfez os caramanchões do pátio, alvoroçou as colmeias e derrubou as cercas dos estábulos e dos currais. As abelhas se dispersaram e os animais em disparada se precipitaram uivando de pânico até os dormitórios da clausura.
Daí por diante não aconteceu nada que não fosse atribuído ao malefício de Sierva María. Várias noviças declararam para as atas que ela voava com umas asas transparentes que emitiam um zumbido fantástico. Foram necessários dois dias e um piquete de escravos para encurralar o gado e pastorear as abelhas de volta às colmeias, e pôr a casa em ordem. Correram rumores de que os porcos estavam envenenados, de que as águas provocavam visões premonitórias, de que uma das galinhas espantadas saiu voando por cima dos telhados até desaparecer no horizonte do mar. Mas os terrores das clarissas eram contraditórios, pois apesar dos espaventos da abadessa, e do pavor de uma ou outra, a cela de Sierva Mana se transformou no centro da curiosidade de todas.
A cessação da clausura vigorava desde que se cantavam as vésperas, às sete da noite, até a prima para a missa das seis. As luzes eram apagadas, só permanecendo acesas as das poucas celas que tinham autorização. Contudo, nunca como nessas horas era agitada e livre a vida do convento. Havia um tráfico de sombras pelos corredores, de murmúrios entrecortados e pressas reprimidas. Jogava-se nas celas mais inesperadas, tanto com baralho espanhol como com dados, bebiam-se licores furtivos e fumava-se fumo de corda às escondidas desde que Josefa Miranda o proibiu durante a clausura. Uma menina endemoninhada dentro do convento tinha o fascínio de uma aventura inédita.
Mesmo as freiras mais rígidas escapavam da clausura depois do toque de recolher e iam em grupos de duas ou três conversar com Sierva María.
A menina começou recebendo-as com as unhas de fora, mas logo aprendeu a lidar com elas segundo o humor de cada uma e de cada noite. Uma pretensão frequente era a de que lhes servisse de mensageira para pedir favores impossíveis ao diabo. Sierva María imitava vozes de além-túmulo, vozes de degolados, vozes de monstros satânicos, e muitas acreditavam nas peças que pregava e as deram como certas nas atas. Uma patrulha de freiras fantasiadas assaltou a cela uma noite; amordaçaram Sierva María e a despojaram de seus colares sagrados.
Foi uma vitória efêmera Na afobação da fuga, a comandante do assalto tropeçou nas escadas escuras e fraturou o crânio. Suas companheiras não tiveram um instante de paz enquanto não devolveram à dona os colares roubados. Ninguém mais tornou a perturbar as noites da cela.
Para o marquês de Casalduero, foram dias de luto. Mais tempo levou em internar a menina do que em se arrepender de sua medida, e sofreu um acesso de tristeza do qual nunca se refez. Perambulou várias horas em redor do convento, a imaginar em qual de suas janelas incontáveis estava Sierva María pensando nele. Quando voltou à casa, viu Bernarda no pátio tomando a fresca do anoitecer. Estremeceu ao presságio de que ia perguntar-lhe por Sierva Mana, mas ela apenas o olhou.
Soltou os mastins e deitou-se na rede de alcova com a esperança de um sono eterno. Mas em vão. Os ventos alísios tinham passado, e a noite era ardente. Os pantanais expediam sevandijas de toda espécie aturdidos pelo bochorno e rajadas de pernilongos carniceiros, e era preciso queimar bosta de vaca nos quartos para espantá-los. As almas se derretiam no torpor. O primeiro pé-d'água do ano era esperado com ansiedade, assim como seis meses mais tarde se imploraria que acabasse de chover para sempre.
Apenas despontou a madrugada, o marquês foi à casa de Abrenuncio.
Mal acabara de sentar, experimentou por antecipação o imenso alívio de partilhar sua dor. Foi ao assunto sem preâmbulos: — Entreguei a menina em Santa Clara.
Abrenuncio não entendeu, e o marquês aproveitou seu desapontamento para o golpe seguinte.
Vai ser exorcizada — disse.
O médico respirou fundo e disse com uma calma exemplar: — Conte-me tudo.
O marquês contou: a visita ao bispo, seu desejo de rezar, sua determinação cega, sua noite em claro. Foi uma capitulação de cristão velho que não deixou nem um segredo para sua complacência .. Estou convencido de que foi um mandado de Deus — concluiu.
Quer dizer que recuperou a fé — disse Abrenuncio.
Nunca se deixa de crer Por completo — disse O marquês . — A dúvida persiste.
Abrenuncio entendeu. Sempre achara que a perda da fé deixava uma cicatriz indelével, que impedia de esquecer. O que lhe Parecia inconcebível era submeter uma filha ao castigo dos exorcismos.
Não há muita diferença em relação — feitiçarias dos negros — disse. — É pior ainda, Porque os negros não vão além de sacrificar galos., ao passo que o Santo Ofício se compraz em esquartejar inocentes no potro ou assá-los vivos num espetáculo público.
A participação do Padre Cayetano Delaura na visita ao bispo Parecia um Precedente sinistro. "É um carrasco" disse sem mais rodeios. E se perdeu numa enumeração erudita de antigos autos-de-fé contra doentes mentais executados como energúmenos ou hereges.
Acho que matá-la seria mais cristão do que enterrá-la viva — concluiu.
O marquês se benzeu. Abrenuncio olhou-o trêmulo e fantasmal em seus tafetás de luto, e tomou a ver em seus olhos os vaga-lumes de incertezas que nasceram com ele.
Tire-a de lá — disse.
É o que eu quero, desde que a vi caminhando para o pavilhão das enterradas vivas — disse o marquês. — Mas não me sinto com forças para contrariar a vontade de Deus.
Pois sinta-se — disse Abrenuncio. — Talvez Deus lhe agradeça algum dia.
Naquela noite o marquês pediu uma audiência ao bispo. Escreveu a carta do próprio punho, com uma redação embrulhada e caligrafia infantil, e entregou-a em pessoa ao porteiro para estar certo de que chegaria ao destino.
O bispo foi informado na segunda-feira de que Sierva María estava pronta para os exorcismos. Terminara a merenda no terraço de campânulas amarelas e ele não prestou atenção especial ao recado. Comia pouco, mas com uma parcimônia que podia prolongar o ritual por três horas. Sentado diante dele, o padre Cayetano Delaura lia com voz impostada, e estilo um tanto teatral. Ambas as coisas convinham aos livros que ele mesmo escolhia a seu gosto e critério.
O velho palácio era grande demais para o bispo, a quem bastavam a sala de visitas e o quarto de dormir, e o terraço descoberto onde dormia as sestas e comia até começar a estação das chuvas. Na ala oposta ficava a biblioteca oficial que Cayetano Delaura tinha criado, enriquecido e sustentado com mão de mestre, e que foi em seu tempo a melhor das índias. O resto do edifício eram onze aposentos fechados, onde se acumulavam os escombros de dois séculos.
A não ser a freira de turno que servia a mesa, Cayetano Delaura era o único que tinha acesso à casa do bispo durante as refeições, e não por seus privilégios pessoais, como se dizia, mas por sua dignidade de leitor. Não tinha nenhum cargo definido nem outro título além do de bibliotecário, mas era considerado um vigário de fato, por sua proximidade do bispo, e a ninguém ocorria que este tomasse sem ele qualquer decisão importante. Tinha sua cela pessoal numa casa contígua que se comunicava por dentro com o palácio, na qual ficavam os escritórios e os quartos dos funcionários da diocese, e os de meia dúzia de freiras do serviço doméstico do bispo. Mas sua verdadeira casa era a biblioteca, onde trabalhava e lia até quatorze horas diárias, e onde tinha um catre de caserna para dormir quando o sono o surpreendesse.
A novidade daquela tarde histórica foi que Delaura tropeçou diversas vezes na leitura. E, más insólito ainda, pulou por engano uma página e continuou lendo sem se dar conta. O bispo o observou através dos seus óculos mínimos de alquimista, até que ele passou à página seguinte. Então o interrompeu, divertido: — Em que pensas? Delaura teve um sobressalto.
Deve ser o bochorno — disse. — Por quê? O bispo continuou fitando-o nos olhos.
Com certeza é alguma coisa mais que o bochorno — disse. E repetiu no mesmo tom: — Em que estavas pensando? — Na menina — disse Delaura.
Não foi preciso dizer mais nada, pois desde a visita do marquês inexistia para eles outra menina no mundo. Tinham falado muito nela.
Tinham passado juntos em revista as crônicas dos endemoninhados e as memórias dos santos exorcistas. Delaura suspirou: — Sonhei com ela.
Como pudeste sonhar com uma pessoa que nunca viste? — perguntou o bispo.
Era uma marquesinha crioula de doze anos, com uma cabeleira que se arrastava como o manto de uma rainha— disse. -Como podia ser diferente? O bispo não era homem de visões celestiais, nem de milagres e flagelações. Seu reino era deste mundo. Assim, moveu a cabeça sem convicção e continuou comendo. Delaura recomeçou a leitura com mais cuidado. Quando o bispo acabou de comer, ajudou-o a sentar na cadeira de balanço. Já instalado a seu gosto, o bispo disse.
Agora conta-me o sonho.
Era muito simples. Delaura tinha sonhado que Sierva María estava sentada defronte de uma janela que dava para um campo coberto de neve, arrancando e comendo uma a uma as uvas de um cacho que tinha no colo.
Cada uva arrancada tornava a brotar no cacho. No sonho, era evidente que a menina estava há muitos anos defronte daquela janela infinita tentando acabar o cacho, e que não tinha pressa, por saber que na última uva estava a morte.
O mais estranho — concluiu Delaura — é que a janela por onde eu olhava o campo era a mesma de Salamanca, naquele inverno em que nevou três dias e os cordeiros morreram sufocados na neve.
O bispo ficou impressionado. Conhecia e gostava demais de Cayetano Delaura para desdenhar dos enigmas de seus sonhos. O lugar que ocupava, tanto na diocese como em seu afeto, fora bem ganho graças aos seus muitos talentos e à sua boa índole. O bispo fechou os olhos para dormir os três minutos da sesta vespertina.
Delaura comeu na mesma mesa, antes de rezarem juntos as orações da noite. Ainda não terminara quando o bispo se estirou na cadeira de balanço e anunciou a decisão de sua vida: — Toma conta do caso.
Falou sem abrir os olhos e soltou um ronco de leão. Delaura acabou de comer e sentou-se na sua poltrona costumeira, debaixo das trepadeiras em flor. Então o bispo abriu os olhos.
Não me respondeste — disse.
Pensei que tinha falado dormindo — disse Delaura.
Agora estou repetindo acordado — disse o bispo. — Confio-te a saúde da menina.
É a coisa mais estranha que já me aconteceu — disse Delaura.
Queres dizer que não? — Não sou exorcista, meu pai — disse Delaura. — Não tenho o caráter nem a formação nem a informação para tanto. E além disso sabemos que Deus me destinou outro caminho.
[...]

Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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