quinta-feira, 13 de junho de 2024

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo três


O convento de Santa Clara era um edifício quadrado de frente para o mar, com três andares de numerosas janelas iguais e uma galeria de arcos de meio ponto ao redor de um jardim agreste e sombrio. Havia um caminho de cascalho entre bosques de plátanos e fetos silvestres, uma palmeira esbelta que crescera mais alto que os terraços em busca da luz e de cujos galhos pendiam talos de baunilha e réstias de orquídeas. Debaixo da árvore havia um tanque de águas mortas com uma borda de ferro oxidado onde as araras cativas faziam cabriolas de circo.
O edifício era dividido pelo jardim em dois blocos. À direita ficavam os três pavimentos das enterradas vivas, apenas perturbados pelo rumor da ressaca nos alcantis e pelas rezas e cânticos das horas canônicas. Esse bloco se comunicava com a capela por uma porta interior, para que as freiras de clausura pudessem entrar no coro sem passar pela nave pública, e ouvir missa e cantar por trás de uma gelosia que lhes permitia ver sem ser vistas. O Precioso artesoado de madeiras nobres, que se repetia nos tetos de todo o convento, fora feito por um artesão espanhol que lhe dedicou metade da vida pelo direito de ser sepultado num nicho do altar-mor. Ali estava, comprimido atrás das lousas de mármore com quase dois séculos de abadessas e bispos e outros personagens principais.
Quando Sierva María entrou no convento, as freiras de clausura eram oitenta e duas espanholas, todas com suas serviçais, e trinta e seis nativas das grandes famílias do vice-reinado. Depois de fazer Votos de Pobreza, silêncio e castidade, o único Contato que tinham com o exterior eram as raras visitas num parlatório com gelosias de madeira por onde passava a voz mas não a luz. Ficava junto à roda, e seu uso era regulamentado e restrito, sempre com a presença de uma escuta.
À esquerda do jardim ficavam as escolas, as oficinas de tudo, com uma população profusa de noviças e mestras de artesanatos. Ficava a casa de serviço, com uma cozinha enorme de fogões a lenha, uma mesa grande de carniçaria e um forno de pão. Ao fundo havia um pátio sempre alagado pelas águas de lavagem de roupa, onde conviviam várias famílias de escravos, e por último as cocheiras, um curral de cabritos, o chiqueiro, a horta e as colmeias, onde se criava e cultivava todo o necessário para o bem viver.
No fim de tudo, o mais longe possível e largado pela mão de Deus, havia um pavilhão solitário que durante sessenta e oito anos serviu de cárcere da Inquisição, e continuava a sê-lo para clarissas, desgarradas. Foi na última cela desse recanto de esquecimento que encerraram Sierva María, noventa e três dias depois de ser mordida pelo cachorro e sem nenhum sintoma de raiva.
A porteira que a tinha levado pela mão encontrou-se no fim do corredor com uma noviça que ia para as cozinhas, e pediu que a levasse até a abadessa. A noviça achou que não era prudente submeter aos rigores do serviço uma menina tão frágil e bem vestida, pelo que a deixou sentada num dos bancos do jardim para buscá-la mais tarde. Esqueceu-a, porém.
Duas noviças que passaram depois interessaram-se pelos colares e anéis da menina e lhe perguntaram quem era. Ela não deu resposta.
Perguntaram-lhe se falava castelhano, e foi como interpelar um morto.
É surda-muda — disse a noviça mais moça.
Ou alemã — disse a outra.
A mais moça começou a tratá-la, como se lhe faltassem os cinco sentidos. Soltou a trança que tinha enrolada no pescoço e a mediu por palmos. "Quase quatro", disse, convencida de que a menina não a ouvia. Começou a desmanchar a trança, mas Sierva María a intimidou com o olhar. A noviça parou e pôs a língua de fora.
Tens os olhos do diabo — disse.
Tirou-lhe um anel sem resistência, mas quando a outra tentou arrebatar os colares, saltou como uma cobra e deu-lhe na mão uma mordida instantânea e certeira. A noviça correu a lavar o sangue.
Sierva María se levantara para beber água no tanque, quando começaram a cantar a terça. Assustada, retornou ao banco sem beber, mas voltou ao dar-se conta de que eram cânticos de freiras. Afastou a camada de folhas podres com um golpe destro de mão e bebeu no oco até se saciar, sem afastar os bichinhos. Depois urinou atrás da árvore, de cócoras e com um pedaço de pau para se defender de animais abusados e homens peçonhentos, como lhe ensinara Dominga de Adviento.
Pouco depois passaram duas escravas negras que reconheceram os colares de macumba e lhe falaram em ioruba. A menina respondeu entusiasmada na mesma língua. Como ninguém sabia por que ela estava ali, as escravas a levaram até a cozinha tumultuosa, onde foi recebida com alvoroço pela criadagem. Alguém notou a ferida no tornozelo e quis saber o que tinha acontecido. "Foi minha mãe que fez isso com uma faca" disse ela.
Aos que perguntaram como se chamava, deu seu nome de negra: María Mandinga.
Recuperou na hora o seu mundo. Ajudou a degolar um cabrito que resistia a morrer. Tirou-lhe os dois olhos e cortou os testículos, que eram as partes de que mais gostava. Jogou diabolô com os adultos na cozinha e com as crianças no pátio, e ganhou de todos. Cantou em ioruba, em congo e em mandinga, e mesmo os que não a entendiam escutaram-na enlevados. No almoço comeu um prato com os testículos e os olhos do cabrito, refogados em banha de porco e temperados com especiarias picantes.
A essa altura, todo o convento sabia que a menina estava lá, menos Josefa Miranda, a abadessa. Era uma mulher enxuta e aguerrida, e com uma mentalidade estreita que lhe vinha de família. Formara-se em Burgos, à sombra do Santo Ofício, mas o dom de comando e o rigor de seus preconceitos eram de dentro e de sempre. Tinha duas vigárias, competentes, mas desnecessárias, porque ela se ocupava de tudo sem a ajuda de ninguém.
Seu rancor contra o episcopado local começara quase cem anos antes do seu nascimento. A causa primeira, como nos grandes litígios da história, foi uma divergência mínima por questões de dinheiro e de jurisdição entre as clarissas e o bispo franciscano. Dada a intransigência deste, as freiras obtiveram o apoio do governo civil, e assim começou uma guerra que em certo momento chegou a ser de todos contra todos.
Com o respaldo de outras comunidades, o bispo pôs o convento em estado de sítio para dominá-lo pela fome, e decretou Cessatio a Divinis.
Isto é: a cessação de todo serviço religioso na cidade até nova ordem. A população se dividiu, e as autoridades civis e religiosas se enfrentaram apoiadas por uns ou outros. Entretanto, as clarissas continuavam vivas e em pé de guerra ao termo de seis meses de assédio, até que se descobriu um túnel secreto por onde seus partidários as abasteciam. Os franciscanos, dessa vez com o apoio de um novo governador, violaram a clausura do convento e dispersaram as freiras.
Foram necessários vinte anos para que se acalmassem os ânimos e se restituísse às clarissas o convento desmantelado, mas um século depois Josefa Miranda ainda continuava cozinhando-se a fogo lento em seus rancores. Inculcou-os às noviças, cultivou-os em suas entranhas mais que em seu coração, e encarnou toda a culpa da origem deles no bispo De Cáceres y Virtudes e em tudo que com este se relacionasse. De modo que sua reação era previsível quando lhe avisaram, de parte do bispo, que o marquês de Casalduero trouxera ao convento a filha de doze anos com sintomas mortais de possessão demoníaca. Só fez uma pergunta: "Mas existe esse marquês?" Perguntou com duplo veneno, porque era assunto do bispo e porque sempre negara legitimidade aos nobres crioulos, aos quais chamava "nobres de goteira". À hora do almoço não se achava Sierva María no convento. A porteira tinha dito a uma vigária que um homem de luto lhe entregara de manhã cedo uma menina loura, vestida como uma rainha, mas não tinha indagado nada a respeito dela porque era justamente a hora em que os mendigos estavam disputando a sopa de farinha de mandioca do Domingo de Ramos. Como prova do que dizia entregou-lhe o chapéu de fitas coloridas. A vigária o mostrou à abadessa quando estavam procurando a menina, e a abadessa não duvidou de quem era. Agarrou-o com a ponta dos dedos e examinou-o à distância do braço.
Uma senhorita marquesa com um chapéu de criadinha — disse. — Satanás sabe o que faz.
Tinha passado por lá às nove da manhã, a caminho do parlatório, e se demorara no jardim discutindo com os pedreiros os preços de uma obra de canalização, mas não viu a menina sentada no banco de pedra. Também não a viram outras freiras que deviam ter passado por lá várias vezes. As duas noviças que lhe tiraram o anel juraram não a ter visto quando por lá passaram depois de cantar a terça.
A abadessa acabava de fazer a sesta quando ouviu uma canção de uma só voz que enchia o convento. Puxou o cordão do lado da cama e daí a um instante apareceu uma noviça na penumbra do quarto. A abadessa perguntou quem estava cantando com tanto domínio.
A menina — respondeu a noviça.
Ainda sonolenta, a abadessa murmurou: — Que voz bonita. — E logo deu um salto: — Que menina? — Não sei — disse a freira. — Uma que pôs o convento em rebuliço desde hoje de manhã.
Santíssimo Sacramento! — gritou a abadessa.
Pulou da cama. Atravessou o convento voando e chegou até o pátio de serviço guiada pela voz. Sierva María cantava sentada num banquinho, com a cabeleira estendida pelo chão, no meio da criadagem fascinada.
Parou de cantar apenas viu a abadessa. Esta ergueu o crucifixo que trazia pendente do pescoço.
Ave Maria Puríssima — disse.
Concebida sem pecado — disseram todos.
A abadessa brandiu o crucifixo como uma arma contra Sierva María.
Vade retro — gritou.
Os criados recuaram, deixando a menina sozinha em seu espaço, com a vista fixa e em guarda.
Aborto de Satanás — gritou a abadessa. Ficaste invisível para nos confundir.
Não conseguiram que dissesse uma palavra. Uma noviça quis levá-la pela mão, mas a abadessa a impediu, apavorada: — Não a toques — gritou. E a seguir, para todos: — Que ninguém a toque.
Acabaram por levá-la à força, esperneando e distribuindo no ar dentadas de cachorro, até a última cela do Pavilhão da prisão.
No caminho, perceberam que ela estava suja de seus próprios excrementos, e a lavaram a baldes de água no estábulo.
Tantos Conventos nesta cidade e é ao nosso que O marquês manda cocô — protestou a abadessa.
[…]

Gabriel García Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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