domingo, 2 de junho de 2024

Cartas



[Para John William Corrington]
14 de janeiro de 1963

[...] Nascido em Andernach, Alemanha, em 16 de agosto de 1920. Mãe alemã, pai com o Exército Americano (nascido em Pasadena, mas de ascendência alemã) de Ocupação. Há certa evidência de que nasci, ou fui ao menos concebido sem casamento, mas não tenho certeza. Americano aos 2 anos de idade. Um ano mais ou menos em Washington, D.C., mas depois avante para Los Angeles. A história da fantasia de índio verdade. Tudo de grotesco, verdade. Entre a selvageria imbecil do meu pai, o desinteresse da minha mãe e o doce ódio dos meus amiguinhos: “Chucrute! Chucrute! Chucrute!”, a chapa esquentava por todo lado. A chapa esquentou ainda mais quando eu tinha 13 anos, tive um surto não de acne, mas de uns furúnculos ENORMES, nos meus olhos, pescoço, costas, rosto, e eu pegava o bonde para o hospital, para a ala de caridade, meu velho não estava trabalhando, e lá eles me perfuravam com a agulha elétrica, que é uma espécie de broca de madeira que eles fincam nas pessoas. Fiquei fora da escola por um ano. Frequentei o L.A. City College por uns dois anos, jornalismo. A anuidade era de dois dólares mas o velho disse que não podia mais me mandar. Fui trabalhar nos pátios ferroviários esfregando as laterais dos trens com detergente OAKITE. Eu bebia e jogava à noite. Eu tinha um quarto pequeno em cima de um bar na Temple Street no distrito filipino, e eu jogava à noite com os trabalhadores da aeronáutica e os cafetões e etc. Meu quartinho ficou conhecido e lotava de gente todas as noites. Era um inferno conseguir um pouco de sono. Uma noite, tirei a sorte grande. Grande para mim. Duzentos ou trezentos. Eu sabia que eles voltariam. Entrei na briga, quebrei um espelho e umas cadeiras mas mantive o dinheiro e de manhã cedo peguei um ônibus para Nova Orleans. Uma mocinha tentou dar em cima de mim, e larguei ela em Fort Worth mas cheguei até Dallas e voltei. Matei algum tempo lá e me mandei pra N.O. Ocupei quarto em frente ao GANGPLANK CAFE e comecei a escrever. Contos. Bebi o dinheiro, fui trabalhar numa loja de quadrinhos, e logo toquei em frente. Miami Beach. Atlanta. Nova York. St. Louis. Philly. Frisco. L.A. de novo. Nova Orleans de novo. Depois Philly de novo. Depois Frisco de novo. L.A. de novo. Rodando sem parar. Algumas noites em East Kansas City. Parei de escrever. Me concentrei em beber. As minhas estadias mais longas foram em Philly. Eu acordava de manhã cedo e ia para um bar lá e eu fechava aquele bar à noite. Como consegui, não sei. Então finalmente voltei para L.A. e a garrafa foi minha amante por sete anos. Fui parar no mesmo hospital de caridade. Dessa vez não com furúnculos, mas com meu estômago afinal dilacerado de tanta bebida mata-rato e agonia. 4 litros de sangue e 3 litros de glicose transfundidos sem interrupção. Minha puta veio me ver e ela estava bêbada. Meu velho estava com ela. O velho me encheu de desaforo e a puta foi escrota também, e eu disse ao velho: “Só mais uma palavra sua e eu arranco essa agulha do meu braço, escapo desse leito de morte e arrebento a sua cara!”. Eles foram embora. Saí de lá branco e velho, apaixonado pela luz do sol, tendo escutado que não devia nunca mais beber de novo se não a morte seriaminha. Constatei, entre as mudanças em mim, que a minha memória, outrora bastante boa, agora estava ruim. Algum dano cerebral sem dúvida, me deixaram lá uns dois dias na ala de caridade quando a minha papelada se perdeu e a minha papelada pedia transfusões imediatas, e eu estava sem sangue, ouvindo marteladas no meu cérebro. De todo modo, entrei num furgão dos correios e saí dirigindo e entreguei cartas e bebi de leve, experimentalmente, e aí uma noite sentei e comecei a escrever poesia. Que coisinha ótima. Pra onde mandar esse troço. Bem, não custava tentar. Havia uma revista chamada Harlequin e eu era um puta palhaço e a revista ficava lá numa cidadezinha do Texas e talvez eles não reconhecessem um troço ruim quando vissem, então –. Havia uma mocinha editora lá, e a pobrezinha surtou. Edição especial. Cartas se seguiram. As cartas começaram a esquentar. As cartas ferveram. Quando vi, a mocinha editora já estava em Los Angeles. Quando vi, nós estávamos em Las Vegas para o casamento. Quando vi, eu estava andando numa cidadezinha do Texas com os caipiras locais me encarando. A mocinha tinha dinheiro. Eu não sabia que ela tinha dinheiro. Ou que os parentes dela tinham dinheiro. Voltamos para L.A. e eu voltei a trabalhar, em algum lugar.
O casamento não deu certo. Ela levou 3 anos para descobrir que eu não era o que ela pensava que eu deveria ser. Eu era antissocial, grosseiro, um bêbado, não ia à igreja, apostava em cavalos, língua suja quando embriagado, não gostava de ir a lugar nenhum, me barbeava sem cuidado, não ligava para as pinturas dela ou para seus parentes, às vezes ficava na cama 2 ou 3 dias seguidos etc. Etc.
Bem pouco mais. Voltei pra minha puta que antes tinha sido uma mulher tão cruel e bela, e que já não era bela (como tal), mas que, magicamente, havia virado uma pessoa calorosa e verdadeira, mas não conseguia parar de beber, ela bebia mais do que eu, e ela morreu.
Não resta grande coisa agora. Eu bebo principalmente sozinho e desencorajo companhia. As pessoas parecem ficar falando sobre coisas que não importam. Elas são muito ansiosas ou muito perversas ou muito óbvias.

Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas

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