quinta-feira, 27 de junho de 2024

As vidas antes de nós


Na maré do passado Dunbar, eles se cruzaram, Michael e Penélope, e é claro que começou com o piano. Devo dizer que sempre foi um mistério para mim, esse princípio, essa sedução da felicidade duradoura. Imagino que seja assim com os pais de todo mundo — as vidas que tiveram antes de nós.
Numa tarde ensolarada aqui na cidade, empurraram o instrumento pela rua Pepper e trocaram olhares, enquanto os entregadores se exasperavam:
Ei, camarada!
Que é?
Tá achando que tá num desfile de moda, é?
Como é que é?
Empurra com vontade! Pra cá, imbecil. Por aqui.
Um para o outro, aos sussurros:
Nenhum salário no mundo compensa ter que aturar esse mala.
Nem me fale!
Vamos, mexam-se! A moça tá mais empenhada que vocês dois juntos.
Então para Penélope, do outro lado do dorso empertigado do piano.
Ei, tá precisando de emprego?
Ela deu um sorrisinho.
Não, obrigada, já tenho muitos.
Dá pra ver. Não é que nem esses dois pesos mortos... Ei, vocês! É por aqui!
E ali, logo ali, ela espreitou por cima do piano, e o homem do número 37 deixou escapar um vinco de sorriso colegial, que logo tratou de guardar para si novamente.

***

No apartamento, com o piano devidamente instalado junto à janela, Michael Dunbar não se demorou. Ela perguntou como poderia agradecer pela ajuda, se aceitaria um vinho ou uma cerveja, ou wódka (ela disse aquilo mesmo?), mas ele foi enfático ao recusar a oferta. Despediu-se e partiu, embora a garota tenha percebido que, quando começou a tocar, ele ficou escutando; suas primeiras notas experimentais. O piano ainda precisaria ser afinado.
Ele estava do lado de fora, entre as lixeiras.
Ela se levantou para dar uma olhadinha, mas ele já tinha sumido.

***

Nas semanas seguintes, definitivamente algo estava acontecendo.
Até o dia do piano, eles nunca tinham se visto, mas agora se esbarravam por toda parte. Na fila do supermercado, com papel higiênico debaixo do braço, lá estava a jovem no caixa ao lado, com um saco de laranjas e um pacote de biscoitinhos amanteigados. Depois do expediente, no caminho para casa, ela o viu sair do carro, logo adiante.
No caso de Penélope (e ela admitia para si que era constrangedor), ela dava algumas voltas aleatórias no quarteirão só pelos segundinhos em que passava pela casa de Michael. Será que ele está na varanda? Será que a luz da cozinha está acesa? Será que ele vai aparecer e oferecer um café, um chá ou qualquer outra coisa? O ritual fazia todo o sentido, claro, se nos lembrarmos de Michael e Lua, e das antigas caminhadas dele em Featherton com a cachorrinha. Até quando se sentava ao piano, volta e meia ela dava uma espiada. Quem sabe ele não estaria entre as lixeiras de novo?

***

Já Michael resistia.
Não queria estar naquela posição novamente, em que tudo vai bem e depois não vai, em que tudo pode ir por água abaixo. Na cozinha, ele pensava em Penélope, e no piano, e nos corredores assombrados por Abbey. Ele viu os braços dessa nova mulher, e o amor nas mãos dela, ajudando a empurrar o instrumento pela rua... mas estava decidido a não ir atrás da garota.

***

Finalmente, meses depois, em abril, Penny vestiu um jeans e uma camisa.
E lá se foi ela pela rua Pepper.
Estava escuro.
Ela se convencera de que a situação era ridícula, ela era uma mulher, não uma garotinha. Tinha viajado milhares de quilômetros para chegar ali. Já tinha mergulhado os pés no piso vinoso dos banheiros, e isso não era nada comparado àquilo. Decerto ela poderia passar pelo portão e bater à porta do homem.
Sem dúvidas.
E assim o fez.

***

Bom tarrde — arranhou ela. — Acho que... Não sei se você lembrar de mim.
Ele parecia solitário, bem como a luz da casa, e o espaço atrás dele, no corredor. Outra vez aquele sorriso. De pronto emergiu, mas logo se foi.
Claro que lembro... O piano.
Sim.
Ela estava ficando nervosa, o inglês não subia à boca; cada frase saía exatamente assim — um castigo particular. Era preciso firmar o próprio idioma no meio do caminho para só então contorná-lo. Ela deu um jeito de convidá-lo à casa dela. Ela poderia tocar piano, isto é, se é que ele gostava de piano, e tinha café e pão com passas e...
Biscoitinhos amanteigados?
Sim.
Por que tão tímida?
Sim. Sim, tenho um pacote — respondeu ela.
Ele lembrava. Ele lembrava.
Ele lembrava, e, apesar de todo o autocontrole e toda a disciplina, deixou escapar o sorriso que tanto continha. Parecia até um filme de comédia, desses em que o incompetente e desafortunado recruta do exército tenta escalar uma parede e despenca do outro lado; burro e desajeitado, porém grato.
Michael Dunbar sucumbiu:
Adoraria ouvir você tocar. Ouvi algumas notas aquele dia, quando fizeram a entrega.
Então uma pausa, uma longa pausa.
Não quer entrar um pouco? — perguntou ele.

***

Na casa dele havia certa amabilidade, mas também algo de enervante. Penélope não conseguia identificar muito bem o que era, porém Michael sabia. Uma vida passada, perdida.
Na cozinha, eles se apresentaram.
Ele puxou uma cadeira.
E a reparou reparando as mãos dele, ásperas e calejadas, e foi assim que tudo começou. Passaram um bom tempo, três horas ao menos, sentados à mesa, que estava toda riscada, a madeira ainda quente. Tomaram chá com leite e biscoitos, e falaram da rua Pepper e da cidade. Construções e faxina. Ele ficou surpreso com a fluidez dela, uma vez que parou de se preocupar com o inglês. Afinal, ela tinha muito o que contar:
Um novo país, e ver o oceano.
O choque e o pavor dos ventos do sul.
A certa altura, ele indagou mais sobre o lugar de onde ela tinha vindo, e a viagem até ali, e Penélope tateou o próprio rosto. Afastou uma mecha loura dos olhos, e aos poucos a maré baixou. Ela se lembrou da garota pálida que ouvia aqueles livros, lidos e relidos à exaustão; pensou em Viena e no exército de beliches ordenados. E falou muito, sobretudo do piano, e do mundo árido e gélido à janela. Falou de um homem e um bigode, e de amor sem comoção.
Em voz baixa, com muita calma, ela revelou:
Cresci com a estátua do Stálin.

***

Conforme a noite se estendia, eles trocaram histórias sobre as razões e os lugares de que eram feitos. Michael contou sobre Featherton — os incêndios, as minas, o som dos pássaros à beira do rio. Não mencionou Abbey, ainda não, mas ela estava lá, pairando.
Penélope, em compensação, por vezes sentia que deveria parar de falar, se preservar, mas de repente tinha muito a dizer. Quando mencionou as baratas, e o terror que infligiam, Michael riu, mas em solidariedade; em seus lábios, notava-se uma linha tênue de fascínio pelas casas feitas de papel.
Quando ela se levantou para ir embora, já passava da meia-noite. Ela pediu desculpas pelo falatório, e Michael Dunbar retrucou:
Não.
Estavam de pé diante da pia. Ele lavava as xícaras e os pratos.
Penélope secava, e permaneceu ali.
Algo se rebelou nela, e, ao que parecia, nele também. Anos de uma suave aridez. Cidades inteiras jamais tomadas, ou vividas. E como ambos sabiam que não eram muito diretos nem decididos, havia mais uma verdade em jogo — aquele haveria de ser o grande momento:
Sem espera, sem etiqueta.
Um mar ruidoso insurgia dentro deles.

***

Logo ficou insustentável.
Ele não aguentava mais sofrer calado, nem mais um segundo, então deu um passo à frente, esticou o braço e arriscou, com as mãos ainda cobertas de espuma.
Ele a puxou pelo pulso, firme e calmo ao mesmo tempo.
Não entendeu muito bem como ou por quê, mas colocou a outra mão no quadril dela, e, sem pensar, a abraçou e beijou. O braço dela estava molhado, a roupa estava molhada, bem naquele pedaço da camisa — e ele puxou o pano de prato com força, e cerrou o punho.
Meu Deus, me desculpa, eu...
E Penélope Lesciuszko deu um baita susto em Michael Dunbar.
Pegou a mão molhada dele, colocou debaixo da camisa — no mesmo pedaço, mas direto na pele — e pronunciou uma expressão do Leste.
Jeszcze raz.
Em voz baixa, muito séria, quase sem sorrir, como se cozinhas fossem feitas para aquilo.
Significa — disse ela — de novo.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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