sexta-feira, 28 de junho de 2024

A estrutura do "Orlando"


Orlando Furioso é um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação de um outro poema, Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa a acabar porque Ariosto não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após tê-lo publicado em sua primeira edição de 1516, em quarenta cantos, procura fazê-lo crescer, inicialmente tentando dar-lhe uma sequência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, publicados postumamente), depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio-tempo, houve uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se considerar o poema definitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da língua e da versificação, que Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, poderíamos dizer, pois para chegar à primeira edição de 1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a partir do interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando novas simetrias e novos contrastes, me parece que explica bem o método de construção de Ariosto; e permanece para ele o verdadeiro modo de alargar esse poema de estrutura policêntrica e sincrônica, cujas vicissitudes se difundem em todas as direções e se bifurcam continuamente.
Para acompanhar as aventuras de tantas personagens principais e secundárias o poema precisa de uma “montagem” que permita abandonar uma personagem ou um teatro de operações e passar para outro. Essas passagens às vezes ocorrem sem romper a continuidade da narrativa, quando duas personagens se encontram e a narrativa, que estava seguindo a primeira, se afasta para ir atrás da segunda; outras vezes, ao contrário, mediante cortes nítidos que interrompem a ação bem no meio de um canto. São em geral os dois últimos versos da oitava que informam sobre a suspensão e descontinuidade no relato, duplas de versos rimados como estes: “Segue Rinaldo, e d’ira si distrugge: ma seguitiamo Angelica che fugge” [Segue Rinaldo e com ira se desfaz: sigamos Angelica que sombra se faz]; ou então: “Lasciànlo andar, che farà buon camino, e torniamo a Rinaldo paladino” [Deixem-no ir, pois fará boa estrada, e voltemos a Rinaldo, alerta espada]; ou ainda: “Ma tempo è ormai di ritrovar Ruggiero che scorre il ciel su l’animal leggiero” [Mas já é tempo de encontrar Ruggiero que varre o céu no animal bem célere]. Enquanto essas cesuras da ação se situam no interior dos cantos, pelo contrário, o fecho de cada canto promete que o relato continuará no canto sucessivo; também aqui essa função didática é em geral atribuída ao par de versos rimados que concluem a oitava: “Come a Parigi appropinquosse, e quanto Carlo aiutò, vi dirà l’altro canto” [Como de Paris aprochegou-se, e quanto Carlo ajudou, dirá o outro canto].
Frequentemente, para fechar o canto, Ariosto finge de novo ser um aedo que recita seus versos numa noitada da corte: “Non più, Signor, non più di questo canto; ch’io son già rauco, e vo’ posarmi alquanto” [Não mais, Senhor, não mais deste canto; que já estou rouco, vou pousar um tanto]; ou então se nos mostra — testemunho mais raro — no ato material de escrever: “Poi che da tutti i lati ho pieno il foglio, finire il canto, e riposar mi voglio” [Pois de todos os lados cheia folha já vejo, terminar o canto e recuperar-me desejo].
Ao contrário, o início do canto subsequente comporta quase sempre um alargamento do horizonte, um distanciamento da urgência da narração, sob a forma de introdução gnômica ou de peroração amorosa ou ainda de metáfora elaborada, antes de retomar a narrativa do ponto em que foi interrompida. E justamente na abertura dos cantos se situam as digressões sobre a atualidade italiana que são muitas sobretudo na última parte do poema. É como se por meio dessas conexões o tempo em que o autor vive e escreve irrompesse no tempo fabuloso da narrativa.
Definir sinteticamente a forma do Orlando furioso é portanto impossível, pois não estamos perante uma geometria rígida: poderíamos recorrer à imagem de um campo de força, que gera continuamente em seu interior outros campos de força. O movimento é sempre centrífugo; no começo já nos encontramos em plena ação, e isso vale para o poema como para cada canto e episódio.
O defeito de todo preâmbulo ao Furioso é que se começa dizendo: “é um poema que serve de continuação a um outro, o qual continua um ciclo de inúmeros poemas”; o leitor logo se sente desencorajado: se antes de iniciar a leitura terá de conhecer todos os precedentes, e os precedentes dos precedentes, quando é que conseguirá de fato começar o poema de Ariosto? Na realidade, todo preâmbulo logo se revela supérfluo: o Furioso é um livro único em seu gênero e pode ser lido — quase diria: deve — sem fazer referência a nenhum outro livro precedente ou consecutivo; é um universo em si no qual se pode viajar em todos os quadrantes, entrar, sair, perder-se.
Que o autor faça passar a construção desse universo por uma continuação, um apêndice, um — como ele diz — “acréscimo” a uma obra alheia pode ser interpretado como um indício da extraordinária discrição de Ariosto, um exemplo daquilo que os ingleses chamam de understatement, isto é, o especial espírito de ironia contra si mesmo que leva a minimizar as coisas grandes e importantes; mas pode também ser visto como sinal de uma concepção do tempo e do espaço que renega a configuração fechada do cosmos ptolomaico e se abre ilimitada na direção do passado e do futuro, bem como no sentido de uma incalculável pluralidade de mundos.
Desde o início o Furioso se anuncia como o poema do movimento, ou melhor, anuncia o tipo particular de movimento que o percorrerá de um extremo a outro, movimento de linhas quebradas, em zigue-zague. Poderíamos traçar o desenho geral do poema seguindo o contínuo cruzamento e divergência dessas linhas sobre um mapa da Europa e da África, mas já bastaria para defini-lo o primeiro canto, em que três cavaleiros perseguem Angelica que foge pelo bosque, numa sarabanda cheia de extravios, encontros fortuitos, descaminhos, mudanças de programa.
É com esse zigue-zague traçado pelos cavalos a galope e pelas intermitências do coração humano que somos introduzidos no espírito do poema; o prazer da rapidez da ação se mistura logo a um sentido de amplitude na disponibilidade do espaço e do tempo. O procedimento distraído não é só dos perseguidores de Angelica mas também de Ariosto: dir-se-ia que o poeta, iniciando sua narrativa, não conhece ainda o esquema da trama que em seguida o guiará com pontual premeditação, mas uma coisa já tem perfeitamente clara: aquele impulso e ao mesmo tempo aquela facilidade em narrar, ou seja, aquilo que poderíamos definir — com um termo denso de significados — o movimento “errante” da poesia de Ariosto.
Tais características do “espaço” ariostesco, podemos identificá-las na escala do poema inteiro ou dos cantos singulares bem como numa escala menor, a da estrofe ou do verso. A oitava é a medida na qual melhor reconhecemos aquilo que Ariosto tem de inconfundível: na estrofe de oito versos Ariosto se vira como quer, está em casa, seu milagre é feito sobretudo de desenvoltura.
Principalmente por duas razões: uma intrínseca à oitava, isto é, uma estrofe que se presta a discursos também longos e a alternar tons sublimes e líricos com tons prosaicos e jocosos; e uma intrínseca ao modo de poetar de Ariosto, que não se tolhe com limites de nenhum gênero, que não se propôs como Dante uma repartição rígida da matéria, nem uma regra de simetria que o obrigasse a um número de cantos preestabelecido e a um número de estrofes em cada canto. No Furioso, o canto mais breve tem 72 oitavas; o mais longo, 199. O poeta pode mover-se comodamente, se quiser, empregar mais estrofes para dizer algo que outros diriam num verso ou então concentrar num verso aquilo que poderia ser matéria de um longo discurso.
O segredo da oitava ariostesca está em seguir o ritmo variado da linguagem falada, na abundância daqueles que De Sanctis definiu como os “acessórios não essenciais da linguagem”, assim como na desenvoltura da fala irônica; mas o registro coloquial é apenas um dos tantos que ele usa, que vão do lírico ao trágico e ao gnômico, e que podem coexistir na mesma estrofe. Ariosto pode ser de uma concisão memorável; muitos de seus versos se tornaram proverbiais: “Aí está o juízo humano que tanto erra!”, ou então: “Oh, grande bondade dos cavaleiros antigos!”. Mas não é só com esses parênteses que ele pratica suas mudanças de velocidade. Convém frisar que a própria estrutura da oitava se baseia numa descontinuidade de ritmo: aos seis versos unidos por uma dupla de rimas alternadas seguem-se dois versos com rimas emparelhadas, com um efeito que hoje definiríamos como anticlímax, de brusca mudança não só rítmica mas de clima psicológico e intelectual, do culto ao popular, do evocativo ao cômico.
Naturalmente, com tais volteios da estrofe, Ariosto joga do modo que lhe é próprio, mas o jogo poderia tornar-se monótono, sem a agilidade do poeta ao movimentar a oitava, introduzindo as pausas, os pontos fixos em posições diversas, adaptando diversos andamentos sintáticos ao esquema métrico, alternando períodos longos com breves, quebrando a estrofe e, em certos casos, encadeando-a numa outra, mudando continuamente os tempos da narrativa, saltando do pretérito perfeito para o imperfeito, para o presente e para o futuro, criando enfim uma sucessão de planos, de perspectivas da narração.
Essa liberdade, essa amplitude de movimentos que encontramos na versificação dominam ainda mais no nível das estruturas narrativas, da composição do enredo. As tramas principais, vale relembrar, são duas: a primeira conta como Orlando se torna, de apaixonado infeliz por Angelica, doido furioso, e como os exércitos cristãos, pela ausência de seu campeão, arriscam-se a perder a França, e como a razão perdida do louco foi reencontrada por Astolfo na Lua e devolvida ao legítimo proprietário, permitindo-lhe retomar seu lugar na tropa. Paralela a esta se desenvolve a segunda trama, a dos predestinados mas sempre adiados amores de Ruggiero, campeão do campo sarraceno, e da guerreira cristã Bradamante, e de todos os obstáculos que se interpõem ao destino nupcial deles, até que o guerreiro consegue mudar de lado, receber o batismo e arrebatar a robusta apaixonada. A trama Ruggiero-Bradamante não é menos importante que a de Orlando-Angelica, pois Ariosto (como antes Boiardo) quer transformar aquele casal em matriz da genealogia da família D’Este, isto é, não só justificar o poema aos olhos de seus comitentes, mas sobretudo ligar o tempo mítico da cavalaria às vivências contemporâneas, ao presente de Ferrara e da Itália. As duas tramas principais e suas numerosas ramificações vão adiante entrelaçadas, mas se prendem por seu lado ao redor do tronco mais propriamente épico do poema, ou seja, o desenrolar da guerra entre o imperador Carlos Magno e o rei da África, Agramante. Essa epopeia se concentra sobretudo num bloco de cantos que tratam o assédio de Paris visto pelos mouros, a contraofensiva cristã, as discórdias do lado de Agramante. O assédio de Paris é como o centro de gravidade do poema, assim como a cidade de Paris se apresenta como seu umbigo geográfico:

Siede Parigi in uma gran pianura
ne l’ombilico a Francia, anzi nel core;
gli passa la riviera entro le mura
e corre et esce in altra parte fuore:
ma fa un’isola prima, e v’assicura
de la città una parte, e la migliore;
l’altre due (ch’in tre parti è la gran terra)
di fuor la fossa, e dentro il fiume serra.
Alla città che molte miglia gira
da molte parti si può dar battaglia;
ma perché sol da un canto assalir mira,
né volentier l’esercito sbarraglia,
oltre il fiume Agramante si ritira
verso ponente, acciò che quindi assaglia;
però che né cittade né campagna
ha dietro (se non sua) fino alla Spagna*

(XIV, 104 ss.)

De tudo o que foi dito, poderíamos acreditar que no assédio de Paris acabem por convergir os itinerários de todas as personagens principais. Mas isso não acontece: dessa epopeia coletiva está ausente a maior parte dos campeões mais famosos; só a gigantesca massa de Rodomonte sobressai na peleja. Onde se meteram todos os outros?
É preciso dizer que o espaço do poema tem também um outro centro de gravidade, um centro em negativo, uma arapuca, uma espécie de turbilhão que engole uma a uma as principais personagens: o palácio encantado do mago Atlas. A magia de Atlas se deleita com arquiteturas ilusionistas: já no canto IV faz surgir, entre as alturas dos Pireneus, um castelo inteiramente de aço e depois o dissolve no nada; entre o canto XII e o XXII vemos elevar-se, não distante das costas da Mancha, um palácio que é um redemoinho de vazio, no qual se refratam todas as imagens do poema.
A Orlando em pessoa, enquanto está buscando Angelica, acontece ser vítima do encanto, conforme um procedimento que se repete quase idêntico para cada um desses audazes cavaleiros: vê sua bela ser raptada, persegue o raptor, entra num misterioso palácio, roda e rodeia por vestíbulos e corredores desertos. Ou seja: o palácio acha-se deserto daquilo que se busca e é frequentado apenas por quem procura algo.
Estes que vagueiam pelos pórticos e pelos vãos sob as escadas, que remexem debaixo das tapeçarias e baldaquinos são os mais famosos cavaleiros cristãos e mouros: todos foram atraídos para o palácio pela visão de uma mulher amada, de um inimigo inalcançável, de um cavalo roubado, de um objeto perdido. E agora não podem mais afastar-se daquelas paredes: se alguém tenta afastar-se, escuta um chamado, vira-se e a aparição inutilmente perseguida está ali, a dama a ser salva encontra-se numa janela, implorando socorro. Atlas deu forma ao reino da ilusão; se a vida é sempre variada, imprevista e cambiante, a ilusão é monótona, passa e repassa sempre no mesmo ponto. O desejo é uma corrida rumo ao nada, o encantamento de Atlas concentra todas as paixões insatisfeitas no interior de um labirinto, mas não muda as regras que governam os movimentos dos homens no espaço aberto do poema e do mundo.
Também Astolfo chega ao palácio, perseguindo — ou seja, imaginando perseguir — um pobre camponês que lhe roubou o cavalo Rabicano. Mas com Astolfo não há encanto que prevaleça. Ele possui um livro mágico onde se explica tudo sobre os palácios daquele tipo. Astolfo vai direto até a laje de mármore do umbral: basta levantá-la para que todo o palácio se transforme em fumaça. Naquele momento é alcançado por um bando de cavaleiros: quase todos são seus amigos, mas, em vez de dar-lhe boas-vindas, colocam-se contra ele como se quisessem enfiar-lhe a espada. Que acontecera? O mago Atlas, vendo-se em maus lençóis, recorrera a um último encanto: fazer com que Astolfo aparecesse aos vários prisioneiros do palácio como o adversário em cuja perseguição todos eles ali haviam entrado. Porém, Astolfo só precisa soprar em seu berrante para dispersar mago, magia e vítimas da magia. O palácio, teia de sonhos, desejos e invejas, se desfaz: ou seja, deixa de ser um espaço exterior a nós, com paredes, escadas e portas, para voltar a encerrar-se em nossas mentes, no labirinto dos pensamentos. Atlas devolve o livre curso pelas vias do poema às personagens que sequestrara. Atlas ou Ariosto? O palácio encantado se revela um astuto estratagema estrutural do narrador que, pela impossibilidade material de desenvolver simultaneamente um grande número de histórias paralelas, sente falta de retirar, durante alguns cantos, certas personagens da ação, pôr de lado determinadas cartas para continuar seu jogo e usá-las no momento oportuno. O encantador que pretende retardar o cumprimento do destino e o poeta-estratego que ora aumenta ora reduz as fileiras das personagens em campo, reúne-as para depois dispersá-las, sobrepõem-se até identificar-se.
A palavra jogo reapareceu várias vezes em nosso discurso. Mas não devemos esquecer que os jogos, dos infantis aos dos adultos, têm sempre um fundamento sério: são sobretudo técnicas para treinamento de faculdades e atitudes que serão necessárias na vida. O de Ariosto é o jogo de uma sociedade que se sente produtora e depositária de uma visão do mundo, mas sente também o vazio que se cria sob seus pés, entre ruídos de terremoto.
O último canto, XLVI, se abre com a enumeração de uma galeria de personas que constituem o público em que Ariosto pensava ao escrever seu poema. Esta é a verdadeira dedicatória do Furioso, mais do que a reverência obrigatória ao cardeal Ippolito d’Este, a “generosa hercúlea prole” ao qual o poema é dedicado, na abertura do primeiro canto.
A nave do poema está chegando ao porto e, para recebê-la, encontra perfiladas no píer as damas mais belas e gentis das cidades italianas, cavaleiros, poetas e doutos. Trata-se de uma panorâmica de nomes e rápidos perfis de seus contemporâneos e amigos, o que Ariosto desenha: é uma definição de seu público perfeito e ao mesmo tempo uma imagem de sociedade ideal. Para uma espécie de reviravolta estrutural, o poema sai de si mesmo e se observa através dos olhos de seus leitores, se define através do censo de seus destinatários. E por sua vez é o poema que serve de definição ou de emblema para a sociedade dos leitores presentes e futuros, para o conjunto de pessoas que participará de seu jogo, que nele se reconhecerá.

*“Centra-se Paris num grande descampado/ no umbigo da França, mais no coração;/ passa-lhe o rio dentro do amuralhado/ e corre e sai em distante dispersão:/ mas faz uma ilha antes, e resguardado/ da cidade um trecho, em boa condição;/ os outros dois (em três se parte a terra)/ lá fora da fossa, e dentro o rio encerra./ À cidade que muitas milhas gira/ de muitos lados se pode dar batalha;/ mas porque só de um canto assaltar mira,/ bem a contragosto o exército esfrangalha,/ além do rio o exército se retira/ rumo poente, negando combate à canalha;/ contudo nem cidade nem área de campanha/ tem por trás (senão sua) até a Espanha.”

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

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