sábado, 8 de junho de 2024

1. Confissão de fé

Minha relação com o Rio de Janeiro não é celebratória. Ela é moldada no espanto que parte de uma constatação: a cidade, em meio ao cenário deslumbrante, foi forjada na espoliação dos habitantes originais, na violência da escravização, nos projetos higienistas das elites contra pretos e pobres.
Ao mesmo tempo, nas frestas dos projetos de aniquilação e morte, foram reconstruídos modos de vida e redes de sociabilidades, deglutidas e regurgitadas referências diversas, reencantados os territórios em terreiros, às margens, contra as instâncias do poder ou negociando com elas.
É uma cidade de grandes deslocamentos (a diáspora negra, o desterro de ciganos, judeus e portugueses pobres, a migração de nortistas e nordestinos) e de pequenas diásporas internas (derrubada de cortiços, remoções de comunidades, arrasamento de morros, gentrificações repulsivas).
Vem daí minha percepção de que o embate carioca é entre o corpo e a morte, o encanto e o desencanto, o confinamento e a rua. Por isso escrevo sobre sambas, macumbas, quermesses, procissões, botequins, carnavais, jogo do bicho, Maracanã, baile, gurufim, vigaristas, santos, fantasmas e casas portuguesas.
A intelectualidade que o Rio produziu – gente da estirpe de Pixinguinha, Paulo da Portela, Ismael Silva, Almirante, Ciata de Oxum, Noel Rosa, Ivone Lara, Lima Barreto, Padeirinho, Tata Tancredo, Mané Garrincha, Cartola, Heitor dos Prazeres, Zé Pelintra, dona Maria Mulambo, seu Sete da Lira etc. – não é filha da cidade cordata; é filha da cidade violenta. A despeito disso, ou talvez em virtude disso, subverte, resiste, negocia, ginga, dribla, se vinga gargalhando na esquina e criando arte.
A cidade disputada me interessa profundamente. Racionalmente, tento pensá-la e entendê-la; passionalmente, amo, odeio e aceito a sina riscada no chão com a pemba de fé e a vareta de pipa: é o meu lugar no mundo.
O Rio de Janeiro é minha circunstância naquilo que tem de melhor e pior: faca que risca o prato no samba e que fere e fura o bucho. O que faço é a tentativa provisória e incompleta de entender a capacidade de criação de beleza no inferno, entre fragmentos e estilhaços de espantosa vida.
Eu não acredito na cidade, mas acredito no samba.

Luiz Antonio Simas, em Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras

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