Acho
que estou me tornando um exemplo para a terceira idade, que, aliás,
não sei bem o que é, pois uns me dizem que começa aos 60, outros
aos 65. Mas já me chamaram de ancião mais de uma vez e venho me
adaptando esplendidamente à situação, depois de alguns percalços
normais para um principiante. Claro, não sou perfeito e admito que
prossigo adiando para a segunda-feira (não esta que vem aí, que
está muito em cima; a outra) minha volta ao calçadão. Receio fazer
uma imediata legião de desafetos, mas a verdade é que já tentei,
já até fixei um sorriso hipócrita na cara ao chegar ao calçadão,
mas abomino andar nele, a dolorosa realidade é esta, não dá mais
para esconder. Nunca me senti bem nem antes nem depois, mesmo
insistindo durante meses. Devo padecer de endorfinopenia incurável,
expressão que acho que acabo de inventar agora, para descrever a
conclusão de que as famosas endorfinas não gostam, ou desistiram,
de aparecer no meu organismo. Será talvez uma das incontáveis
deficiências que a Natureza me dadivou, mas o único efeito que
andar no calçadão exerce em mim é encher o saco — sem pretender
deslustrar nenhum andador extremado, respeito a opção sexual de
todos, sou muito politicamente correto.
No
resto, faço-lhes saber que cumpro minha parte, notadamente quanto à
luta antitabagista. Vai fazer, se já não fez, um mês e meio que
não fumo. Tenho conseguido tourear o hediondo vício e, para
castigar a matéria, como se diz na minha terra, tomo café pela
manhã e depois do almoço, mas devo admitir que não vem sendo
fácil. De vez em quando dou uns ataques e já me flagrei vagueando
pelo bairro para me arejar e fazer alguma coisa que me tirasse a
lembrança do cigarro. Outro dia, entrei numas quatro papelarias,
dois bazares e uma loja de material elétrico e de construção.
Comprei um alicate (uma beleza de alicate, amarelão nos cabos,
parrudão, maravilha de alicate), um martelo (indispensável para
quem usa computador), diversos benjamins ininteligíveis, uma coleção
sortida de esferográficas de plástico, um saquinho de parafusos,
dois cadernos, um bloco de notas, uma caixinha de etiquetas, uma
colher de pedreiro, uma cesta de vime e um saco de húmus para o
jardim. Foi uma tarde movimentada e certamente deixei diversos
balconistas pouco propensos a vir a encarar textos meus ou mesmo
apenas me ver outra vez.
Mas
não fumei. Voltei aqui para a frente do teclado e recomecei a
escrever. A mão ainda tateia o ar, na busca do maço de cigarros que
ficava sempre aqui ao lado esquerdo, vem a sensação canalha de que
respirar mesmo seria dar uma boa tragada, mas consigo segurar. Pode
ser lugar-comum, mas é verdade, como, aliás, a maior parte dos
lugares-comuns: vontade é uma coisa que dá e passa. A qualquer
hesitação no texto, qualquer idéia menos clara, vinha um cigarro,
a ponto de por vezes haver três ou quatro acesos no cinzeiro. Mas dá
e passa, passa cada vez mais. E continuo firme na resolução de não
me tornar um cigarrelho, um desses caras que começam a ter uma crise
de tosse convulsiva, no momento em que vêem alguém acendendo um
cigarro a 20 metros de distância. Ou um nicotinelho, que passa a
maior parte do escasso tempo que lhe concedem falando em como o
cigarro enfraquece, o cigarro enruga, o cigarro é broxante, o
cigarro incendeia colchões, o cigarro só não faz é enfiar-se onde
todo mundo que o ouve gostaria que se enfiasse.
Não
me envolvo com o cigarro alheio e apenas — coisa estranha, que não
aconteceu das outras vezes em que tentei — comecei a achar meio
besta o sujeito ficar acendendo um tubinho de papel com palha dentro,
chupando, inspirando e soprando fumaça, mas não chego a me
incomodar. De resto, devo repelir a falsa modéstia e afirmar que,
apesar de me encontrar entre os decanos da minha mesa de boteco
(embora seja todo mundo mais ou menos do meu tope, uns dois aninhos a
menos aqui e acolá) e considerar qualquer exercício físico uma
forma de mortificação execrada pelo Criador como invenção do
Inimigo, figuro entre os de melhor forma. Barriga, claro, não vale,
e levar em conta pelanca no pescoço é considerado golpe baixo.
Estou em primeirão ou entre os primeiros nas melhores posições de
colesterol, glicemia, ácido úrico, PSA, transaminase — podem vir
de lá, que eu encaro. Outro dia cotejei laudos de exames com
Carlinhos Judeu, que se autointitula o pole position, e não
teve nem graça, foi um banho. Só ganhou de mim na dedada, porque a
deste ano ele tomou antes de mim, foi um descuido de minha parte.
Mas
eis que, assim vendendo saúde, sou surpreendido com a notícia de
que os americanos descobriram que a taxa de colesterol ruim
atualmente definida como aceitável ou desejável é muito alta.
Devia ser 70, ou coisa assim. Foi um golpe, como já fora um golpe
minha pressão de 12 por 8 ser agora também alta demais. Me consolei
um pouco com meu cardiologista, que não parece ter botado muita fé
na descoberta. “Deve ser para vender remédio”, disse ele. “Só
pode ser, 70 já é sacanagem.” Bem, de qualquer maneira, é chato.
Quando a gente pensa que está numa boa, tendo uma grande qualidade
de vida, sem fumar, sem beber, sem perder noite, comendo basicamente
capim com carnes esdrúxulas e os resultados dos exames representam o
prêmio pelo tremendo esforço de reportagem, vêm os caras e
estragam tudo. Deprime um pouco. E não que eu vá mudar de ideia
quanto ao cigarro, porque continuo apegado à opção de respirar,
mas não deixa de me provocar uma atitude, digamos, filosófica
pensar no que me disse outro companheiro de boteco, que é até um
pouquinho mais velho que eu e continua fumando o tempo todo.
— É
— disse ele. — Você fez bem. Sua cova vai ser na ala dos
não-fumantes do cemitério.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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