sexta-feira, 31 de maio de 2024

Saúde para Dar e Vender

Acho que estou me tornando um exemplo para a terceira idade, que, aliás, não sei bem o que é, pois uns me dizem que começa aos 60, outros aos 65. Mas já me chamaram de ancião mais de uma vez e venho me adaptando esplendidamente à situação, depois de alguns percalços normais para um principiante. Claro, não sou perfeito e admito que prossigo adiando para a segunda-feira (não esta que vem aí, que está muito em cima; a outra) minha volta ao calçadão. Receio fazer uma imediata legião de desafetos, mas a verdade é que já tentei, já até fixei um sorriso hipócrita na cara ao chegar ao calçadão, mas abomino andar nele, a dolorosa realidade é esta, não dá mais para esconder. Nunca me senti bem nem antes nem depois, mesmo insistindo durante meses. Devo padecer de endorfinopenia incurável, expressão que acho que acabo de inventar agora, para descrever a conclusão de que as famosas endorfinas não gostam, ou desistiram, de aparecer no meu organismo. Será talvez uma das incontáveis deficiências que a Natureza me dadivou, mas o único efeito que andar no calçadão exerce em mim é encher o saco — sem pretender deslustrar nenhum andador extremado, respeito a opção sexual de todos, sou muito politicamente correto.
No resto, faço-lhes saber que cumpro minha parte, notadamente quanto à luta antitabagista. Vai fazer, se já não fez, um mês e meio que não fumo. Tenho conseguido tourear o hediondo vício e, para castigar a matéria, como se diz na minha terra, tomo café pela manhã e depois do almoço, mas devo admitir que não vem sendo fácil. De vez em quando dou uns ataques e já me flagrei vagueando pelo bairro para me arejar e fazer alguma coisa que me tirasse a lembrança do cigarro. Outro dia, entrei numas quatro papelarias, dois bazares e uma loja de material elétrico e de construção. Comprei um alicate (uma beleza de alicate, amarelão nos cabos, parrudão, maravilha de alicate), um martelo (indispensável para quem usa computador), diversos benjamins ininteligíveis, uma coleção sortida de esferográficas de plástico, um saquinho de parafusos, dois cadernos, um bloco de notas, uma caixinha de etiquetas, uma colher de pedreiro, uma cesta de vime e um saco de húmus para o jardim. Foi uma tarde movimentada e certamente deixei diversos balconistas pouco propensos a vir a encarar textos meus ou mesmo apenas me ver outra vez.
Mas não fumei. Voltei aqui para a frente do teclado e recomecei a escrever. A mão ainda tateia o ar, na busca do maço de cigarros que ficava sempre aqui ao lado esquerdo, vem a sensação canalha de que respirar mesmo seria dar uma boa tragada, mas consigo segurar. Pode ser lugar-comum, mas é verdade, como, aliás, a maior parte dos lugares-comuns: vontade é uma coisa que dá e passa. A qualquer hesitação no texto, qualquer idéia menos clara, vinha um cigarro, a ponto de por vezes haver três ou quatro acesos no cinzeiro. Mas dá e passa, passa cada vez mais. E continuo firme na resolução de não me tornar um cigarrelho, um desses caras que começam a ter uma crise de tosse convulsiva, no momento em que vêem alguém acendendo um cigarro a 20 metros de distância. Ou um nicotinelho, que passa a maior parte do escasso tempo que lhe concedem falando em como o cigarro enfraquece, o cigarro enruga, o cigarro é broxante, o cigarro incendeia colchões, o cigarro só não faz é enfiar-se onde todo mundo que o ouve gostaria que se enfiasse.
Não me envolvo com o cigarro alheio e apenas — coisa estranha, que não aconteceu das outras vezes em que tentei — comecei a achar meio besta o sujeito ficar acendendo um tubinho de papel com palha dentro, chupando, inspirando e soprando fumaça, mas não chego a me incomodar. De resto, devo repelir a falsa modéstia e afirmar que, apesar de me encontrar entre os decanos da minha mesa de boteco (embora seja todo mundo mais ou menos do meu tope, uns dois aninhos a menos aqui e acolá) e considerar qualquer exercício físico uma forma de mortificação execrada pelo Criador como invenção do Inimigo, figuro entre os de melhor forma. Barriga, claro, não vale, e levar em conta pelanca no pescoço é considerado golpe baixo. Estou em primeirão ou entre os primeiros nas melhores posições de colesterol, glicemia, ácido úrico, PSA, transaminase — podem vir de lá, que eu encaro. Outro dia cotejei laudos de exames com Carlinhos Judeu, que se autointitula o pole position, e não teve nem graça, foi um banho. Só ganhou de mim na dedada, porque a deste ano ele tomou antes de mim, foi um descuido de minha parte.
Mas eis que, assim vendendo saúde, sou surpreendido com a notícia de que os americanos descobriram que a taxa de colesterol ruim atualmente definida como aceitável ou desejável é muito alta. Devia ser 70, ou coisa assim. Foi um golpe, como já fora um golpe minha pressão de 12 por 8 ser agora também alta demais. Me consolei um pouco com meu cardiologista, que não parece ter botado muita fé na descoberta. “Deve ser para vender remédio”, disse ele. “Só pode ser, 70 já é sacanagem.” Bem, de qualquer maneira, é chato. Quando a gente pensa que está numa boa, tendo uma grande qualidade de vida, sem fumar, sem beber, sem perder noite, comendo basicamente capim com carnes esdrúxulas e os resultados dos exames representam o prêmio pelo tremendo esforço de reportagem, vêm os caras e estragam tudo. Deprime um pouco. E não que eu vá mudar de ideia quanto ao cigarro, porque continuo apegado à opção de respirar, mas não deixa de me provocar uma atitude, digamos, filosófica pensar no que me disse outro companheiro de boteco, que é até um pouquinho mais velho que eu e continua fumando o tempo todo.
É — disse ele. — Você fez bem. Sua cova vai ser na ala dos não-fumantes do cemitério.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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