sexta-feira, 31 de maio de 2024

Pont du gard


Nos quatro ou cinco dias seguintes, pai e filho estabeleceram uma rotina. Era uma parceria cuidadosa, equilibrada, talvez como dois boxeadores nos primeiros rounds. Nenhum dos dois estava disposto a correr muito risco, por medo de sofrer um nocaute. Michael era o que se expunha menos. Não queria viver outro daqueles momentos “não foi por sua causa que eu vim”. Aquilo seria ruim para todos — ou talvez só para ele.
No sábado, dia em que Clay sentia mais saudade de casa, eles desciam o leito do rio, em vez de subir, e às vezes o garoto se sentia tentado a puxar assunto.
No início, foram apenas coisas bobas.
O Assassino tinha emprego?
Quanto tempo fazia, mais ou menos, que morava ali?
Contudo, logo foi ficando mais inquisitivo, provocador:
Que droga ele estava esperando?
Quando começariam a construção?
Aquela ponte era só uma forma elaborada de procrastinar?
Lembrou-se de Carey e do velho McAndrew — de como fazer perguntas poderia acabar atrapalhando. No entanto, no caso dele, já havia um histórico.
Considerando que era um menino que amava histórias, já tinha sido melhor em fazer perguntas.

***

Quase toda manhã, o Assassino ia para o leito do rio.
Passava horas ali.
Então, entrava para ler, ou escrever em suas folhas soltas de papel.
Clay saía sozinho.
Às vezes subia o rio; até os imensos blocos de pedra.
Sentava-se ali e ficava, sentindo saudade de todos.

***

Na segunda-feira, foram à cidade comprar mantimentos.
Atravessaram o leito em toda a sua secura.
Entraram na caixa vermelha que chamavam de carro.
Clay mandou uma carta para Carey e um bilhete coletivo para casa, aos cuidados de Henry. Enquanto a primeira tecia um relatório detalhado de basicamente tudo que acontecera até então, o segundo era comunicação típica de irmãos.

Oi, Henry.
Aqui tá tudo bem.
E aí?
Avisa aos outros.
Clay

Lembrou que Henry havia sugerido que ele comprasse um celular e pensou que, de certa forma, fazia sentido; seu bilhete parecia mais uma mensagem de texto.
Foi um drama decidir se deveria preencher o endereço do remetente, e acabou colocando só no envelope para Henry. Já no de Carey… Ele não sabia. Não queria que ela se sentisse obrigada a responder. Ou talvez estivesse com medo de que ela não respondesse.

***

Na quinta, tudo mudou, ou pelo menos só um pouquinho; à noite, quando Clay foi ficar com ele por livre e espontânea vontade.
Foi na sala de estar, e Michael não disse nada, só lançou ao filho um olhar cauteloso, e Clay se sentou no chão, perto da janela. Começou lendo o último dos livros dela — da generosa Cláudia Kirkby —, mas logo passou para um almanaque de pontes; aquele que lia com mais frequência. O título não era muito promissor, mas o que ele amava era o conteúdo ali dentro. As pontes mais incríveis do mundo.
Durante um tempo, teve dificuldade para se concentrar, mas depois de uma boa meia hora, o primeiro sorriso estampou seu rosto quando ele viu sua ponte preferida.
A Pont du Gard.
Incrível não era uma palavra incrível o bastante para descrever aquela ponte, que também servia de aqueduto.
Foi construída pelos romanos.
Ou pelo diabo, dependendo da versão em que você acreditasse.
Admirando as estruturas da ponte — meia dúzia de imensos arcos na base, onze na seção do meio e trinta e cinco no topo —, Clay abriu um sorriso que foi crescendo.
Quando percebeu, se recompôs.
Foi por pouco.
O Assassino quase notou.

***

Domingo à noite, o homem encontrou Clay no leito do rio, no ponto em que cortava as duas vias da estrada. De longe mesmo, avisou:
Preciso passar dez dias fora.
Ele tinha um trabalho, afinal.
Na mina.
Ficava a seis horas de carro dali, depois de sua antiga cidade, Featherton.
Enquanto falava, o sol poente parecia cheio de preguiça, ao longe. A sombra das árvores se alongava.
Você pode voltar para casa durante esses dez dias ou pode ficar aqui.
Clay se levantou e fitou o horizonte.
O céu lutava com unhas e dentes, mas já começava a sangrar.
Clay?
Então o menino se virou e deu ao pai a primeira prova de sua camaradagem, ou um pedacinho de si mesmo; contou uma verdade.
Não posso ir para casa. — Ainda era cedo demais para tentar isso. — Não posso voltar. Ainda não.
A resposta de Michael foi tirar algo do bolso.
Era um panfleto de imobiliária, com fotos do terreno, da casa e de uma ponte.
Toma — disse ele —, dá uma olhada.
A ponte era bonita. Uma construção de cavalete simples, com dormentes e vigas de madeira, que no passado unira as duas margens bem no ponto em que eles estavam.
Ficava aqui?
Ele assentiu.
O que achou?
Clay não viu motivo para mentir.
Gostei.
O Assassino correu os dedos pelo cabelo ondulado. Esfregou um dos olhos.
O rio a destruiu, pouco depois que me mudei. Quase não chove desde então. Já faz um bom tempo que o leito está seco desse jeito.
Clay deu um passo na direção dele.
Sobrou alguma coisa?
Michael apontou para as poucas ripas cravadas.
Só isso?
Só isso.
Do lado de fora, o trovão de escarlate seguia tomando o céu, uma hemorragia silenciosa.
Andaram de volta para casa.
Nos degraus da frente, o Assassino perguntou:
É o Matthew? — Mais do que falar, ele entregou a pergunta. — Você fala muito o nome dele enquanto dorme. — Então hesitou. — Na verdade, você fala o nome de todos eles, e alguns outros. Tem uns de que eu nunca nem ouvi falar.
Carey, pensou Clay, mas então Michael disse El Matador. Perguntou:
El Matador no quinto?
Mas chega.
Melhor não abusar da sorte.
Quando Clay olhou para ele daquele jeito, o Assassino compreendeu. Voltou à pergunta original.
Matthew proibiu você de voltar para casa?
Não, não é bem assim.
Não precisava dizer mais nada.
Michael Dunbar conhecia bem a alternativa.
Você deve sentir saudade deles.
A raiva que sentia do pai se acendeu no peito de Clay.
Pensou em meninos, quintais e pregadores no varal.
Olhou bem nos olhos dele e disse:
E você não?
Cedo, bem cedo, por volta das três da manhã, discerniu a sombra do Assassino de pé ao lado da cama dele. Ficou se perguntando se aquilo trazia ao Assassino a mesma recordação que trazia a ele próprio, da última vez em que fizera exatamente aquilo, na horrível noite em que nos abandonara.
Primeiro, pensou que era um invasor, mas logo conseguiu enxergar. Reconheceria aquelas mãos de algoz em qualquer lugar. Ouviu a voz moribunda:
Pont du Gard?
Silêncio, tanto silêncio.
Então ele o vira, no fim das contas.
Essa é a sua preferida?
Clay engoliu em seco e assentiu na escuridão.
É.
Alguma outra?
A de Regensburg. A Ponte do Peregrino.
Essa tem três arcos.
Sim.
Os pensamentos não davam trela.
Mas e a Coathanger, você gosta?
Coathanger.
A grande ponte da cidade.
A grande ponte de casa:
Um tipo diferente de arco, de metal, que se erguia por cima da estrada.
Eu amo.
Por quê?
Clay semicerrou os olhos e os abriu em seguida.
Penny, pensou.
Penélope.
Porque sim.
Por que ainda precisava de explicação?

***

Lentamente, o Assassino recuou para o resto da casa e disse a ele:
Até logo. — Mas então acrescentou, em um momento de esperança e impulsividade: — Conhece a lenda da Pont du Gard?
Preciso dormir.
Porra, é claro que ele conhecia.

***

Pela manhã, contudo, na casa vazia, ele se deteve no meio da cozinha assim que viu — escrito com carvão grosso.
Abaixou o dedo até tocar o papel:
Pensou em Carey e pensou nos arcos, e mais uma vez foi surpreendido pela própria voz:

Planta final da ponte: Primeiro esboço


Essa ponte vai ser feita de você.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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