Nos
quatro ou cinco dias seguintes, pai e filho estabeleceram uma rotina.
Era uma parceria cuidadosa, equilibrada, talvez como dois boxeadores
nos primeiros rounds. Nenhum dos dois estava disposto a correr muito
risco, por medo de sofrer um nocaute. Michael era o que se expunha
menos. Não queria viver outro daqueles momentos “não foi por sua
causa que eu vim”. Aquilo seria ruim para todos — ou talvez só
para ele.
No
sábado, dia em que Clay sentia mais saudade de casa, eles desciam o
leito do rio, em vez de subir, e às vezes o garoto se sentia tentado
a puxar assunto.
No
início, foram apenas coisas bobas.
O
Assassino tinha emprego?
Quanto
tempo fazia, mais ou menos, que morava ali?
Contudo,
logo foi ficando mais inquisitivo, provocador:
Que
droga ele estava esperando?
Quando
começariam a construção?
Aquela
ponte era só uma forma elaborada de procrastinar?
Lembrou-se
de Carey e do velho McAndrew — de como fazer perguntas poderia
acabar atrapalhando. No entanto, no caso dele, já havia um
histórico.
Considerando
que era um menino que amava histórias, já tinha sido melhor em
fazer perguntas.
***
Quase
toda manhã, o Assassino ia para o leito do rio.
Passava
horas ali.
Então,
entrava para ler, ou escrever em suas folhas soltas de papel.
Clay
saía sozinho.
Às
vezes subia o rio; até os imensos blocos de pedra.
Sentava-se
ali e ficava, sentindo saudade de todos.
***
Na
segunda-feira, foram à cidade comprar mantimentos.
Atravessaram
o leito em toda a sua secura.
Entraram
na caixa vermelha que chamavam de carro.
Clay
mandou uma carta para Carey e um bilhete coletivo para casa, aos
cuidados de Henry. Enquanto a primeira tecia um relatório detalhado
de basicamente tudo que acontecera até então, o segundo era
comunicação típica de irmãos.
Oi,
Henry.
Aqui
tá tudo bem.
E
aí?
Avisa
aos outros.
Clay
Lembrou
que Henry havia sugerido que ele comprasse um celular e pensou que,
de certa forma, fazia sentido; seu bilhete parecia mais uma mensagem
de texto.
Foi
um drama decidir se deveria preencher o endereço do remetente, e
acabou colocando só no envelope para Henry. Já no de Carey… Ele
não sabia. Não queria que ela se sentisse obrigada a responder. Ou
talvez estivesse com medo de que ela não respondesse.
***
Na
quinta, tudo mudou, ou pelo menos só um pouquinho; à noite, quando
Clay foi ficar com ele por livre e espontânea vontade.
Foi
na sala de estar, e Michael não disse nada, só lançou ao filho um
olhar cauteloso, e Clay se sentou no chão, perto da janela. Começou
lendo o último dos livros dela — da generosa Cláudia Kirkby —,
mas logo passou para um almanaque de pontes; aquele que lia com mais
frequência. O título não era muito promissor, mas o que ele amava
era o conteúdo ali dentro. As pontes mais incríveis do mundo.
Durante
um tempo, teve dificuldade para se concentrar, mas depois de uma boa
meia hora, o primeiro sorriso estampou seu rosto quando ele viu sua
ponte preferida.
A
Pont du Gard.
Incrível
não era uma palavra incrível o bastante para descrever aquela
ponte, que também servia de aqueduto.
Foi
construída pelos romanos.
Ou
pelo diabo, dependendo da versão em que você acreditasse.
Admirando
as estruturas da ponte — meia dúzia de imensos arcos na base, onze
na seção do meio e trinta e cinco no topo —, Clay abriu um
sorriso que foi crescendo.
Quando
percebeu, se recompôs.
Foi
por pouco.
O
Assassino quase notou.
***
Domingo
à noite, o homem encontrou Clay no leito do rio, no ponto em que
cortava as duas vias da estrada. De longe mesmo, avisou:
— Preciso
passar dez dias fora.
Ele
tinha um trabalho, afinal.
Na
mina.
Ficava
a seis horas de carro dali, depois de sua antiga cidade, Featherton.
Enquanto
falava, o sol poente parecia cheio de preguiça, ao longe. A sombra
das árvores se alongava.
— Você
pode voltar para casa durante esses dez dias ou pode ficar aqui.
Clay
se levantou e fitou o horizonte.
O
céu lutava com unhas e dentes, mas já começava a sangrar.
— Clay?
Então
o menino se virou e deu ao pai a primeira prova de sua camaradagem,
ou um pedacinho de si mesmo; contou uma verdade.
— Não
posso ir para casa. — Ainda era cedo demais para tentar isso. —
Não posso voltar. Ainda não.
A
resposta de Michael foi tirar algo do bolso.
Era
um panfleto de imobiliária, com fotos do terreno, da casa e de uma
ponte.
— Toma
— disse ele —, dá uma olhada.
A
ponte era bonita. Uma construção de cavalete simples, com dormentes
e vigas de madeira, que no passado unira as duas margens bem no ponto
em que eles estavam.
— Ficava
aqui?
Ele
assentiu.
— O
que achou?
Clay
não viu motivo para mentir.
— Gostei.
O
Assassino correu os dedos pelo cabelo ondulado. Esfregou um dos
olhos.
— O
rio a destruiu, pouco depois que me mudei. Quase não chove desde
então. Já faz um bom tempo que o leito está seco desse jeito.
Clay
deu um passo na direção dele.
— Sobrou
alguma coisa?
Michael
apontou para as poucas ripas cravadas.
— Só
isso?
— Só
isso.
Do
lado de fora, o trovão de escarlate seguia tomando o céu, uma
hemorragia silenciosa.
Andaram
de volta para casa.
Nos
degraus da frente, o Assassino perguntou:
— É
o Matthew? — Mais do que falar, ele entregou a pergunta. — Você
fala muito o nome dele enquanto dorme. — Então hesitou. — Na
verdade, você fala o nome de todos eles, e alguns outros. Tem uns de
que eu nunca nem ouvi falar.
Carey,
pensou Clay, mas então Michael disse El Matador. Perguntou:
— El
Matador no quinto?
Mas
chega.
Melhor
não abusar da sorte.
Quando
Clay olhou para ele daquele jeito, o Assassino compreendeu.
Voltou à pergunta original.
— Matthew
proibiu você de voltar para casa?
— Não,
não é bem assim.
Não
precisava dizer mais nada.
Michael
Dunbar conhecia bem a alternativa.
— Você
deve sentir saudade deles.
A
raiva que sentia do pai se acendeu no peito de Clay.
Pensou
em meninos, quintais e pregadores no varal.
Olhou
bem nos olhos dele e disse:
— E
você não?
Cedo,
bem cedo, por volta das três da manhã, discerniu a sombra do
Assassino de pé ao lado da cama dele. Ficou se perguntando se aquilo
trazia ao Assassino a mesma recordação que trazia a ele próprio,
da última vez em que fizera exatamente aquilo, na horrível noite em
que nos abandonara.
Primeiro,
pensou que era um invasor, mas logo conseguiu enxergar. Reconheceria
aquelas mãos de algoz em qualquer lugar. Ouviu a voz moribunda:
— Pont
du Gard?
Silêncio,
tanto silêncio.
Então
ele o vira, no fim das contas.
— Essa
é a sua preferida?
Clay
engoliu em seco e assentiu na escuridão.
— É.
— Alguma
outra?
— A
de Regensburg. A Ponte do Peregrino.
— Essa
tem três arcos.
— Sim.
Os
pensamentos não davam trela.
— Mas
e a Coathanger, você gosta?
Coathanger.
A
grande ponte da cidade.
A
grande ponte de casa:
Um
tipo diferente de arco, de metal, que se erguia por cima da estrada.
— Eu
amo.
— Por
quê?
Clay
semicerrou os olhos e os abriu em seguida.
Penny,
pensou.
Penélope.
— Porque
sim.
Por
que ainda precisava de explicação?
***
Lentamente,
o Assassino recuou para o resto da casa e disse a ele:
— Até
logo. — Mas então acrescentou, em um momento de esperança e
impulsividade: — Conhece a lenda da Pont du Gard?
— Preciso
dormir.
Porra,
é claro que ele conhecia.
***
Pela
manhã, contudo, na casa vazia, ele se deteve no meio da cozinha
assim que viu — escrito com carvão grosso.
Abaixou
o dedo até tocar o papel:
Pensou
em Carey e pensou nos arcos, e mais uma vez foi surpreendido pela
própria voz:
Planta
final da ponte: Primeiro esboço
— Essa
ponte vai ser feita de você.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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