terça-feira, 14 de maio de 2024

O risco dos descolados

Costumo definir cultura como todo o processo humano de criação e recriação de formas de viver. Cultura é, nessa perspectiva, o conjunto de padrões de comportamento, visões de mundo, elaboração de símbolos, crenças, anseios, hábitos e tradições que distinguem determinados grupos sociais.
O problema, nos dias atuais, é que em vez de se entender a economia como parte constitutiva da cultura – esse poderoso campo que engloba nossos atos e nos define como homens humanos – vigora cada vez mais uma perspectiva que transforma a cultura em parte constitutiva da economia – esse campo que, quando determinante, nos define como meros consumidores, alheios ao processo de elaboração de formas de vida e desumanizados, por conseguinte.
Penso nisso, por exemplo, quando observo com extremo cuidado o que vem acontecendo com o Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara, o popular Cadeg de Benfica. O mercado passa, segundo reportagens recentemente veiculadas em jornais e revistas, por um processo de revitalização, ganhando ares de polo gastronômico de ponta, com restaurantes sofisticados e lojas de queijos e vinhos pintando no pedaço.
Certos grupos da Zona Sul, que costumam achar que qualquer programa que ultrapasse o Túnel Rebouças em direção ao subúrbio é uma espécie de safári exótico, começam a se aventurar rumo a Benfica. Nesse ritmo, o Cadeg ainda vira cenário de novela do Manoel Carlos.
Acho muito interessante que toda a população do Rio de Janeiro conheça e visite o Cadeg – há de fato ótimos restaurantes, compra-se de tudo e aos sábados ocorre um dos melhores furdunços da cidade, a festa da colônia portuguesa que, entre sardinhas, vinho verde e fado, lota o restaurante Cantinho das Concertinas para matar a saudade da terrinha. Vejo com bons olhos, também, que o lugar esteja cuidado, acessível e fortalecido.
Até aí tá tudo bem. O risco do balacobaco, porém, é que a tal da revitalização se transforme em descaracterização e elitização do espaço.
Para início de conversa, a própria expressão revitalizar me parece complicada – vitalidade é o que nunca faltou ao Cadeg. O carioca sempre foi ao Cadeg, almoçou por ali, comprou flores para enfeitar os candomblés e oferecer aos orixás, tomou seus gorós, recriou a vida e, dessa maneira, produziu cultura. O perigo é que os descolados de plantão transformem o mercado de Benfica na nova moda da estação e o preço a se pagar por essa onda seja caro demais.
Que me desculpem aqueles que enxergam nesse processo apenas o lado financeiro que a tal da revitalização proporciona. A onda das pequenas empresas e grandes negócios não é aquela que esse escriba costuma surfar.
Outro dia mesmo cruzei no Cadeg, enquanto me preparava para comer sardinha com os conterrâneos de Pedro Álvares Cabral, com um conhecido que pintou na área pela primeira vez.
Estranhei a presença do ilustre, que me disse estar ali para participar de uma degustação de vinhos. O sujeito tratava os vinhos com uma intimidade impressionante e parecia um psicólogo descrevendo o perfil emocional da bebida: “é um vinho que a princípio se mostra tímido, mas aos poucos revela um caráter agressivo e grande personalidade...”Dei um jeito de pular fora.
O que me preocupa mesmo é imaginar como o frequentador tradicional do Cadeg vai lidar com isso. Penso naquele camarada que vai ao mercado para cumprir um verdadeiro ritual.
Me interessa saber o que vai acontecer com o carioca morador da Zona Norte, que, como eu, faz no Cadeg as compras da feijoada de domingo e do bacalhau de Natal, compra flores para enfeitar o terreiro em dia de festa no candomblé ou na umbanda, e arremata com a cerveja gelada e o tradicional contrafilé com fritas do Poleiro do Galeto. Mas isso é cultura, recriação da vida, vitalidade, coisa que não costuma encher os cofres com mais opulência e nem dá notícia em revistas e jornais. Não duvido que os vampiros de sempre suguem até a última gota a novidade da moda e, em breve, metam os dentes em outros pescoços. É assim que costuma ocorrer.
Esperemos apenas que, depois do vendaval e do fim do safári, a cerveja continue gelada. É com ela que os homens comuns costumam brindar, fora das páginas de revistas, longe das câmeras de TV e livres do encosto das celebridades, a maneira simples e carioca de inventar a vida.

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiro

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