Costumo
definir cultura como todo o processo humano de criação e recriação
de formas de viver. Cultura é, nessa perspectiva, o conjunto de
padrões de comportamento, visões de mundo, elaboração de
símbolos, crenças, anseios, hábitos e tradições que distinguem
determinados grupos sociais.
O
problema, nos dias atuais, é que em vez de se entender a economia
como parte constitutiva da cultura – esse poderoso campo que
engloba nossos atos e nos define como homens humanos – vigora cada
vez mais uma perspectiva que transforma a cultura em parte
constitutiva da economia – esse campo que, quando determinante, nos
define como meros consumidores, alheios ao processo de elaboração
de formas de vida e desumanizados, por conseguinte.
Penso
nisso, por exemplo, quando observo com extremo cuidado o que vem
acontecendo com o Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara, o
popular Cadeg de Benfica. O mercado passa, segundo reportagens
recentemente veiculadas em jornais e revistas, por um processo de
revitalização, ganhando ares de polo gastronômico de ponta, com
restaurantes sofisticados e lojas de queijos e vinhos pintando no
pedaço.
Certos
grupos da Zona Sul, que costumam achar que qualquer programa que
ultrapasse o Túnel Rebouças em direção ao subúrbio é uma
espécie de safári exótico, começam a se aventurar rumo a Benfica.
Nesse ritmo, o Cadeg ainda vira cenário de novela do Manoel Carlos.
Acho
muito interessante que toda a população do Rio de Janeiro conheça
e visite o Cadeg – há de fato ótimos restaurantes, compra-se de
tudo e aos sábados ocorre um dos melhores furdunços da cidade, a
festa da colônia portuguesa que, entre sardinhas, vinho verde e
fado, lota o restaurante Cantinho das Concertinas para matar a
saudade da terrinha. Vejo com bons olhos, também, que o lugar esteja
cuidado, acessível e fortalecido.
Até
aí tá tudo bem. O risco do balacobaco, porém, é que a tal da
revitalização se transforme em descaracterização e elitização
do espaço.
Para
início de conversa, a própria expressão revitalizar me parece
complicada – vitalidade é o que nunca faltou ao Cadeg. O carioca
sempre foi ao Cadeg, almoçou por ali, comprou flores para enfeitar
os candomblés e oferecer aos orixás, tomou seus gorós, recriou a
vida e, dessa maneira, produziu cultura. O perigo é que os
descolados de plantão transformem o mercado de Benfica na nova moda
da estação e o preço a se pagar por essa onda seja caro demais.
Que
me desculpem aqueles que enxergam nesse processo apenas o lado
financeiro que a tal da revitalização proporciona. A onda das
pequenas empresas e grandes negócios não é aquela que esse escriba
costuma surfar.
Outro
dia mesmo cruzei no Cadeg, enquanto me preparava para comer sardinha
com os conterrâneos de Pedro Álvares Cabral, com um conhecido que
pintou na área pela primeira vez.
Estranhei
a presença do ilustre, que me disse estar ali para participar de uma
degustação de vinhos. O sujeito tratava os vinhos com uma
intimidade impressionante e parecia um psicólogo descrevendo o
perfil emocional da bebida: “é um vinho que a princípio se mostra
tímido, mas aos poucos revela um caráter agressivo e grande
personalidade...”Dei um jeito de pular fora.
O
que me preocupa mesmo é imaginar como o frequentador tradicional do
Cadeg vai lidar com isso. Penso naquele camarada que vai ao mercado
para cumprir um verdadeiro ritual.
Me
interessa saber o que vai acontecer com o carioca morador da Zona
Norte, que, como eu, faz no Cadeg as compras da feijoada de domingo e
do bacalhau de Natal, compra flores para enfeitar o terreiro em dia
de festa no candomblé ou na umbanda, e arremata com a cerveja gelada
e o tradicional contrafilé com fritas do Poleiro do Galeto. Mas isso
é cultura, recriação da vida, vitalidade, coisa que não costuma
encher os cofres com mais opulência e nem dá notícia em revistas e
jornais. Não duvido que os vampiros de sempre suguem até a última
gota a novidade da moda e, em breve, metam os dentes em outros
pescoços. É assim que costuma ocorrer.
Esperemos
apenas que, depois do vendaval e do fim do safári, a cerveja
continue gelada. É com ela que os homens comuns costumam brindar,
fora das páginas de revistas, longe das câmeras de TV e livres do
encosto das celebridades, a maneira simples e carioca de inventar a
vida.
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiro
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