Laudato
sii mio signore per suora acqua, la quale è molto utile et humilde
et pretiosa, et casta.
São
Francisco: Il Cantico del Sole
O
tanque está vazando pelo lado esquerdo. O reboco de cimento
descascou-se e caiu em farelos, e a argamassa entre os tijolos cedeu
lentamente ao teimoso empuxo da água. Quando o nível da pequenina
enchente coincide com as frinchas da parede, os filetes escorrem,
brilhantes, para o chão, alastrando uma nódoa escura e úmida que
cresce duas vezes por dia. Primeiro a mancha era menor e a areia
sorvia o líquido não permitindo ampliação. Agora, com a sequência
do aguamento regular, há um trecho vagamente arredondado, vezes um
polígono estrelado, ressaltando no solo cinzento do quintal, com uma
orla mais densa e o centro escavando-se devagar e mesmo conservando
um brilho de água parada.
Água
escorrendo criou um novo centro de interesse e de vida. Não é água
do tanque com as folhas, o lodo verde-negro e na superfície o
vagaroso perpassar de Dica, com as seis patas altas como andaimes,
passeando sem molhar-se. Água correndo no chão, dando outra cor,
modificando a paisagem rasteira, alargando-se constantemente com a
contribuição serena das seis a quinze horas. Os fios, com a força
de impulsão, escorregam descendo as ladeiras minúsculas, espalhando
as tonalidades diversas, vencendo e dissolvendo os torrões de barro,
rasgando canais de brinquedo, fazendo curvas como um rio, detendo-se
ante pedrinhas inarredáveis mas ladeando, cercando-as de dois braços
trêmulos e continuando a jornada enquanto recebem o reforço vindo
das brechas imperceptíveis. Na outra hora já o terreno consente
mais fácil passagem, disciplinado pela água anterior e os canais se
afundam, em milímetros orgulhosos, sacudindo a cabeça de água para
frente, conquistando polegadas no rumo da telha enterrada onde
residem as baratas da rainha Blata. Já existe mesmo uma formação
de lama que é a franja daquela força em proporção mínima. A
absorção da terra limita a expansão do território úmido. Todo o
processo erosivo deu um aspecto imprevisto de cordilheiras,
planícies, banhados, caminhos íngremes mesmo um complicado sistema
intercomunicativo de fiozinhos de água, que parece ter sido copiado
dos postais do Tirol ou da Suíça. Mas todo este mundo medirá metro
e meio e as altitudes assombrosas irão aos cinco centímetros. Mas é
um mundo já respeitado pelas formigas pretas e as aves preferem esta
região ao tanque oceânico para a alegria de molhar as patas.
Para
fechar o círculo irregular as cores se tornam mais claras
relativamente aos graus de secura, indo numa gradação de
tonalidades até confundir-se como o solo comum do quintal.
Das
seis às sete e das quinze às desesseis lá vem água visitando seus
novos domínios, ensopando-os, afundando as estradas, dizendo-se
senhora daquele trecho que era jurisdição mansa e pacífica da
rainha Blata, usado para banhos de sol ou vadiagem ginástica.
Deve
ter sido um cataclismo para os moradores do subsolo. Transformação
absurda, verdadeira revolução catastrófica, aquela inundação que
ninguém havia previsto, obrigando mudança imediata. Às pressas,
numa improvisação de todos os serviços de transporte e busca para
afixação noutro pouso, com os incômodos de arranjo e colocação
totais. Uma multidão de besourinhos, de cinco milímetros para
baixo, emigrou desordenadamente, aos bandos dispersos, numa marcha
divergente e tonta, salvando-se do dilúvio sem profecia. Mesmo a
boca de um formigueiro de Ata desapareceu na avalancha e a
continuidade da regação aterrou-o em definitivo. Creio que a rainha
Ata deve ter castigado seu serviço de meteorologia que, desta vez,
“dera água”, não anunciando em tempo útil o fenômeno
alagador.
Quando
água deixa de correr, minutos depois, a terra se ergue num e noutro
ponto, elevada e fofa, demonstrando mais uma evasão pelo caminho que
o relevo de areia frouxa denuncia. Ninguém podia calcular o número
de formigueiros existentes nesta área inundada. Nem quantos besouros
estavam domiciliados regularmente nos limites que a água dominou.
Não havia sinal pelo exterior que as moradas estivessem instaladas
ali e tantas vidas ligassem a rede dos hábitos àquele local de
poucos palmos de extensão. Só depois da água banhar o terreno e
torná-lo úmido e diverso do estado anterior é que o recenseamento
evidenciou o número incontável dos habitantes tranquilos do
recanto.
A
água possibilitou uma situação favorável ao aparecimento de
plantinhas humildes, vergônteas que surgiam tímidas como pedindo
desculpas pelo seu atrevimento de nascer. Espécies de capim, com
folhas duras e finas como pontas de lança. Depois um arremedo de
bredo de palmas pequeninas e ásperas, bronzeadas. Espantosa força
germinativa. A semente esperara anos e anos a sua ocasião favorável
para romper a camada e pedir um pouco de sol.
Em
1946 os americanos fizeram saltar as usinas Krupp em Essen. Os
edifícios imensos, salas infinitas, oficinas tentaculares onde
escorria o aço fundido como prata líquida, os altos-fornos
imponentes, os martelo-pilões poderosos, um conjunto de milhares de
toneladas de cimento armado, ferro e aço mudou-se numa série de
montões de ruínas precoces, símbolos duma atividade condenada pelo
vencedor. Durante cem anos a maquinaria possante fizera estremecer o
solo em quilômetros derredor, no estridor da tempestade em que se
fundiam e calibravam os canhões temerosos. Derrubada a cidade Krupp,
na primeira primavera subsequente os destroços cobriram-se de malvas
azuis, brancas, lilases. No fundo da terra sacudida pelas máquinas
de guerra e aquecida pela irradiação dos fornos sempre acesos
estavam as malvas intactas em sua força, aguardando o minuto da
ressurreição. Quando as usinas Krupp caíram, as malvas ressurgiram
como eram antes, com as mesmas cores, formatos e dimensões,
inalteradas.
Fiquei
pensando que debaixo dos edifícios que governam o mundo há sempre
uma semente adormecida, sonhando com sua libertação para reaparecer
e espalhar as pétalas esquecidas dos olhos humanos. Os palácios
jamais admitirão a possibilidade de existir uma planta, quarenta ou
vinte metros depois do seu peso dominador, espreitando que a tonelada
opressora desapareça para renascer e florir.
Naturalmente
todos sabem que os insetos não bebem água. Não é bem assim. Não
bebem água no tanque, porque alguns, pela sua pequenez, não
conseguem romper a resistência da superfície que lhes deve parecer
uma lâmina de marfim. Na terra molhada, no barro porejante e úmido,
é possível sorver com a tromba solícita as gotículas. Somente
agora vejo os bandos de borboletas, miúdas, amarelas com laivos
azuis, paradas no pequenino charco, asas imóveis, desalterando-se.
A
terra molhada tem revelado um mundo estranho. Besouros desenhados com
um rigor geométrico e outros com intenções abstracionistas e
perturbadoras, pequeninos, luzentes, apressados, de todas as cores,
todos lindos, adejando as duas antenas inquietas sobre a cabecinha
redonda e negra de obstinados. Uns de pernas invisíveis, altos
outros, aranhas esquisitas, com andar aos saltos sobre presas que
ninguém vê, insetos com as patas posteriores em eterno balanceio,
como estabelecendo equilíbrio, coleópteros esguios, magros,
rápidos, passando com um ar de quem deixou uma conferência
internacional e vai escrever o relatório para o governo que o
enviou, pulgões branquicentos, lesmas de dorso escuro como lama e o
anverso parecendo âmbar, paquinhas, grilos-d’água, abrindo túneis
com as patas fortes como braços de Sansão e, às vezes, num listrão
alvadio, preguicento, escorregando de um orifício para reenterrar-se
noutro, grandes minhocas de vida misteriosa e subterrânea. Há quase
sempre um grupo de minhoquinhas ou vermes curvos como parênteses,
agitando-se como se fizessem ginástica para rins, juntos,
atrapalhados com os corpos como traje inusitado e novo, atraindo o
voo imediato e fulgurante do bem-te-vi ou da lavadeira. Devem ser
pitéus excepcionais porque, via de regra, as aves levam no bico,
para os ninhos, comida inesperada para os filhos de bico aberto.
É
muita imaginação pensar num rio subitamente atravessando um
deserto.
Provocaria
uma revolução em círculos concêntricos, cada vez maiores na
proporção do afastamento do centro. Flora, fauna modificar-se-iam
determinando a vinda e nascimento de novas espécies vegetais e
animais. E a zona de conforto faria a movimentação de vidas e
interesses sem conta, encadeadas no brusco aparecimento de alimento
certo em ponto fixo. Se este filete de água de um tanque, vazando,
trouxe tantos motivos para o ciclo destas existências, que será no
macrocosmo o que neste microcosmo vive?
Curiosa
foi a reação do mandarim Fu. Sapo terrestre, anfíbio mais
honorário que efetivo, não resistiu à tentação da terra molhada
que ele goza nas raras fugidas, capengando, para a lagoa distante.
Ali perto a umidade seduziu-o e, ao anoitecer, Fu deixa a residência
e vai, não aos saltos mas no seu andar arrastado, de trejeito
custoso, atravessar o trecho que água corrente refrescou.
Põe
as patas espalmadas e largas na areia molhada num sabor de
divertimento difícil. Como a fugida infantil para um banho no rio ou
na maré. A leve camada de lama gruda-se-lhe entre os dedos, valendo
uma carícia. Atravessa os curtos dois palmos deliciosos. Para na
outra margem. Volta-se com lentidão majestosa. Fica imóvel, olhos
radiosos, batendo o papo, engolindo vento, vivendo sua vida. É um
volúpia consciente a que dedica horas. Vezes abocanha no ar algum
mosquito atrevido ou asas que trouxeram o dono para perto,
interrompendo-lhe a cisma deleitosa. Não deixa facilmente o
far-niente de meditação e alegria silenciosa. É talvez a
concentração mais digna entre as homenagens à água eterna onde
fora gerado e amou, roçando, comprimindo o peito e o ventre no
frescor do solo ressumante.
Não
discuto que a posição é cômoda para a caça e esta procura
justamente o ponto novo. Os insetos miúdos que residem nos arredores
são salteados ao sair da porta. Deduzo que existe uma atração em
calcar terra úmida mesmo para os pesados e lentos coleópteros que,
sem necessidade aparente, vão atravessando a faixa, deixando as
linhas ponteadas de seus rastros. As baratas redondas, ásperas e
escuronas, sem a quitina protetora e outras, grandes, levemente
amareladas, de asas friccionantes e rumorosas, cabeça negra, rondam
a mancha do futuro lameiro liliputiano. Devem encontrar a massa de
mosquitos quase impalpáveis e esvoaçantes as lagartixas noturnas.
Mas as baratas e baratonas que vão fazer no pequeníssimo banhado de
bonecas? Só o mandarim Fu, em pose de cálculo especulativo,
informará.
Curioso
é constatar que unicamente as formigas evitam transpor o caminho
molhado. Continuam teimando em reabrir a boca do formigueiro que,
duas vezes por dia, era obstruído pela areia molhada. Depois
desistiram e o caminho volteou pelo tanque, do lado direito onde o
mandarim Fu possui sua mansão. Nunca as vi varando a estrada
borrifada, isolada ou nas filas intermináveis em horas de serviço.
Nas curtas horas em que água escorre há como uma fronteira
intransponível, respeitada, indevassável.
As
plantinhas nascidas não ficaram despovoadas. As de sua espécie
possuem familiares que as procuram para sugar a seiva ou roer as
folhinhas tenras. A seiva é diminuta e tênue mas as folhinhas
tentaram umas lagartas esverdeadas, de cabeça roxa e pataria
colorida de negro. Não demoraram muito tempo na vilegiatura porque o
bem-te-vi e a lavadeira acabaram com o mostruário vivo. Estas
lagartas costumam acampar nas folhas mais baixas dos crótons mas
sendo verdes confundem-se perfeitamente aos olhos técnicos dos
pássaros. Nas plantinhas o verde era muito claro e vibrante,
destacando o verde-escuro das lagartas, dando-lhe fundo que chamou as
aves como uma isca irresistível.
Em
certas horas há um inteiro corpo de baile e mosquitinhos, executando
uma dança ascensional e descendente no mesmo eixo, quase batendo no
chão, dão a impressão sugestiva de cada unidade ocupar uma dada
posição no ar sem que deixe a simetria rígida da formatura
vibrante e movimentada, arabesco de tapete persa. Este ballet
justifica a assistência carinhosa de Vênia e toda uma corte de
lagartixas, o mandarim Fu e intrusões súbitas do bem-te-vi, da
lavadeira, dos canários e dos xexéus. Deve ser um bailado nupcial,
um alarde festivo ao sexo, com a participação de damas e galantes
que se candidatam não apenas à junção feliz mas às gargantas do
público aplaudidor.
Debaixo
da sombra fresca dos tinhorões, das taiobas com as folhas lembrando
orelhas de elefante, há uma população que reside pendurada no
caule, entre as folhas largas e no tronco. Estes pacatos moradores
estavam mais ou menos livres das aranhas rendeiras. Com aquele
espalhafatoso rodeio de mosquitos bailarinos, as aranhas aproveitaram
imediatamente o mercado e uma série de teias espalhou-se nos
arbustos e crótons próximos. Os mosquitos não são permanentes e a
percentagem de vítimas é grande mas não diária. Quem ficou
fornecendo contribuição forçosa às teias cavilosamente estendidas
em situações estratégicas foi justamente o povo inocente e
confiado dos tinhorões e das taiobas que, sem cuidar da maldade do
mundo, cai nas malhas finas e resistentes das rendeiras esfaimadas. O
mandarim Fu que jamais arriscara verificação por aquele quadrante
começou uma viagem de inspeção com desastrosos efeitos locais. Até
mesmo, sinistro, armado em guerra, audaz e bruto como um barão
feudal, Titius fez-se notar, espalhando terror.
Água,
depois de meses de insistente deslizar, atingiu o palácio funcional
da rainha Blata, escavando um abismo de centímetros ao pé da telha
e enchendo de água, subsequentemente, a buraqueira. Esta água
parada forneceu moradia aos mosquitos indesejáveis do gênero
tenoresco, cantores e divulgadores de moléstias que não
interessavam ao canto de muro.
As
frinchas do tanque alargaram-se e a irrigação ampliou sua área. O
manto escuro e peguento alcançou o muro. Nasceram os “pega-pinto”
(nictagináceas) fazendo, com o tempo, pequenos bosquezinhos
frondosos. Hospedou um piolho que fez a delícia das aves e estas
dedicaram horas na busca minuciosa e farta. Por causa desta busca
outros vegetais apareceram, trazidos nos excrementos, utilizando a
terra que se tornara fecunda. Pimenteira, goiabeira e mamão deram
réplica ao renque que vivia no outro extremo. A pimenteira cobriu-se
de frutinhas vermelhas como coral e, pela primeira vez, o canto de
muro ouviu o sabiá cantar, beliscando as pimentas.
Também
a constante aguação enrijou os tinhorões e a taioba
orelha-de-elefante, tornando-os fortes e frondosos. A fauna cresceu
sob sua proteção. Os filhos e vassalos de Quiró fizeram visitas
noturnas a uma zona outrora deserta mas agora povoada e sonora. O
velho tronco, estirado e morto, lavado pela água insistente
apodreceu, arrastando os insetos diferentes, roedores de madeira,
coleópteros imponentes que tentaram até Sofia que os enxergou numa
noite de luar, embaçado e sentimental.
O
fio de água esbarrou no muro e as raízes confusas das trepadeiras
agradeceram o benefício. Um ramo baixou, nascido paralelo ao chão,
coleando pelas pequenas elevações, e ligou-se ao tinhorão, abrindo
a graça das flores em cacho, vermelhas e brancas. O beija-flor
inaugurou-as com seu longo bico matutino. As folhas caindo cobriam o
filete de água e eram cobertas por ele no dia imediato.
Sensivelmente a terra adubava-se, sacudindo outras plantas, outras
frutas reduzidas e que tinham expressão gustativa para os pássaros
que as espalhavam. E porque ficavam comendo ao redor delas, outras
espécies surgiam, sacudidas nas fezes, empurradas para o solo pela
água singela e pelas folhas humildes que se tornavam negras e
pesadas de umidade.
Quando
os mosquitos repetiam seu bailado de morte feliz, já o número de
assistentes era vultoso e eficiente. Fu já podia ocultar-se na
sombra de folhas espalmadas e aproximar-se sem ser visto de besouros
ornamentais. Licosa e Titius deram mesmo a honra de estender por ali
seus territórios de caça noturna. Do tanque ao muro era a pista de
corrida da lavadeira. O depósito de água ficou reservado para beber
e banhar-se. Não tinha a dimensão em superfície daquela praia sem
água mas convidativa e fácil.
Dica,
aranha-d’água orgulhosa, foi a única a não deixar o velho
domínio. Nunca pôs uma de suas seis patas compridas fora do tanque
para visitar os melhoramentos do canto de muro.
A
infiltração deve ter procedido a modificações curiosas no
subsolo. Deverá existir outros moradores atraídos pela nova
temperatura e a região será o caminho real de espécies que amem a
umidade relativa. Mas tudo dentro de uma escala de valores de
milímetros e centímetros, um pequenino mundo humilde que passaria
despercebido para os olhos comuns, seduzidos por outras tentações
sensíveis.
O
rumor dos zumbidos, chilreios, sussurros abafados, estalidos de
gravetos tombados, folhas secas, levava a doce sonoridade silenciosa
do fio de água escorrendo na areia cinzenta. A solidão se enchera
de asas, teias, ciladas, tocaias, armadilhas, ânsias, júbilos,
decepções.
O
suave milagre fixador da vida e da batalha sem pausa fizera a Irmã
Água humilde e útil, preciosa e casta, molhando a terra sem nome de
um canto de muro tranquilo.
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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