quinta-feira, 16 de maio de 2024

O ponta driblador e o filósofo


Laroiê, Agô.

Elegbara – o dono do corpo – é o senhor da irreverência, capitão das artimanhas e encantador das serpentes do tempo; o que bate suas asas e produz o desassombro do acaso. Elegbara é o meu amigo Exu, aquele que um verso de Ifá define como o menino querido de Olodumare.
Quando a razão observa a natureza, surge a ciência. Quando é a poesia que olha o que nos cerca, surge o orixá, o encantado, o caboclo de pena e o catiço da rua. Os dois olhares não se excluem, antes se complementam. Exu é, por isso, o olhar da poesia sobre o princípio ativo que gera o movimento e permite a vida. É o que rompe, com a velocidade do dínamo, o estado de letargia das coisas e pessoas e confere vivacidade ao que estava morto ou não nasceu. Elegbara se torna, desta maneira, o axé que possibilita que as coisas aconteçam; ele só não é a própria realidade porque precede a ela.
Meu compadre é o que transita serelepe entre o ayê e o orum – o visível e o invisível –, é o senhor de tudo que se transmite, relata ou malandramente se insinua. É a possibilidade de dizer e o silêncio do não dito – feito o ponta esquerda que pode driblar buscando a linha de fundo ou cortar pra dentro e bater com a perna trocada. Vais apostar em que, meu lateral?
Exu é palavra áspera, poema amoroso, grito de denúncia e canto doce que rompe de beleza as manhãs do tempo. Exu está no ato de escrever e no ato da leitura; é o signo e o significado de todas as formas de comunicação estabelecidas entre os homens.
Ele é, também, o pânico dos medíocres, a ameaça fatal aos que se acomodam em uma existência mesquinha e limitadora. Exu não gosta dos que buscam o conforto sem sobressaltos, dos que veem na segurança acumulativa e nas conquistas individuais o destino último do ser humano. Exu ameaça tudo isso, já que inaugura nas nossas vidas o acaso que rompe planos minuciosamente elaborados. É ele que canta seu fundamento na caída dos búzios e dos dados e, quando cisma, desarticula tudo para que nos confrontemos com a necessidade de fundar a existência em bases diferentes: “Recrie a vida!”; é o recado de sua flauta em nossos ouvidos.
Os que demonizam meu compadre acertam, porém, em um detalhe: o homem é perigoso. Perigoso porque escapa das limitações do raciocínio cartesiano – que tem pânico do inesperado – e não compactua com fórmulas que reduzem a vida a um jogo de cartas marcadas, com desfecho previsível.
Como poderemos, na limitação de nossa tosca e arrogante visão racionalista, entender Exu, o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje? Como lidar com aquele que sentado bate com a cabeça no teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro?
Exu é Pastinha na ginga, Garrincha no drible, Dino no sete cordas, Grande Otelo na tela, o jagunço na travessia, o sincopado do escurinho com fama de brigão, a pimenta no caruru de Dona Flor, Tia Eulália no miudinho, a rima de Aniceto na roda de partido alto, o mote de Zé Limeira, o trenzinho de seu Heitor Villa-Lobos, o manto do Bispo do Rosário, a vida severina, o infinito enquanto dure do poeta e o provisório que se perpetua na poesia.
Posso até imaginar a cena de um verdadeiro encontro de civilizações no mais improvável dos filmes: o filósofo Heráclito diz que viver é a arte de esperar o inesperado. Um moleque, preto retinto, filá na cabeça, pés ligeiros e pau duro, solta uma gargalhada alegre e responde ao grego, entre um gole e outro de marafo, enquanto descarna um bode, prepara o couro e dança no aço da navalha:
Só percebeu isso agora, meu bom?

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros

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