quarta-feira, 29 de maio de 2024

Lucidez do absurdo


Não vou apresentar Millôr Fernandes: quem o conhece sabe que eu teria que escrever várias páginas para apresentar uma figura tão variada em atividades e talentos. Somos amigos de longa data.
Nossa conversa mais recente, já há algum tempo, decorreu fácil, sem incidentes de incompreensão: havia confiança mútua. Foi mais ou menos assim:
Como vai você, Millôr, profundamente falando?
Vou profundamente, como sempre. Não sei viver de outro modo. Pago o preço.
Às vezes o preço é alto demais. Como é que lhe veio a ideia de arquitetar há anos O homem do princípio ao fim, que era um grande e comovente espetáculo? Eu, por exemplo, o veria de novo e certamente com a mesma emoção. Aliás, poderia e deveria ser encenado de novo.
Foi a pedido dessa extraordinária amiga que é Fernanda Montenegro. Fixei-me num ponto de vista humanístico que é a qualidade essencial desse meu trabalho.
Que é que você me diz de sua experiência como ator?
Sensacional e inútil. Sensacional por causa da segurança que se ganha ao perceber uma possibilidade total de comunicação, e isso é emocionante. Inútil porque não tenho nada a fazer com o resultado dessa experiência. A comunicação que busco é toda outra, íntima e definitiva.
Millôr, você já sentiu com toda a humildade a centelha de uma coisa que alguns chamam de graça, mas não é graça, é até bastante comum: é a visão instantânea das coisas do mundo como na realidade são?
Se é assim que alguns chamam, então está pra mim. Só vejo isso. Tenho mesmo a impressão de que nada do que vejo é comum. A mim me faltam todas as noções das coisas do mundo tal como ele é. Mas essa espécie de lucidez de que você fala, a lucidez do absurdo, essa eu tenho mesmo no meio da maior paixão. Creio mesmo que um dia vou estourar de lucidez, isto é, ficar louco.
Como foi sua infância?
Dura! Dura! Linda! Linda! O Méier, naquela época, era praticamente rural. Aprendi a nadar em um pântano cheio de rãs. Aprendi a amar num quintal fazendo bonecos de tabatinga junto com as meninas. Essa infância durou até os dez anos. Aí, um dia, na morte de minha mãe, chorando horas embaixo de uma cama, consegui a paz da descrença. Aos dez anos, pois é.
De que modo lhe vem a inspiração?
Creio que exatamente de todos os modos. Mas não penso que seja precisamente inconsciente. Mesmo quando parece inconsciente acho que o núcleo da inspiração é uma vivência qualquer – imagem, som, dor, angústia – antes arquivada e de repente, por qualquer motivo, também exterior, ressuscitada. Mas meu caso é muito especial: não sou um escritor, sou um profissional de escrever.
Falamos sobre várias personalidades; em seguida perguntei-lhe:
Quem você admira e por quê?
Vou limitar a pergunta, no tempo e no espaço. E prefiro ter a coragem de escolher um homem de meu tempo e de meu espaço. Vinícius de Morais. Pelo muito que somos iguais, pelo imenso que nos separa, eu elejo o poetinha como o dono de uma visão da vida essencial.
De conversa puxa conversa, passamos, não sei como, a falar da morte.
A morte é um problema constante para você?, indaguei.
Acho o problema da morte fascinante – talvez porque eu não a sinta perto de mim. Gostaria mesmo de morrer já para, sem trocadilho, viver essa experiência. Desde que me fosse dado, depois, voltar apenas para contar como foi.
Voltamos a falar da vida e sobre o que mais nos importava.
A relação humana – disse Millôr. – O amor. A paixão, nisso incluída. Também as paixões condenadas, de homem com homem e mulher com mulher. Como sou aquilo que a sociedade chama de saudável e normal, as paixões anormais merecem o meu maior respeito.
Se você não fosse escritor, o que seria?
Um atleta. Sou fundamentalmente um atleta frustrado. Aliás essa é a única frustração que me ficou de uma pré-juventude, de dez a 17 anos, excessivamente dura.
Em matéria de escrever, você sente na sua trajetória um progresso?
Acho que sim. Sobretudo se comparar o início com a fase atual, o que não é vantagem porque comecei a escrever em jornal aos 13 anos de idade. Só um debiloide não teria progredido. Continuo tentando me renovar, num gosto por buscar formas e visões novas, que ainda não perdi.
E em matéria de vida, de maneira de viver, você sente um progresso que vem da experiência?
Acho que sim. Mas será que os outros acham? Nada me surpreende mais, por exemplo, do que ouvir dizer que sou agressivo. Porque eu me sinto a flor da ternura humana. Mas será que sou? De qualquer forma, há dentro de minha mais profunda consciência a certeza de que o gênio do ser humano está na bondade. Isso eu procuro.
Concordei com ele sobre a bondade.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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