Não
vou apresentar Millôr Fernandes: quem o conhece sabe que eu teria
que escrever várias páginas para apresentar uma figura tão variada
em atividades e talentos. Somos amigos de longa data.
Nossa
conversa mais recente, já há algum tempo, decorreu fácil, sem
incidentes de incompreensão: havia confiança mútua. Foi mais ou
menos assim:
– Como
vai você, Millôr, profundamente falando?
– Vou
profundamente, como sempre. Não sei viver de outro modo. Pago o
preço.
– Às
vezes o preço é alto demais. Como é que lhe veio a ideia de
arquitetar há anos O homem do princípio ao fim, que era um
grande e comovente espetáculo? Eu, por exemplo, o veria de novo e
certamente com a mesma emoção. Aliás, poderia e deveria ser
encenado de novo.
– Foi
a pedido dessa extraordinária amiga que é Fernanda Montenegro.
Fixei-me num ponto de vista humanístico que é a qualidade essencial
desse meu trabalho.
– Que
é que você me diz de sua experiência como ator?
– Sensacional
e inútil. Sensacional por causa da segurança que se ganha ao
perceber uma possibilidade total de comunicação, e isso é
emocionante. Inútil porque não tenho nada a fazer com o resultado
dessa experiência. A comunicação que busco é toda outra, íntima
e definitiva.
– Millôr,
você já sentiu com toda a humildade a centelha de uma coisa que
alguns chamam de graça, mas não é graça, é até bastante comum:
é a visão instantânea das coisas do mundo como na realidade são?
– Se
é assim que alguns chamam, então está pra mim. Só vejo isso.
Tenho mesmo a impressão de que nada do que vejo é comum. A mim me
faltam todas as noções das coisas do mundo tal como ele é. Mas
essa espécie de lucidez de que você fala, a lucidez do absurdo,
essa eu tenho mesmo no meio da maior paixão. Creio mesmo que um dia
vou estourar de lucidez, isto é, ficar louco.
– Como
foi sua infância?
– Dura!
Dura! Linda! Linda! O Méier, naquela época, era praticamente rural.
Aprendi a nadar em um pântano cheio de rãs. Aprendi a amar num
quintal fazendo bonecos de tabatinga junto com as meninas. Essa
infância durou até os dez anos. Aí, um dia, na morte de minha mãe,
chorando horas embaixo de uma cama, consegui a paz da descrença. Aos
dez anos, pois é.
– De
que modo lhe vem a inspiração?
– Creio
que exatamente de todos os modos. Mas não penso que seja
precisamente inconsciente. Mesmo quando parece inconsciente acho que
o núcleo da inspiração é uma vivência qualquer – imagem, som,
dor, angústia – antes arquivada e de repente, por qualquer motivo,
também exterior, ressuscitada. Mas meu caso é muito especial: não
sou um escritor, sou um profissional de escrever.
Falamos
sobre várias personalidades; em seguida perguntei-lhe:
– Quem
você admira e por quê?
– Vou
limitar a pergunta, no tempo e no espaço. E prefiro ter a coragem de
escolher um homem de meu tempo e de meu espaço. Vinícius de Morais.
Pelo muito que somos iguais, pelo imenso que nos separa, eu elejo o
poetinha como o dono de uma visão da vida essencial.
De
conversa puxa conversa, passamos, não sei como, a falar da morte.
– A
morte é um problema constante para você?, indaguei.
– Acho
o problema da morte fascinante – talvez porque eu não a sinta
perto de mim. Gostaria mesmo de morrer já para, sem trocadilho,
viver essa experiência. Desde que me fosse dado, depois, voltar
apenas para contar como foi.
Voltamos
a falar da vida e sobre o que mais nos importava.
– A
relação humana – disse Millôr. – O amor. A paixão, nisso
incluída. Também as paixões condenadas, de homem com homem
e mulher com mulher. Como sou aquilo que a sociedade chama de
saudável e normal, as paixões anormais merecem
o meu maior respeito.
– Se
você não fosse escritor, o que seria?
– Um
atleta. Sou fundamentalmente um atleta frustrado. Aliás essa é a
única frustração que me ficou de uma pré-juventude, de dez a 17
anos, excessivamente dura.
– Em
matéria de escrever, você sente na sua trajetória um progresso?
– Acho
que sim. Sobretudo se comparar o início com a fase atual, o que não
é vantagem porque comecei a escrever em jornal aos 13 anos de idade.
Só um debiloide não teria progredido. Continuo tentando me renovar,
num gosto por buscar formas e visões novas, que ainda não perdi.
– E
em matéria de vida, de maneira de viver, você sente um progresso
que vem da experiência?
– Acho
que sim. Mas será que os outros acham? Nada me surpreende mais, por
exemplo, do que ouvir dizer que sou agressivo. Porque eu me
sinto a flor da ternura humana. Mas será que sou? De qualquer forma,
há dentro de minha mais profunda consciência a certeza de que o
gênio do ser humano está na bondade. Isso eu procuro.
Concordei
com ele sobre a bondade.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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