Vivemos
tempos de uniformização dos costumes, fruto do tal de mundo
globalizado. Em cada canto desse mundaréu, ligado por redes
transnacionais de telecomunicações, as pessoas assistem aos mesmos
filmes, vestem as mesmas roupas, ouvem as mesmas músicas, falam o
mesmo idioma, cultuam os mesmos ídolos e se comunicam em, no máximo,
cento e quarenta toques virtuais. Nessa espécie de culto profano, em
que a vida cotidiana é regida pelos rituais em louvor ao mercado que
não é o de Madureira, o bicho pega e as ideias morrem, como outro
dia morreu de morte matada o acento em ideia, sem choro nem vela e
sem a dignidade de um samba do Noel.
Ao
trabalhar com adolescentes e adultos jovens, percebo que as crenças
e projeções de futuro da moçada foram substituídas pelo pânico
cotidiano – do assalto e das doenças, no âmbito pessoal, às
catástrofes ambientais, na esfera coletiva. Cria-se uma lógica
perversa: como posso morrer de bala perdida, pegar gripe suína ou
sucumbir ao aquecimento global, preciso viver intensamente o dia de
hoje.
Ocorre
que essa valorização extremada do tempo presente é acompanhada
pela morte das utopias coletivas de projeção do futuro. Não há
mais futuro a ser planejado. Somos guiados pelos ritos do mercado e
abandonamos o mundo do pensamento, onde se projetam perspectivas e
são moldadas as diferenças. Restam hoje, nesse desalento, duas
tristes utopias individuais, em meio ao fracasso dos sonhos coletivos
– a de que seremos capazes de consumir o produto tal, cheio de
salamaleques, e a de que poderemos ter o corpo perfeito.
Transformam-se,
nesses tempos depressivos, os shoppings e as academias de
ginástica nos espaços de exercício dessas utopias tortas, onde
podemos comprar produtos e moldar o corpo aos padrões da cultura
contemporânea – o corpo-máquina dos atletas ou o corpo esquálido
das modelos. É a procura da felicidade que não tem, como na
esquecida e sábia canção natalina. E tome caixinhas de Prozac no
sapatinho na janela.
É
aí que localizo, na minha cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, o espaço de resistência a esses padrões uniformes do
mundo global: o botequim. Ele, o velho boteco, o pé sujo, é a ágora
carioca. O botequim é o país onde não há grifes, não há o
corpo-máquina, o corpo em si mesmo, a vitrine, o mercado pairando
como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.
O
boteco é a casa do mau gosto, do disforme, do arroto, da barriga
indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do
debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do
novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma
forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens
comuns.
É
nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do
boteco como algo com uma dimensão muito mais ampla que o simples
exercício de combate aos bares de grife que, como praga, pululam
pela cidade e se espalham como metástase urbana.
A
luta pelo boteco é a possibilidade de manter viva a crença na praça
popular, espaço de geração de ideias e utopias – fundadas na
sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar a vida – que
possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que se
limita a sonhar com o tênis novo e o corpo moldado, não como
conquista da saúde, mas como simples egolatria incrementada com
bombas e anabolizantes cavalares. O botequim é, portanto, o
anti-shopping center, a recusa mais veemente ao corpo irreal
dos atletas olímpicos ou ao corpo pau de virar tripa das anoréxicas,
sintomas da doença comum desse mundo desencantado: metáforas da
morte.
Ali,
no velho boteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos
americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, no mar de barrigas
indecentes, onde São Jorge é o protetor e mercado é só a feira da
esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o Homem é
restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória –
a capacidade de sonhar seus delírios, festejar e afogar suas dores
nas ampolas geladas feito cu de foca. É onde a alma da cidade grita
a resistência.
Esse
combate, amigos, é muito mais significativo do que imaginam os
arautos modernosos e seus programadores visuais. Botequim, afinal de
contas, tem alma, é entidade, terreiro carioca, feito os trapiches e
sobrados do cais do porto em noite de lua cheia.
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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