Um
homem da cidade, perambulando no campo é suspeito. Se levar uma
espingarda, explica-se perfeitamente a sua presença. Há sempre
compreensão para um argumento belicoso. Troca-se um olhar de
cumplicidade e a arma sugere reminiscências de velhas caçadas
infrutíferas, que são lembradas como sucessos felizes.
Inútil
espingarda! Encosto-a à primeira árvore de sombra e estiro-me na
areia fofa e fulva, esperando a intimidade casual dos insetos e das
aves. O tufo das manjeriobas bronzeadas esconde-me como um biombo. As
formigas negras desfilam em cadência impecável, um a fundo. Duas
aranhas tecem armadilhas baixas e sedutoras. Uma cobra verde suja
deslizou e desapareceu. Invisível cigarra espalha sua cantilena
atritante e teimosa. Vou adormecendo, embriagado de silêncio,
quietação, serenidade.
Bruscamente,
surgida do capão de pau-de-ferro que os cipós entrelaçam
harmoniosamente, sai uma raposa ouro-cinza, viva, inquieta, ágil,
farejadora. Num momento se detém perto de mim. O vento sopra-lhe no
focinho escuro e fino, ocultando-lhe meu rastro pela inevitável
emanação do cheiro de homem, índice de perigo mortal. Posso vê-la
em liberdade, senhora de seus movimentos instintivos, na plenitude da
força graciosa, da astúcia milenar, da feiticeira desenvoltura
juvenil. O pelo igual e liso, acamado sem a ondulação de um
arrepio, indica ausência de qualquer suspeita. A cauda na espessura
normal roça o solo, sinal de tranquilidade. Camarada raposa não
malda a proximidade de um espectador com uma linda carabina de
repetição ao alcance do gesto.
Suas
orelhas recortam-se, hirtas, sensíveis à captação da mais
longínqua denúncia inimiga. Fica imóvel como uma pedra. O focinho
desloca-se, vagaroso, num amplo raio verificante, perscrutador,
irradiando suspicalidade. As orelhas funcionam como detentores dos
ruídos distantes. Ninguém! Se o vento mudar de quadrante serei
localizado, pelo meu aroma inconfundível, às suas narinas
delicadas. Dará um arranco sacudido, princípio de carreira
olímpica, quase sem barulho audível, e desaparecerá como uma
sombra, diluída na orla mosqueada da mataria rala. Avança, leve e
fácil, fincando as patas na areia tépida, numa indizível elegância
vulpina. No céu escampo de nuvens, de incomparável azul, perpassa
um surdo, persistente e rouco zumbido que faz vibrar a paisagem
silenciosa na tarde lenta de verão. O rítmico ronronar enche de
sonoridade estranha o descampado solitário. Durante segundos, a
raposa procurou fixar o som nas vizinhanças, virando o focinho para
todas as direções, orelhas erguidas e paralelas, a cauda alteada,
os olhos faiscantes de curiosidade e medo inicial. Estacou: patas
dianteiras retesadas e firmes, vibrantes como alavancas de
aceleração, e as traseiras curvas, trêmulas, ansiosas para o salto
salvador na solução da escapula.
Na
linha do horizonte passava o pássaro de prata, de asas estendidas,
haloado pela luz do sol que o incendiava de branco, deixando a trauta
inusitada daquele ruído atordoador. Era um avião de carreira,
rumando para o aeroporto.
Vejo
a raposa imóvel, focinho apontado para cima, olhando o avião
sonoro. A bocarra úmida entreabre-se num espanto inconcebível,
mandíbula decaída, mostrando a ponta escalarte da língua, a cauda
baixa e grossa, os quadris curvados, as orelhas atentas, duras como
se armados em latão, seguindo a ave reboante; dois olhos
escancarados, luzentes, crescidos de assombro, fitam o mistério
presente, ruidoso e alto, acompanhado pelas patrulhas do rumor. Sinto
que a curiosidade chumbou-a ao solo quando o corpo palpitante anseia
pela libertação veloz. Filha do mato, primitiva, arrebatada, fiel a
todos os seus velhos instintos de fome e de sexo, ladra, fugitiva,
predadora, covarde, rebelde aos amavios humilhantes da domesticação,
incapaz de figurar num circo, aprender um bailado, obedecer a um
gesto, livre, faminta e rústica, a raposa olha o avião sereno,
semeador de ecos.
Durante
dois minutos o animal está estático, inteiramente possuído por
aquele centro de interesse de inaudita novidade. A cabeça afunilada
acompanha automaticamente a trajetória do avião cintilante. As
patas dianteiras mergulham na areia, duras, esticadas como de madeira
rija; as traseiras têm um leve e visível frêmito de impaciência e
pavor. Como o mirmecólio tinha a frente de leão e o final de
formiga, a raposa ostenta a coragem da atenção obstinada por diante
e o medo incontido por detrás. Está tremendo mas parada, quieta,
subjugada pela visão inesperada da grande ave prateada e canora.
Se
a raposa “pensa” por uma sucessão de imagens, não haverá
nenhuma anterior para determinar-lhe o processo da comparação
assimiladora. É uma imagem nova, virgem e de impossível cotejo no
fichário mental das reminiscências raposinas. Qual será a reação
íntima e maravilhosa dessa contemplação? Quais as soluções mais
ou menos duradouras, subsequentes ao conhecimento visual da aeronave?
Com que a raposa comparará o avião atravessando nuvens com seus
motores sonorizantes? Tê-lo-á como uma ave gigantesca, jamais
anteriormente vista, feita, como todas as aves deste mundo, de carne,
penas e sangue, susceptível de mastigação e deglutição
saboreadas? O focinho, seguindo obedientemente o voo, não seria uma
muda perseguição ideal, prevendo e observando o local do pouso da
imensa caça voadora?
Creio
que a raposa, a dar-se crédito ao seu “romance” onde é
personagem clássica, terá muito pouco de sentimentalismo e de visão
abstrata das coisas inidôneas para um bom almoço. Admite-se que o
sapo cante às estrelas e o veado duele por amor, valentemente, como
um canário, uma lagartixa ou um escorpião. Ninguém, sob a cúpula
do céu, evoca uma raposa lírica e sim perpetuamente ligada ao
programa rendoso de utilitarismo imediato e prático, cientemente
cumprido como num master plan da United States Information Agency.
Águias
já têm morrido enfrentando aviões, atraídas pelo seu estridor e,
quem sabe, batendo-se pelo monopólio do domínio aéreo. A raposa, a
deduzir-se pelo que dela sabemos, lemos e vemos, terá no avião uma
possibilidade mental de refeição inacabável e de sabor nunca
degustado.
Talvez
deduza que o ronco do motores é um resfolegar de agonia, de próximo
declínio fatal. E quando o aparelho desapareceu pensaria na
felicidade das outras raposas porventura vigilantes nas proximidades
do pouso. A imensa presa iria para outras gargantas, outros estômagos
mais afortunados.
Aqui
onde estou dista dois quilômetros das casas que rodeiam a vila
vizinha. A raposa será familiar frequentadora dos galinheiros
providos para a festa do Natal. Já viu automóvel, certamente. Ouviu
os clamores dos rádios domésticos e deve ter encontrado semelhança
entre a sua e a voz de certas glórias cantantes nos microfones
submissos.
Está
a poucos metros de mim, olhando o avião que se tornou pequenino. O
focinho continua no mesmo nível anterior, patas dianteiras firmes,
as traseiras trêmulas, recurvadas, os olhos ansiosos, tontos,
abismados na sedução irresistível que se desfaz na altura da
tarde.
Guardará
o segredo deste conhecimento de imagem nova ou comunicá-la-á às
companheiras no fortuito convívio dos comandos predatórios da
madrugada?
Minha
impressão é bem diversa, meus senhores. Parece-me que a raposa
hipnotizada está fazendo um esforço milagroso para compreender.
Toda ela é tensão, nervos polarizados na direção única de
encontrar um processo dedutivo de assimilação, uma assimilação
que leve a imagem para o fichário das imagens anteriores, vulpinas e
úteis. Que íntimas reações permanecerão na memória deste Canis
vulpis depois de haver contemplado a retumbante ave platinada? No
meio de toda numerosa fauna, onde conta vítimas e perseguidores
implacáveis, como deverá incluir a existência do possante pássaro
roncador voando sem bater asas brilhantes?
Agora
o avião não é mais avistado. O rumor morreu no ar. A raposa volta
à última forma. O focinho vira para o chão, areia, gravetos,
rastros de animais, folhas secas, banais. Apruma-se e trota, airosa,
para frente, sem mais olhar o céu pálido do entardecer onde passara
a grande ave de prata.
Com
as pernas formigando de cãibras ergo-me, apanho a espingarda
incólume e caminho, trôpego. Na vereda, fundos, estão os quatro
orifícios do rastro da raposa, denúncia de sua atenção inquieta,
de sua curiosidade sôfrega, de sua expectativa despremiada.
Pode
ser que, na meia-noite, ao esgueirar-se para o assalto às galinhas
dorminhocas, passe, rápida e sonora, a visão fulgurante daquele
pássaro estranho e branco, tão grande, bem maior que dois carros de
bois, rugindo dez vezes mais, fazendo-a deter-se e olhar para o alto,
para onde raramente as raposas olham.
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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