terça-feira, 9 de abril de 2024

Parte Um | Trêmulo e casto


[...]

Fico olhando para Tristessa, ela veio me visitar em meu quarto, ela não quer sentar, fica em pé, falando – à luz da vela está animada e ansiosa e bela e radiante – Eu me sento na cama e olho para o chão de pedra enquanto ela fala – Nem sequer escuto o que ela diz, sobre droga, Old Bull, como está cansada – “Tenho que fazer issu amanhan – AMANHAN –” Ela me cutuca com a mão para enfatizar, até que eu diga “E, é, isso mesmo”, e ela continua com sua história, que eu não entendo – Simplesmente não posso olhar para ela por medo dos meus pensamentos – Mas ela cuida de tudo isso para mim, ela diz “É, é doloroso” – Eu digo “La Vida es dolor” (a vida é dor), ela concorda, diz que a vida também é amor”. “Quando você tem um milhão de pesos eu não me importo quantos, não importam” – diz ela, apontando para minha parafernália de escritos com capa de couro e envelopes da Sears Roebuck com selos e envelopes de cartas dentro – como se eu tivesse um milhão de pesos escondidos na hora no meu chão – “Um milhão de pesos não importam – mas quando você tem o amigo, o amigo dá isso pra você na cama”, diz ela, as pernas um pouco afastadas, movendo os quadris no ar na direção de minha cama para mostrar como um ser humano é melhor do que um milhão de pesos de papel – Penso na doçura inexplicável de receber essa amizade sagrada do corpo doente sacrificial de Tristessa e quase sinto vontade de chorar ou de agarrá-la e beijá-la – Sou assomado por uma onda de solidão, que me recorda amores passados e corpos em camas e a ondulação irresistível quando você entra em sua profundeza adorada e todo o mundo vai com você – Apesar de sabermos que Maia a Tentadora é má, seus campos de tentação são inocentes – Como Tristessa, ao despertar paixão em mim, pode ter algo a ver, exceto como um campo de batalha ou como uma simplória inocente ou uma testemunha material de minha luxúria assassina, como ela pode ser culpada e como pode ser mais doce do que ali de pé me explicando meu amor diretamente com a pantomima de suas coxas. Ela está doidona, fica mexendo na lapela de seu quimono (por baixo aparece a combinação) e tenta prender o imprendível a um botão inexistente do casaco. Olho no fundo de seus olhos, querendo dizer “Você seria minha amiga desse jeito?” e ela olha direto para mim em poços de nem isso nem aquilo, sua combinação de relutância em romper com as conveniências de sua repugnância pessoal que encontra ainda por cima abrigo na Virgem Maria, e seu amor de me deseje sorte, a torna tão misteriosa quanto Tathagatha cuja forma é descrita como inexistente, mais inescrutável que o lugar para onde vai todo o fogo que é apagado. Não consigo um sim ou um não de seus olhos no tempo que dedico a eles. Muito nervoso, eu me sento, levanto, sento, ela continua de pé explicando outras coisas. Estou impressionado com a maneira como a pele dela se enruga para fazer um O com tanta delicadeza abaixo de seu nariz em linhas ainda mais nítidas, e seu risinho de prazer que surge tão raramente, com um jeitinho de menininha, uma criança alegre. – Será meu pecado se eu passar uma cantada nela.

Quero tomá-la com as duas mãos pela cintura e puxá-la devagar para perto com poucas palavras bem escolhidas de ternura súbita como “Mi gloria angela” ou “Mi qualquer coisa” mas não tenho linguagem para encobrir meu embaraço – Pior de tudo seria com que ela me empurrasse para o lado e dissesse “No, no, no”, como os heróis de bigodes desapontados dos filmes franceses sendo dispensados pela esposa loura do guarda-freios, perto de uma cerca, com fumaça, à meia-noite, nos pátios das ferrovias francesas, e eu viro o rosto de amante em dor e peço desculpas – movendo-me dali com a sensação de que tenho um rasgo bestial em mim que eu não havia percebido, conceitos comuns a todos os jovens apaixonados e velhos também. Não quero deixar Tristessa desgostosa – Eu ficaria horrorizado de incomodar seus segredos ternos de pétalas arruinadas de carne e em saber que acorda de manhã aninhada contra as costas de algum homem indesejado que ama à noite e depois dorme, e acorda berrando antes de se barbear e sua própria presença causa consternação onde antes havia a pureza perfeita e absoluta de ninguém.
Mas o que perdi quando não recebi aquele mergulho amigo do corpo do amante, que vem direto para mim, todo meu, mas era um matadouro por carne e tudo o que você faz está destinado a provocar estragos em uma meninice em que algo terá de ceder. – Quando Tristessa tinha doze anos, velhos pretendentes torceram seu braço sob o sol em frente à porta da cozinha da mãe – Já vi isso um milhão de vezes, no México os rapazes querem as garotas – Sua taxa de natalidade é fantástica – Eles os produzem gemendo e morrendo às toneladas douradas em tonéis parecidos com barris de vinho no Velho Berço de Tóquio. Eu agora perdi o fio de meu pensamento –
É, as coxas de Tristessa e a carne dourada, todos meus, o que eu sou, um homem das cavernas? Sou um homem das cavernas.
Um homem das cavernas enterrado fundo no chão. Apenas a coroa de sua boca na face pulsante, e minha lembrança de seus olhos esplêndidos, como se estivesse sentada em um camarote a adorável última moda na França e começa a orquestra barulhenta e eu me viro para o Monsieur ao meu lado e sussurro “Ela é splendide, non?” – Com uísque Johnny Walker no bolso do paletó do meu smoking.
Eu me levanto. Preciso vê-la.

A pobre Tristessa está ali oscilante enquanto explica todos os seus problemas, como não tem dinheiro suficiente, ela está passando mal, vai continuar a passar mal de manhã e eu percebi em seu olhar o gesto de uma sombra de aceitação da ideia de mim como seu amante – A única vez em que vi Tristessa chorar foi quando ela estava em um bode terrível na beira da cama de Old Bull, como a mulher no último banco de uma igreja na novena diária ela esfrega os olhos Ela aponta para o céu outra vez, “Se meu amigo não me pagar”, diz olhando direto para mim, “meu Senhor me paga – mais” e eu sinto o espírito adentrar no quarto enquanto ela está ali de pé, esperando com o dedo apontado para cima, sobre as pernas afastadas, confiante, pois seu Senhor irá pagá-la – “Entaun eu doo todo o que tenho pro meu amigo e si ele naun me pagar” – ela dá de ombros – “Meu Senhor me paga” – está alerta outra vez – “Mais” e conforme o espírito flutua ali pelo quarto eu percebo todo o horror lúgubre daquilo (sua recompensa é tão pequena) agora vejo irradiar da coroa de sua cabeça mãos incontáveis que chegaram de todos os dez cantos do Universo para abençoá-la e declará-la Bodhisat por dizer e conhecer tão bem.
Sua iluminação é perfeita – “E não somos nada, você e eu”, – ela cutuca meu peito, “Jew-Jew” (jeito mexicano de dizer “You”) “e eu” – apontando para si mesma – “Não somos nada. Podemos morrer amanhan, por isso não somos nada –” Concordo com ela, sinto a estranheza dessa verdade, sinto que somos duas almas vazias de luz, ou como fantasmas em velhas histórias de casa assombrada, diáfanos, preciosos e brancos e ausentes – Ela diz “Eu sei que você quer dormir”:
Não não”, digo ao ver que ela quer ir embora.
Eu preciso de ir dormir, dimanhan cedu vou ver o cara e descolar a morfina e voltu pra encontrar o Old Bool” – e como somos nada, nada, esqueço o que ela disse sobre amigos completamente perdidos na beleza de sua estranha imaginação inteligente, tudo absolutamente verdadeiro – Ela é um anjo, penso em segredo, e a acompanho até a porta com os braços em movimento enquanto ela se inclina na direção da porta e fala enquanto vai embora – Tomamos cuidado para não tocar um no outro – Eu estremeço, certa vez pulei um quilômetro quando seu dedo tocou meu joelho em conversas, sentados em cadeiras – na primeira tarde em que eu a vira de óculos escuros, na janela banhada pelo sol da tarde, perto da luz de uma vela acesa pelo barato, os baratos perversos da vida, fumegante, como a dona, a donzela de Las Vegas, ou a Heroína Revolucionária do México de Marlon Brando Zapata – com heróis de Culiacan e tudo mais – Foi então que ela me pegou – No espaço dourado da tarde a aparência, a beleza pura, como seda, as crianças rindo, eu enrubescido, na casa do cara onde descobrimos Tristessa pela primeira vez e começamos tudo isso – Sympaticus Tristessa com seu coração de portão dourado, que eu no início achava que era uma encantadora do mal – Eu tinha esbarrado com uma santa no México Moderno e aqui estava eu fantasiando sonhos e mais sonhos sobre ordens predeterminadas por nada e traições necessárias – a traição do velho pai quando usa uma artimanha para seduzir os três moleques enlouquecidos que brincam e gritam na casa em chamas “Vou dar para cada um de vocês seu carrinho favorito”, eles saem correndo atrás dos carrinhos, e ele lhes dá o Grande Carrinho Incomparável e Elevado Veículo de um Único Novilho Branco que eles são jovens demais para apreciar com aquele comando do Grandecarro, ele me fizera uma oferta – Olho para a perna de Tristessa e resolvo evitar a questão de destino e descanso além do paraíso.
Faço brincadeiras com seus olhos fabulosos e ela quer estar em um mosteiro.

Deixe Tristessa em paz” digo, de qualquer jeito, como se dissesse “Deixa o gato em paz, não o machuque” e abro a porta para ela, para podermos sair, à meia-noite, de meu quarto – Levo na mão, aos tropeções estranhos, uma grande lanterna de guarda–freios para iluminar seus passos quando descemos os degraus perigosos, é desnecessário dizer, ela quase tinha caído quando subiu, ela gemeu, reclamou enquanto subia, ela sorriu e desceu com passinhos miúdos e a mão na saia, com aquela lentidão linda e majestosa de mulher, como uma ninfeia chinesa.
Não somos nada.” “Podemos morrer amanhã.” “Não somos nada.”
Você e eu.”
Eu acompanho-a educadamente com a lanterna até a rua, onde chamo um táxi branco para levá-la para casa.
Desde tempos imemoriais e adentrando o futuro sem fim, os homens amaram mulheres sem dizer a elas, e o senhor os amou sem dizer, e o vazio não é o vazio porque não há nada para ser esvaziado.
Estás aí, Senhor estrela? – Suave é o chuviscar que perturbou minha calma.

Jack Kerouac, in Tristessa

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