[…]
***
Quando
a porta se fechou, Michael olhou com mais atenção.
Circundou
a caixa, ressabiado, pois havia acabado de compreender o que era —
já tinha visto outras parecidas.
No
primeiro ano, fora entregue em mãos, acompanhada de condolências e
doces murchos.
No
segundo, largaram na varanda da casa.
Naquele
ano, só meteram no correio e pronto.
Caridade
para crianças carbonizadas.
***
É
claro que o Michael Dunbar em si não ficara nada carbonizado, mas,
em tese, sua vida, sim.
Todos
os anos, no início da primavera, quando começavam os arredios
incêndios florestais, uma máfia filantrópica local chamada Clube
da Última Ceia se incumbia da responsabilidade de amparar as vítimas
do fogo, quer tivessem sido queimadas fisicamente, quer não. Adelle
e Michael Dunbar se enquadravam no perfil, e aquele ano foi como os
demais — era quase uma tradição a caixa transbordar, ao mesmo
tempo, de boas intenções e de um monte de merda. Bichos de pelúcia
sempre vinham irreparavelmente mutilados. Era certo que os
quebra-cabeças teriam peças faltando. Os homens de Lego vinham sem
cabeça, sem os braços ou sem as pernas.
Daquela
vez, Michael foi buscar uma tesoura sem o menor entusiasmo, mas
quando voltou e começou a abrir a caixa, até o sr. Franks cedeu ao
impulso de espiar o que havia dentro. O menino tirou de lá uma
espécie de montanha-russa de plástico com contas de ábaco em um
dos lados, depois um jogo de peças de Lego — aquelas imensas, para
crianças pequenas.
— Nossa,
que tesouro... Parece que esse povo roubou um banco — comentou
Franks, que tinha limpado a geleia, finalmente.
Em
seguida veio um ursinho de pelúcia caolho que tinha só metade do
nariz. Veja só… Vandalizado. Surrado no beco escuro entre o quarto
e a cozinha de alguma criança por aí.
Também
veio uma coleção de revistas Mad (que, a bem da verdade, até
que era bem legal, mesmo que a página final delas já estivesse
preenchida).
Por
último e mais estranho... O que era aquilo?
Que
merda era aquela?
Só
podiam estar de sacanagem.
Porque,
lá no fundo da caixa, escorando as laterais de papelão, havia um
calendário chamado Homens que mudaram o mundo. Era um
catálogo para Michael Dunbar escolher uma nova figura paterna?
Por
que não? Ele poderia abrir o mês de janeiro e escolher John F.
Kennedy.
Ou
abril: Emil Zátopek.
Maio:
William Shakespeare.
Julho:
Fernão de Magalhães.
Setembro:
Albert Einstein.
Ou
dezembro — em que, ao virar a página, ele encontrou uma breve
biografia e a obra de um homenzinho de nariz quebrado que, ao longo
do tempo, se tornaria a maior fonte de admiração do
futuro-assassino.
É
claro que era Michelangelo.
O
quarto Buonarroti.
***
O
mais estranho não era tanto o conteúdo do calendário, mas a data:
era do ano anterior. Provavelmente só estava ali para reforçar a
estrutura da caixa, e claramente tinha sido muito usado: a cada
página, além da foto ou da ilustração do homem do mês, havia
várias datas rabiscadas com eventos e afazeres.
4
de fevereiro: Revisão carro. Ok.
19
de março: Aniversário Maria M.
27
de maio: Jantar com Walt.
Quem
quer que fosse, o dono anterior do calendário jantou com o Walt na
última sexta-feira de todos os meses.
***
Agora
uma pequena observação a respeito de Adelle Dunbar, a secretária
dos óculos de armação vermelha.
Ela
era uma mulher prática.
Quando
Michael mostrou a caixa de Lego e o calendário, ela franziu a testa
e abaixou os óculos.
— Isso
aí é um calendário usado?
— Aham.
— De repente, Michael tinha ficado realmente interessado. — Posso
ficar com ele?
— Mas
é do ano passado... Dá isso aqui, deixa eu olhar.
Folheou
o calendário. Não demonstrou nenhuma reação exagerada. Chegou a
pensar em ter uma conversinha com a mulher responsável por enviar
aquela merda de caixa de caridade, mas não fez isso. Engoliu a
fagulha de raiva. Conteve tudo por baixo de sua voz devidamente
afetada e, assim como o filho, prosseguiu:
— E
as mulheres que mudaram o mundo? Você acha que tem um
calendário com elas?
O
menino ficou meio perdido.
— Não
sei.
— Mas
você não acha que deveria ter?
— Não
sei.
— Tem
muita coisa que você não sabe, não é mesmo? — Contudo, ela
suavizou o tom. — Vamos fazer o seguinte. Você quer essa porcaria?
Diante
da possibilidade real de perdê-lo, o menino queria o calendário
mais do que tudo. Com energia renovada, assentiu.
— Está
bem. — Lá vinham as regras e o sorrisinho da mãe. — Que tal
você me listar vinte e quatro mulheres que também mudaram o mundo?
Diga quem elas eram e o que fizeram. Aí você pode ficar com esse
troço.
— Vinte
e quatro?! — O menino ficou perplexo.
— Que
que tem?
— Aqui
só tem doze!
— Vinte
e quatro mulheres. — Adelle estava começando a se divertir. — Já
terminou de dar seu piti ou devo aumentar para trinta e seis?
Ela
ajeitou os óculos e voltou ao trabalho enquanto Michael retornava à
sala de espera. Afinal, havia umas contas de ábaco a empurrar de um
canto para outro e as revistas Mad para defender. As mulheres
teriam que esperar.
Contudo,
um minuto depois, ele perambulou de volta para perto da mãe, que
estava à máquina de escrever.
— Mamãe.
— O
que foi, meu filho?
— Posso
botar a Elizabeth Montgomery na lista?
— Elizabeth
quem?
— Sabe,
A Feiticeira.
Era
o programa preferido dele, assistia às reprises todas as tardes, e
Adelle não se conteve. Soltou uma bela risada, arrematada por um
potente ponto final.
— Claro
que pode.
— Obrigado.
No
meio da pequena negociação, Michael estava concentrado demais para
perceber Abbey Hanley, chorosa e com o braço dolorido, saindo do
terrível laboratório de experimentos do médico.
Se
tivesse percebido, teria pensado:
Uma
coisa é certa, você não entraria na minha lista.
O
momento teve um pouco do piano, ou do estacionamento da escola, se é
que você me entende — pois era curioso pensar que, um dia, eu
acabaria me casando com aquela garota.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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