O
inverno acabou e a primavera estava quase no fim quando os filhos de
Thomas Hudson chegaram à ilha naquele ano. Os três haviam combinado
encontrar-se em Nova York para viajar juntos de trem e depois tomar o
avião em Miami. Como de costume, não faltaram dificuldades com a
mãe dos dois menores. Ela planejara uma excursão à Europa sem
dizer nada, naturalmente, ao pai dos garotos sobre quando pretendia
realizá-la, e queria os filhos durante o verão. Hudson poderia
ficar com eles para as festas de fim de ano; depois do Natal, lógico.
Porque o Natal seria passado com ela.
Thomas
Hudson a essa altura já conhecia bem a manobra e afinal houve as
concessões mútuas de sempre. Os dois filhos menores vinham à ilha
visitar o pai por cinco semanas e depois iriam embora para Nova York,
de onde partiriam na classe de estudante de um vapor da Linha
Francesa ao encontro da mãe em Paris, onde ela já teria comprado
algumas roupas necessárias. Estariam sob a tutela do irmão mais
velho, Tom Jr., que depois iria reunir-se à mãe dele, que andava
fazendo um filme no sul da França.
A
mãe de Tom Jr. não exigira que ele fosse para lá e teria gostado
que permanecesse na ilha com o pai. Mas adoraria vê-lo e era um
acordo razoável em vista da decisão inabalável da mãe dos outros
meninos, mulher deliciosa e de raro encanto, que jamais alterava
qualquer plano que fizesse na vida. Sempre os conservava em segredo,
feito um autêntico general, e os punha em prática com idêntico
rigor. Uma concessão podia ser cabível. Mas nunca a modificação
radical de um plano concebido em noite em claro, manhã de
contrariedade ou festa regada a gim.
Um
plano era um plano, e uma decisão, indubitavelmente, uma decisão.
Sabendo disso, e bem adestrado nos costumes do divórcio, Thomas
Hudson se deu por satisfeito por terem chegado a um acordo e que os
filhos estivessem vindo por cinco semanas. Se é esse o prazo que
conseguimos, pensou, contentemo-nos com ele. Cinco semanas é tempo
suficientemente longo para se passar junto das pessoas que amamos e
ao lado de quem gostaríamos de ficar para sempre. Mas, em primeiro
lugar, por que se havia separado da mãe de Tom? Melhor não pensar
nisso, aconselhou a si mesmo. Eis aí uma coisa sobre a qual convém
pôr uma pedra em cima. E os filhos que você teve com a outra são
ótimos. Muito estranhos, complicados, mas você bem sabe quantas
boas qualidades herdaram da mãe. Mulher ótima, de quem você também
nunca deveria ter se separado. E então disse consigo mesmo: Não, eu
tinha que me separar.
Mas
não se deixou impressionar por nada disso. Fazia muito tempo que não
se impressionava por coisa alguma. Sufocava os remorsos com o máximo
de trabalho possível e agora só se preocupava com a chegada dos
garotos, que precisavam ter um bom veraneio. Depois retornaria à
pintura.
Tinha
conseguido substituir quase tudo, menos os filhos, pelo trabalho e a
vida regular, normal, operosa, que observava na ilha. Acreditava ter
criado ali algo que haveria de perdurar e retê-lo. Agora, quando
sentia saudade de Paris, recorria às recordações em vez de viajar
para lá. Fazia o mesmo com toda a Europa e grande parte da Ásia e
da África.
Ainda
se lembrava do comentário de Renoir ao saber que Gauguin havia
abandonado tudo para ir pintar em Taiti: — Pra que ele precisa
gastar tanto dinheiro pra ir pra tão longe quando a gente pode
pintar tão bem aqui em Batignolles? — Em francês ficava melhor:
quand on peint si bien aux Batignolles, e Thomas Hudson
imaginava a ilha como o seu quartier, onde se havia radicado,
conhecia os vizinhos e o trabalho rendia tanto como em Paris, quando
Tom Jr. ainda era criança.
Às
vezes deixava a ilha para pescar em águas cubanas ou para ir às
montanhas no outono. Mas alugara a fazenda que possuía em Montana
porque a melhor época por lá era no verão e no outono, e agora os
meninos sempre tinham colégio no outono.
De
vez em quando precisava dar um pulo a Nova York para falar com seu
marchand de tableaux. Mas já se tornara mais frequente
suceder o oposto, e o marchand levava as telas consigo para o
norte. Estava muito cotado como pintor, sendo respeitado tanto na
Europa quanto em seu próprio país. Recebia a renda sistemática do
arrendamento petrolífero de terras que haviam sido propriedade do
avô. Antigamente pastoris, ao serem vendidas alguém teve a boa
ideia de conservar os direitos de mineração do solo. Cerca da
metade dos rendimentos que usufruía era absorvida em pensões
alimentares, mas o saldo proporcionava-lhe a segurança necessária
para pintar unicamente o que queria, livre de coações comerciais.
Permitia-lhe também viver onde bem entendesse e viajar quando lhe
desse vontade.
Vencera
praticamente em todos os setores da vida, exceto no casamento, apesar
de nunca ter ligado realmente para o sucesso. O que lhe interessava
eram a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira
mulher de quem se enamorara. Depois dela havia amado várias outras,
e às vezes uma vinha fazer-lhe companhia na ilha. Sentia falta da
presença feminina e durante certo tempo eram bem-vindas. Gostava de
tê-las ali, frequentemente por períodos bastante longos. Mas no fim
sempre sentia alívio quando partiam, mesmo aquelas por quem se
afeiçoava. Aprendera a não discutir mais com mulheres e agora sabia
como se esquivar do casamento. Duas coisas quase tão difíceis de
aprender quanto se radicar e pintar de maneira constante, metódica.
Mas tinha aprendido — e esperava que fosse em caráter permanente.
Há muito tempo que sabia pintar e acreditava estar aprendendo cada
vez mais com o correr dos anos. Aprender, porém, a ficar sempre no
mesmo lugar e pintar com disciplina lhe fora bastante penoso, porque
houve uma época em sua vida em que se mostrara indisciplinado,
egoísta e impiedoso. Agora o sabia, não só porque muitas mulheres
lhe tinham feito ver isso, mas porque descobrira finalmente, por si
mesmo. Decidiu-se então a ser egoísta apenas com a pintura,
implacável só com o trabalho — e a se autodisciplinar, aceitando
a disciplina.
Ia
aproveitar a vida dentro dos limites que se havia imposto e trabalhar
com afinco. E hoje sentia-se felicíssimo porque os filhos iam chegar
na manhã seguinte.
— seu
Tom, o senhor não quer nada? — perguntou-lhe Joseph, o criado. —
Tirou o dia de folga, né?
Joseph
era alto, a cara espichada, pretíssima, com mãos e pés enormes.
Usava paletó e calças brancos e andava descalço.
— Obrigado,
Joseph. Acho que não quero nada.
— Nem
um pouco de gim-tônica?
— Não.
Acho que vou lá embaixo tomar um no bar do seu Bobby.
— Tome
um aqui. Sai mais barato. Seu Bobby tava de cara feia quando passei
por lá. Misturou muita bebida, diz ele. Teve uma moça, de um iate
aí, que pediu um troço chamado White Lady, e ele serviu pra
ela uma garrafa daquela mineral americana que tem uma dona com uma
espécie de vestido de mosquiteiro branco sentada junto de uma fonte.
— É
melhor eu ir até lá.
— Deixe
eu lhe preparar um antes. Veio correspondência pro senhor na lancha
do piloto. O senhor pode ler enquanto toma seu drinque e depois vai
lá no seu Bobby.
— Tá
certo.
— Que
bom — disse Joseph. — Porque já tá preparado. Parece que não
tem nada importante nas cartas, seu Tom.
— Onde
estão?
— Lá
na cozinha. Já vou buscar. Tem duas com letra de mulher. Uma de Nova
York. Uma de Palm Beach. Letra bonita. Uma daquele moço que vende os
quadros do senhor em Nova York. E mais duas que eu nunca vi.
— Não
quer respondê-las pra mim?
— Quero,
sim senhor. É só o senhor deixar. Senão nem sei o que vou fazer
com toda a instrução que eu tive.
— É
melhor ir buscá-las.
— Sim,
senhor, seu Tom. Chegou jornal também.
— Por
favor, Joseph, deixe pra hora do café.
Thomas
Hudson sentou, leu a correspondência e tomou a bebida gelada. Releu
uma carta e depois guardou todas numa gaveta da escrivaninha.
— Joseph
— chamou. — Você arrumou tudo para os meninos?
— Arrumei,
sim, seu Tom. E duas caixas extras de Coca-Cola. O Tom Jr. deve estar
maior do que eu, né?
— Ainda
não.
— Acha
que ele já pode me derrubar?
— Acho
que não.
— Eu
lutei tantas vezes com aquele menino por motivos pessoais — disse
Joseph. — Vai ser muito gozado chamar ele de seu. Seu Tom, seu
David e seu Andrew. Três dos meninos mais danados que conheço. E o
mais safado é o Andy.
— Ele
já nasceu safado — disse Thomas Hudson.
— E,
puxa vida, nunca mais parou — disse Joseph, cheio de admiração.
— Vê
se lhes dá um bom exemplo este verão.
— Seu
Tom, o senhor não vai querer que eu dê bom exemplo pra esses
meninos este verão. Há três ou quatro anos, quando eu não sabia
nada, podia ser. Eu vou é copiar o jeitão do Tom. Ele teve em
colégio granfa e aprendeu boas maneiras de gente rica. Não vou
poder ficar igualzinho a ele, mas posso comportar-me que nem ele. Sem
cerimônia, mas educado. Depois vou ser tão sabido como o Dave. Essa
é a parte mais difícil. Aí então vou aprender como é que o Andy
faz pra ser tão safado.
— Não
comece com safadezas por aqui.
— Não,
seu Tom, o senhor entendeu mal o que eu quis dizer. Essa safadeza não
é pra aplicar aqui em casa. Eu quero ela pra minha vida privada.
— Vai
ser bom com eles aqui, não é?
— Seu
Tom, não vai haver nada que se compare com aquela vez que eles
fizeram aquele fogaréu todo. Pra mim, aquilo só pode ser comparado
com a Segunda Vinda do Messias. Vai ser bom?, o senhor me pergunta.
Vai, sim, senhor.
— Temos
que pensar numa porção de divertimentos pra eles.
— Não,
seu Tom — disse Joseph. — A gente devia era pensar num modo de
proteger esses meninos dos próprios planos terríveis que eles têm.
O Eddy podia ajudar-nos. Ele conhece os três melhor do que eu. Eu
sou amigo deles, o que torna a coisa mais difícil.
— Como
vai o Eddy?
— Já
anda bebendo por aí pra festejar antecipadamente o aniversário da
rainha. Tá em plena forma.
— É
melhor eu dar um pulo lá no seu Bobby enquanto ele ainda tá de cara
feia.
— Ele
perguntou pelo senhor, seu Tom. O seu Bobby é um moço educado como
poucos, e às vezes esse lixo que chega de iate por aqui deixa ele
fubeca. Ele tava fubeca pra burro quando vim de lá.
— Que
é que você foi fazer lá?
— Fui
tomar Coca-Cola e fiquei pra uma rodadinha de bilhar.
— Como
vai a mesa?
— Pior.
— Eu
vou até lá — disse Thomas Hudson. — Mas antes preciso de um
banho e quero trocar de roupa.
— Já
deixei estendida em cima da cama pro senhor — avisou Joseph. —
Quer outro gim-tônica?
— Não,
obrigado.
— O
seu Roger tá lá na lancha.
— Ótimo.
Depois eu falo com ele.
— Ele
vai ficar hospedado aqui?
— Talvez.
— Então,
por via das dúvidas, vou arrumar a cama pra ele.
— Isso.
Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente
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