Sei
que está bastante fora de voga faz algum tempo, mas sou dos que
acreditam que, se fizemos uma promessa, devemos procurar cumpri-la.
Prometi descrever o que esperava, com toda a honestidade, ser uma
tarde empolgante, jogando alpiste para as rolinhas da rua Dias
Ferreira, aqui no Leblon. Tenho pouquíssima experiência no assunto,
mas, depois de décadas numa profissão em que saber observar é
indispensável, não vou dizer que sou bom repórter, não sou nem
repórter mediano, mas conheço uns dois macetes operosamente
aprendidos ao longo do tempo, peruando o trabalho dos craques e
fazendo perguntinhas importunas.
A
responsabilidade aumentou consideravelmente quando minha promessa
despertou interesse em algumas pessoas, todas quase ansiosas em
colaborar com minha missão, em diversas condições possíveis,
desde assessoria técnica ornitológica a jogar alpiste também. Fui
obrigado a usar expedientes variáveis para evitar que isso
acontecesse. Nos tempos em que vivemos, o evento ultrapassaria em
muito minha capacidade jornalística, pois o mínimo que iria
acontecer seria o surgimento de grupos usando camisetas com a
inscrição “Rolinhas Contra A Violência” e a organização de
uma passeata — aqui o pessoal é muito chegado a uma camiseta e uma
passeata como via de ação política. E, não sei, algo não me soa
bem em “rolinhas contra a violência” e suspeitaria de malícia
em exortações quiçá inocentes, como “alimente uma rolinha hoje”
ou “dê alpiste pra rolinha”, vocês sabem como é cabeça suja
nojenta de velho.
Cheguei
a extremos, até. O irrepreensível escritor e meu particular amigo
Rubem Fonseca me skypeou, neologismo pelo qual suplico perdão aos
puristas, mas quer dizer conversar pelo computador através de um
programa chamado Skype, indagando a hora e o local exatos em que se
realizaria a distribuição de alpiste, porque ele, como de hábito
embuçado, pretendia comparecer. (Sim, devo abrir estes parênteses
para dizer que ele certamente não vai gostar, quando vir aqui que eu
contei que ele tem Skype, mas nunca vou revelar o nome dele no
sistema e, de qualquer forma, ele bloqueia qualquer um numa boa;
querem ver, experimentem.) A presença dele é sempre bem-vinda em
qualquer lugar e uma honra e alegria para mim, mas em tudo nesta vida
há exceções e a distribuição de alpiste, receei, seria uma
delas.
Vocês
não sabem como é o Zé Rubem. Todo mundo pensa que sabe, mas não
sabe. Eu o conheci (sorry, periferia) em Paris, faz muitos
anos, e tenho certeza de que, no segundo dia em que saímos juntos, a
gendarmerie já nos acompanhava a uma distância discreta. Ele
apronta com a maior cara-de-pau e com certeza ia aparecer com a
cabeça enterrada até os olhos num chapéu de pano e se apresentar a
uns como Lúcio Mauro, a outros como Armando Nogueira e ainda a
outros como um visitante húngaro incapaz de compreender ou falar uma
só palavra em português com exceção de “banana”. Não ia dar
certo e, no meio do furdúncio assim criado, ele arrumaria uma
namorada, proeza que executa com instantaneidade fulminante, e
desapareceria, me deixando com o pepino, o abacaxi, o angu de caroço,
a batata quente e o que mais possa metaforizar a confusão. E depois
me skypearia novamente para dizer que eu me revelara péssimo dador
de alpiste para rolinhas e, além do mais, meu computador é de
quinta categoria.
Não,
tinha que ser uma experiência solitária e tão bem planejada quanto
possível. Mas eu não podia prever a mão implacável do destino,
que se preparava para me ministrar uma lição de que há muito devo
vir precisando. Cheguei à esquina onde costumava ver sempre
multidões desses populares peristerídeos (claro que eu não
conhecia esta palavra; catei-a no dicionário e desta vez dou uma
folga do exercício dominical a que lhes exorto sempre, de pegar o
dicionário, pois usar o dicionário do computador é considerado
comportamento antiesportivo, eu mesmo nem ligo para o Aurélio e o
Houaiss que tenho instalados aqui — e a folga é passar-lhes o
conhecimento sem o qual vocês não vão compreender como viveram até
agora, qual seja o de que esse é o nome da família das rolinhas) e
não vi nenhum. Perguntei a um chaveiro que tem cabine perto, ele me
disse que as rolinhas andavam sumidas.
Como,
andavam sumidas assim sem mais nem menos? Era o que eu ouvira,
estamos em falta de rolinhas. Ele tinha ideia da razão? Não, não
tinha, de repente elas não mais abundam como abundavam. Disse então
a ele que ia dar um jeito nisso. Ia voltar logo mais com alpiste para
derramar no chão e atrair de volta as rolinhas, era um esporte
radical adequado a meu preparo físico. Ele riu. Rolinha come
alpiste, claro, mas não curte muito, eu provavelmente ficaria
desmoralizado com meu alpiste. Não, esquecesse aquilo, as rolinhas
tinham sumido mesmo, só pintava uma ou outra de vez em quando.
Fiquei
pensando nas razões para o desaparecimento. Seriam as rolinhas
nordestinas, agora deportadas de volta pela prefeitura? Descobriu-se
que fumar rolinha moída dá mais barato do que chá de fita cassete?
Terão armado algum esquema de lavagem de dinheiro envolvendo
rolinhas? Mistério que certamente jamais desvendarei e, meio
deprimido, confesso-lhes que fracassei. Não comprei o alpiste, não
me enchi de adrenalina como esperava, não lhes fiz uma narrativa
arrepiante. E, como antecipei, aprendi uma lição de humildade. Se
dar alpiste a rolinha é difícil, muito mais será governar, ainda
mais quando, como eu, não se tem experiência. Era a desculpa que
faltava para eu mudar minhas posições. Quando será que vão passar
a creditar meu mensalão?
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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