segunda-feira, 18 de março de 2024

Xexéus latinistas e as tapiucabas


Deve haver borrego novo pelas redondezas porque o xexéu tem procurado arremedar o balido intermitente. Repete, corrige, retoma a imitação, volta a corrigir-se numa aplicação temerosa de faltar ao êxito.
Parece que pretende exibir-se diante de um auditório de especialistas julgadores. Nem mesmo é possível atinar-se com a finalidade daquela reprodução sensivelmente cômica. Nem porque, ante tantos motivos provocadores e sonoros, o xexéu escolheu o berro do borrego novo para dedicar-lhe atenção e esforço representativo. O dia inteiro, sempre que há tempo disponível, volta ao exercício numa obstinação exemplar. Chegou mesmo a uma aproximação plausível e, sentindo o impossível de melhorá-la, executou o trecho muitas horas, gozando ele sozinho as delícias da técnica pessoal.
Tempos passados no interior da casa abandonada e semidestruída uma porta rangia, oscilante nos gonzos, largando um sonido perro e rouco que lembrava ao longe um triste mugido de novilho. O xexéu prestou cuidadosa observação ao som e iniciou um curso intensivo para reproduzi-lo fielmente. A porta terminou desabando e o rangido acabou. O xexéu é que ficou vivendo o emperrado e surdo rumor numa repetição de máquina registradora. Era tal qual a porta, na sua música difícil e disfônica de ferrugem velha, condenada à queda e ao silêncio.
Passeia agora por toda extensão do galho em cuja ponta pendurou o seu ninho oblongo e cinzento de uns trinta centímetros, impenetrável à chuva e vento, com entrada cômoda situada contra a direção da ventania mais comum na região. Creio que o xexéu observa e anota a meteorologia local para decidir qual será o vento reinante na maior porção do ano. Aqui evita o lés-sueste e mesmo sueste gemedor orientando a portinha ano sentido contrário. A bolsa é presa por filamentos colados poderosamente por uma substância que talvez tenha a própria ave por produtora. Batido por ventanias, balança-se no vaivém perigoso mas sem possibilidade de despencar e cair. Quem já viu ninho de xexéu ceder mesmo nas loucuras da viração de agosto?
Como ia dizendo, o xexéu passeia no galho trauteando trechos indecisos de seu vasto repertório. De tanto imitar as vozes alheias quase já não recorda as próprias produções. Se o xexéu dedicasse ao engenho pessoal dois terços da energia despendida no arremedo das habilidades dos outros, seria um dos maiores cantores deste mundo, na classe principesca dos rouxinóis, graúnas, canários e sabiás. Mas sua inteligência afiada e magnífica dedica-se à prática arriscada dos plágios felizes.
É um lindo pássaro, justiça se lhe faça. Preto luzente, a mancha dourada alarga-se-lhe pelo dorso e cauda que termina negra. A base alar e o bico são de ouro pálido, macio e sedutor. As asas fortes permitem-lhe voo rápido, decisivo, quase sempre curto e com descidas espetaculares em curvas e diagonais parecidas com uma vertical.
Chamam-no também japi, japim e, no Ceará, bom-é. A família se orgulha em possuir figuras ilustres e com renome popular, a graúna, rainha do gorjeio e imitadora consumada, o papa-arroz sereno, o azulão sentimental, o decorativo papo-de-fogo, o corrupião boêmio, o encontro, famoso pela incidência do canto em escala cromática, e também o pássaro-preto, vadio, impenitente, vergonha da gens, mas elemento fornecedor de anedotas de sua vida airada irresponsável, sugestiva.
Nunca conseguiram explicar ao xexéu que ele é um icterídeo, do latim Icterus, do grego Iktéros, significando “amarelo”. Todos ostentam em maior ou menor percentagem o listrão dourado que é a cor heráldica, indispensável nestes fidalgos vagabundos.
Seu talento é vivo, álacre, comunicativo mas dispersivo, perdulário, fugaz. É uma hospedaria de imagens que se exteriorizam nas impressões sucessivas. Nunca a residência normal de uma ideia única que tenha força realizadora e fecunda. O xexéu é o artista das eternas preparações, dos ensaios inacabáveis, das promessas sem fim. Vive escolhendo, na série dos temas melódicos, o incomparável motivo para sua criação perpetuamente adiada. É o tipo modelar do amador profissional. Nunca podemos exigir-lhe acabamento regular nem perfeição normal.
É anedótico, bem-humorado, zombeteiro. Incrível a sua capacidade imitativa. Pode repetir todos os cantos, bulhas, rumores.
Tivemos mais de dois anos um xexéu. Aprendeu, prisioneiro na grande gaiola, as vozes dos animais domésticos, de todas as coisas familiares que o cercavam comumente. Foi logo depois da Primeira Grande Guerra. O xexéu tomou o nome de Guynemer, um ás francês que apaixonava pela fria audácia e desaparecera num combate como El-rei Dom Sebastião.
Meu pai fazia a sesta numa rede no vasto alpendre da casa. Vezes o armador de ferro atritava impertinentemente na escápula. Meu pai mandava azeitar e o guinchado desaparecia. Mas, dias depois, voltava, exigindo a mesma técnica. Num domingo escápulas e armadores gemiam, metálica, desesperadamente. Pôs-se óleo. O ruído continuou, insistente. Meu pai repetiu a dosagem. Deitou-se. O rumor persistiu. Assombração! Verificou-se afinal que era o xexéu, imóvel e grave no seu pequenino poleiro, bico para baixo, reproduzindo, com fidelidade impecável, a cantiga do armador e da escápula. Abrindo e fechando o olho azul, gozava a pilhéria que fizera.
As galinhas lançavam seu grito de alarme e de socorro. Có-có-cóóóóóóó! Vai-se ver o que estava excitando as poedeiras. Có-có-cóóóóóóó! Nenhuma anormalidade. Tudo quieto. Era Guynemer, solitário, divertindo-se em derramar o agudo “S.O.S.” das galinhas no alpendre tranquilo.
O jardineiro costumava largar uns assobios sem fim, com se chamasse vento. Especialmente nas horas de trabalho mais apurado, assobiava alto e fino. Minha mãe incomodava-se e pedia-lhe que fechasse o assobiador por algum tempo. Numa tarde, minha mãe mandou o jardineiro parar o assobio umas quatro vezes. Desculpava-se o homem que não estava assobiando de maneira alguma. Todos nós, entretanto, ouvíamos distinta e teimosamente o apito irritante. Ao final, depois de buscas, era ainda Guynemer, matando o tempo, plagiando o assobio do jardineiro inocente.
Nas vésperas de uma viagem demorada libertei todos os meus prisioneiros. Menos Maroca, a coruja, que fugira antes levando na pata um troço da corrente. Guynemer na tarde seguinte voltou, esvoaçando pelo alpendre. Pousou nos móveis, deixando-se pegar. Recolheram-no à gaiola, deixando a porta aberta. Naturalmente desanimara recusando esforçar-se para apanhar insetos quando estava habituado com cibo fácil e farto. Continuou residindo na sua gaiola e dando habituais e longos passeios higiênicos. Ao entardecer, regressava fielmente à gaiola e à comida de casa. De uma destas jornadas, com seu homônimo, Guynemer n’est pas rentré
Naturalmente os xexéus da mangueira, em liberdade, distam de hábitos e maneiras daqueles que estão no cativeiro imerecido. Precisam fazer o ninho e lutar pela alimentação, conquistar a fêmea, cantar os sinais comunicantes para outros ninhos e à namorada difícil de render-se ao prosaísmo da vida conjugal continuada, um dos exemplos afirmativos do homomorfismo monogâmico.
Os xexéus da mangueira não arremedam as vozes domésticas. Apenas um deles, ao deduzir-se fugitivo de alguma gaiola próxima, imitava a galinha chamando os pintos. Devia ser uma simples reminiscência que depois diluir-se-ia no meio das outras sugestões oferecidas pela movimentação sem limites.
O cearense José Carvalho contou que, uma vez, numa sua fazenda no Amazonas, debalde procurou um cordeiro cujo berro angustiado se repetia. Atinou que era obra de um japim, no alto dum galho, desnorteando com a perfeição imitativa a curiosidade do criador.
Arremedador de todos os pássaros e animais, o japim não ousa repetir o simples e fácil pio do tangurupará (Bunconídeo, gênero Monasa), cinzento, com o bico escarlarte-vivo. A explicação é dada por uma história. Irritado pelo japim contrafazer-lhe o assovio, o tangurupará procurou-o ameaçando que faria nele o que fizera ao avô dos japins se ousasse piar na sua maneira. “– E que fez você com meu avô?” – Matei-o e bebi-lhe o sangue! Olhe para o meu bico!” Exibia o bico vermelho. Nunca mais o japim voltou a assobiar como tangurupará.
José Carvalho fez uma experiência curiosa. Vendo aproximar-se um bando de japins (voam em bando) imitou o pio do tangurupará. Imediatamente todo o bando de japins desceu e escondeu-se nas árvores e moitas, literalmente espavorido.
José Carvalho tenta uma justificativa singular. Segundo supõe é o tangurupará a sentinela da floresta, encarregada de anunciar com o pio inimitável (de tão fácil) aos animais a aproximação de qualquer perigo. Ouvindo-o, aves, quadrúpedes fogem. A Natureza ou o clássico “instinto” ensinou a todos que não deviam e não podiam arremedar o aviso do guarda avançado sob pena de confusão desmoralizadora. E nem uma ave repete o aviso salvador por interesse coletivo. O xexéu amazônico foi um dos primeiros a aceitar e cumprir o pacto de honra.
Da sua faculdade imitadora já Frei Vicente do Salvador registrara: “– Tapéis, do tamanho de melros, todos negros, e as asas amarelas, que remedam no canto todos os outros pássaros perfeitissimamente, os quais fazem seus ninhos em uns sacos tecidos”.
Proverbial, entretanto, o seu mau odor, citado no catinga de xexéu, índice, para os melindres olfativos, da presença de negros.
Injusta aliás é a imagem ninho de xexéu, valendo desalinho, desarrumação confusa e grotesca. O ninho do xexéu é obra asseada e muito para ver-se, cuidada e bonita.
Este ninho, tecido impenetrável às chuvas e defendido dos ventos, pendura-se à extremidade do galho, oscilando como um fruto. Dizem ser obra-prima defensiva do xexéu contra o avanço das cobras trepadeiras, famintas por ovos. Não há cobra, mesmo de asas, que consiga invadir um ninho de xexéu. A segunda razão, material e mecânica, é a situação do mesmo.
A primeira razão é a tapiucaba, vespa de um centímetro e meio, anegrada e com a barriga vermelha, voando e zumbindo ameaçadoramente. São as madrinhas dos filhos dos xexéus. Aliados, compadres, familiares.
Esta simbiose já possui bibliografia e vem de uma lenda amazonense que Barbosa Rodrigues colheu.
Os pássaros, ofendidos pelos arremedos dos japins, destruíam os ninhos, quebrando os ovos, matando-lhes os filhos sempre que os pais se ausentavam. Os japins pediram às vespas que amadrinhassem-lhes os filhos. As vespas aceitaram com a condição única dos ninhos serem construídos nas árvores onde elas morassem. Encarregar-se-iam de defender os afilhados. E cumprem o trato. Onde há xexéu há tapiucaba na mesma árvore, zumbindo e mordendo qualquer atrevido, humano ou irracional, tentador.
Há uma informação fidedigna que o xexéu tributa a maior estima às tapiucabas, o que não os impede de engoli-las com a maior sem-cerimônia. Não é sua alimentação cotidiana mas, lá uma vez, para mudar o cardápio, o xexéu deglute algumas dezenas de comadres sem que esta traição invalide a continuidade do tratado desde tempo imemorial.
O mesmo informador evocava o castigo humilhante que as tapiucabas tinham dado a um macaquinho-de-cheiro (Saimiri sciurens) que infringira o direito das imunidades territoriais da residência dos xexéus e tapiucabas. O infeliz macaco foi coberto pelas vespas furiosas que o obrigaram a pular de um alto galho, guinchando desesperadamente de dor na punição pelo atrevimento de ter ousado desrespeitar os privilégios daquela região neutra. O macaco, restabelecido, nem mais sequer olhava a cajazeira.
Há igualmente versão dada fidedignamente de uma outra aliança dos xexéus com uma certa casta de formigas denominadas tapiu ou tapiúa. É formiga arbórea, que afugenta todas as demais espécies e ataca os ninhos, exceto os do compadre xexéu. Afirmam que esta concordata é comum quanto o contrato de auxílio mútuo e não agressão com as tapiucabas.
Aves de bando, vivendo em grupo, mantêm-se em boa educação individual, valorizando as alegrias do convívio. Nunca as vi empenhadas em duelos ou rusgas, apesar dos hábitos bulhentos e dos volteios sonoros ao derredor dos galhos ninheiros.
O canto próprio não é simples mas variado e longo. Apenas não é comum ouvi-lo entoar sua partitura, especialmente os xexéus de gaiola que se viciam nas imitações múltiplas. Terminam fazendo um pot-pourri agradável mas artificial, resultado dos arremedos e raros troços de cantiga típica. Guynemer era, desgraçadamente, um destes. Apesar da antiga e boa amizade, jamais lhes ouvi ou entendi pronunciar o próprio nome durante o canto, conforme notícia velha e comum em muitas fontes impressas.
Não sei se esta aptidão imitativa redunda em louvor para a inteligência do xexéu. O poder da imitação sonora, para vozes e não para ruídos como os psitacídeos, para vozes e ruídos como para os xexéus da mangueira, resulta da flexibilidade da siringe aliada à faculdade retentiva da ave.
Pode significar desvalorização do próprio canto, como o dos xexéus, que o possuem variado e longo, ou substituição pelo rudimentarismo da voz individual, como a das araras e dos papagaios. Se no homem a vocação para idiomas e a relativa facilidade de aprendê-los e manejá-los significa, realmente, não um índice de inteligência no plano criador (que é a fisionomia positiva da inteligência) e sim apropriação de formas aquisitivas de cultura pelo aproveitamento dos meios de comunicação, nas aves esta maleabilidade não importa em valorização específica. Não é um processo mimético de defesa nem um elemento sedutor para aproximar a fêmea. Havendo canto típico e diferenciado para cada família, dentro dos naturais limites onde as variações aparecem e mesmo modismos que são aspectos do virtuosismo de certas aves, a técnica da repetição simuladora dos motivos melódicos alheios é bem mais indicadora de pouca fixação dos caracteres musicais do grupo do que de aprovada habilidade do executor.
Sei muito bem que a ciência do plágio exige sutilezas de observação, finura mnemotécnica, dotes de adaptação, recriação com assimilação do material estranho, às vezes superiores ao esforço de uma própria criação, autenticamente original. Como inteligência não é boa memória, não tenho o condão imitativo do xexéu em alta conta. Pássaro chistoso, engraçado, palhaço, é classe pejorativa; descida visível da própria e natural dignidade ornitológica. Penso que é uma denúncia segura de aproximação humana, de reminiscências de alegre cativeiro anterior, jogralices para divertir os senhores, deméritos jubilosos que se fixaram nos genes e passaram a constituir permanentes concretas.
Daí esta impressão de subalternidade serviçal, de meneio doméstico bajulador, de subserviência funcional da possível e mecânica inteligência papagaial. Converge para ele o anedotário malandro, soluções finórias e felizes dos desajustados humanos que o têm como modelo, parasita consciente, farto e cínico, sem linguagem, sem ninho, sem costumes, numa perpétua disponibilidade de acomodação ao ambiente, às sugestões, às doutrinas do momento, hilariante, tolerado, inferior. Não é possível compará-lo ao bem-te-vi livre e forte, brigão e voraz, zombeteiro com personalidade, divertindo-se por sua conta e nos cânones de sua vontade incomprimível. A conversa usual, sabida e velha, é que todo xexéu é latinista ou estudante de latinidade nas horas do anoitecer. Espalhados pelos galhos dão começo a uma sabatina barulhenta e nítida, verificação melancólica quanto ao adiantamento precário dos alunos, secular e sucessivamente inscritos no curso vespertino. Sempre há um xexéu arguente e o bando que responde como pode.
Certo é que realmente parece versão exata e cômica do canto dos xexéus a declinação pronominal latina. Ouve-se claramente:
Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
Frase pronunciada o mais rapidamente possível e com o final interrogativo.
Vem a triste resposta errada de um xexéu ignorante e vadio: – Ab-qua-quo-que, em vez do natural quibus.
Como para corrigir, o xexéu velho, com ares de decurião, repete a pergunta e ouve o mesmo erro, voltando a cena a suceder-se até que, cansados todos, adiam para a tarde imediata a arguição infrutuosa.
Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
A noite desceu e todo bando mergulha nos ninhos, guardados pelas patrulhas das tapiucabas insones. Lá, um ou outro ainda põe a cabecinha esperta fora do janelão-porta-nobre insistindo na arguição inútil: – Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
Sente-se o voo surdeado de uma sentinela verificando a segurança do acampamento. Depois o silêncio envolve a todos.
Boa noite!…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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