Deve
haver borrego novo pelas redondezas porque o xexéu tem procurado
arremedar o balido intermitente. Repete, corrige, retoma a imitação,
volta a corrigir-se numa aplicação temerosa de faltar ao êxito.
Parece
que pretende exibir-se diante de um auditório de especialistas
julgadores. Nem mesmo é possível atinar-se com a finalidade daquela
reprodução sensivelmente cômica. Nem porque, ante tantos motivos
provocadores e sonoros, o xexéu escolheu o berro do borrego novo
para dedicar-lhe atenção e esforço representativo. O dia inteiro,
sempre que há tempo disponível, volta ao exercício numa obstinação
exemplar. Chegou mesmo a uma aproximação plausível e, sentindo o
impossível de melhorá-la, executou o trecho muitas horas, gozando
ele sozinho as delícias da técnica pessoal.
Tempos
passados no interior da casa abandonada e semidestruída uma porta
rangia, oscilante nos gonzos, largando um sonido perro e rouco que
lembrava ao longe um triste mugido de novilho. O xexéu prestou
cuidadosa observação ao som e iniciou um curso intensivo para
reproduzi-lo fielmente. A porta terminou desabando e o rangido
acabou. O xexéu é que ficou vivendo o emperrado e surdo rumor numa
repetição de máquina registradora. Era tal qual a porta, na sua
música difícil e disfônica de ferrugem velha, condenada à queda e
ao silêncio.
Passeia
agora por toda extensão do galho em cuja ponta pendurou o seu ninho
oblongo e cinzento de uns trinta centímetros, impenetrável à chuva
e vento, com entrada cômoda situada contra a direção da ventania
mais comum na região. Creio que o xexéu observa e anota a
meteorologia local para decidir qual será o vento reinante na maior
porção do ano. Aqui evita o lés-sueste e mesmo sueste gemedor
orientando a portinha ano sentido contrário. A bolsa é presa por
filamentos colados poderosamente por uma substância que talvez tenha
a própria ave por produtora. Batido por ventanias, balança-se no
vaivém perigoso mas sem possibilidade de despencar e cair. Quem já
viu ninho de xexéu ceder mesmo nas loucuras da viração de agosto?
Como
ia dizendo, o xexéu passeia no galho trauteando trechos indecisos de
seu vasto repertório. De tanto imitar as vozes alheias quase já não
recorda as próprias produções. Se o xexéu dedicasse ao engenho
pessoal dois terços da energia despendida no arremedo das
habilidades dos outros, seria um dos maiores cantores deste mundo, na
classe principesca dos rouxinóis, graúnas, canários e sabiás. Mas
sua inteligência afiada e magnífica dedica-se à prática arriscada
dos plágios felizes.
É
um lindo pássaro, justiça se lhe faça. Preto luzente, a mancha
dourada alarga-se-lhe pelo dorso e cauda que termina negra. A base
alar e o bico são de ouro pálido, macio e sedutor. As asas fortes
permitem-lhe voo rápido, decisivo, quase sempre curto e com descidas
espetaculares em curvas e diagonais parecidas com uma vertical.
Chamam-no
também japi, japim e, no Ceará, bom-é. A família se orgulha em
possuir figuras ilustres e com renome popular, a graúna, rainha do
gorjeio e imitadora consumada, o papa-arroz sereno, o azulão
sentimental, o decorativo papo-de-fogo, o corrupião boêmio, o
encontro, famoso pela incidência do canto em escala cromática, e
também o pássaro-preto, vadio, impenitente, vergonha da gens,
mas elemento fornecedor de anedotas de sua vida airada irresponsável,
sugestiva.
Nunca
conseguiram explicar ao xexéu que ele é um icterídeo, do latim
Icterus, do grego Iktéros, significando “amarelo”.
Todos ostentam em maior ou menor percentagem o listrão dourado que é
a cor heráldica, indispensável nestes fidalgos vagabundos.
Seu
talento é vivo, álacre, comunicativo mas dispersivo, perdulário,
fugaz. É uma hospedaria de imagens que se exteriorizam nas
impressões sucessivas. Nunca a residência normal de uma ideia única
que tenha força realizadora e fecunda. O xexéu é o artista das
eternas preparações, dos ensaios inacabáveis, das promessas sem
fim. Vive escolhendo, na série dos temas melódicos, o incomparável
motivo para sua criação perpetuamente adiada. É o tipo modelar do
amador profissional. Nunca podemos exigir-lhe acabamento regular nem
perfeição normal.
É
anedótico, bem-humorado, zombeteiro. Incrível a sua capacidade
imitativa. Pode repetir todos os cantos, bulhas, rumores.
Tivemos
mais de dois anos um xexéu. Aprendeu, prisioneiro na grande gaiola,
as vozes dos animais domésticos, de todas as coisas familiares que o
cercavam comumente. Foi logo depois da Primeira Grande Guerra. O
xexéu tomou o nome de Guynemer, um ás francês que apaixonava pela
fria audácia e desaparecera num combate como El-rei Dom Sebastião.
Meu
pai fazia a sesta numa rede no vasto alpendre da casa. Vezes o
armador de ferro atritava impertinentemente na escápula. Meu pai
mandava azeitar e o guinchado desaparecia. Mas, dias depois, voltava,
exigindo a mesma técnica. Num domingo escápulas e armadores gemiam,
metálica, desesperadamente. Pôs-se óleo. O ruído continuou,
insistente. Meu pai repetiu a dosagem. Deitou-se. O rumor persistiu.
Assombração! Verificou-se afinal que era o xexéu, imóvel e grave
no seu pequenino poleiro, bico para baixo, reproduzindo, com
fidelidade impecável, a cantiga do armador e da escápula. Abrindo e
fechando o olho azul, gozava a pilhéria que fizera.
As
galinhas lançavam seu grito de alarme e de socorro. Có-có-cóóóóóóó!
Vai-se ver o que estava excitando as poedeiras. Có-có-cóóóóóóó!
Nenhuma anormalidade. Tudo quieto. Era Guynemer, solitário,
divertindo-se em derramar o agudo “S.O.S.” das galinhas no
alpendre tranquilo.
O
jardineiro costumava largar uns assobios sem fim, com se chamasse
vento. Especialmente nas horas de trabalho mais apurado, assobiava
alto e fino. Minha mãe incomodava-se e pedia-lhe que fechasse o
assobiador por algum tempo. Numa tarde, minha mãe mandou o
jardineiro parar o assobio umas quatro vezes. Desculpava-se o homem
que não estava assobiando de maneira alguma. Todos nós, entretanto,
ouvíamos distinta e teimosamente o apito irritante. Ao final, depois
de buscas, era ainda Guynemer, matando o tempo, plagiando o assobio
do jardineiro inocente.
Nas
vésperas de uma viagem demorada libertei todos os meus prisioneiros.
Menos Maroca, a coruja, que fugira antes levando na pata um troço da
corrente. Guynemer na tarde seguinte voltou, esvoaçando pelo
alpendre. Pousou nos móveis, deixando-se pegar. Recolheram-no à
gaiola, deixando a porta aberta. Naturalmente desanimara recusando
esforçar-se para apanhar insetos quando estava habituado com cibo
fácil e farto. Continuou residindo na sua gaiola e dando habituais e
longos passeios higiênicos. Ao entardecer, regressava fielmente à
gaiola e à comida de casa. De uma destas jornadas, com seu homônimo,
Guynemer n’est pas rentré…
Naturalmente
os xexéus da mangueira, em liberdade, distam de hábitos e maneiras
daqueles que estão no cativeiro imerecido. Precisam fazer o ninho e
lutar pela alimentação, conquistar a fêmea, cantar os sinais
comunicantes para outros ninhos e à namorada difícil de render-se
ao prosaísmo da vida conjugal continuada, um dos exemplos
afirmativos do homomorfismo monogâmico.
Os
xexéus da mangueira não arremedam as vozes domésticas. Apenas um
deles, ao deduzir-se fugitivo de alguma gaiola próxima, imitava a
galinha chamando os pintos. Devia ser uma simples reminiscência que
depois diluir-se-ia no meio das outras sugestões oferecidas pela
movimentação sem limites.
O
cearense José Carvalho contou que, uma vez, numa sua fazenda no
Amazonas, debalde procurou um cordeiro cujo berro angustiado se
repetia. Atinou que era obra de um japim, no alto dum galho,
desnorteando com a perfeição imitativa a curiosidade do criador.
Arremedador
de todos os pássaros e animais, o japim não ousa repetir o simples
e fácil pio do tangurupará (Bunconídeo, gênero Monasa),
cinzento, com o bico escarlarte-vivo. A explicação é dada por uma
história. Irritado pelo japim contrafazer-lhe o assovio, o
tangurupará procurou-o ameaçando que faria nele o que fizera ao avô
dos japins se ousasse piar na sua maneira. “– E que fez você com
meu avô?” – Matei-o e bebi-lhe o sangue! Olhe para o meu bico!”
Exibia o bico vermelho. Nunca mais o japim voltou a assobiar como
tangurupará.
José
Carvalho fez uma experiência curiosa. Vendo aproximar-se um bando de
japins (voam em bando) imitou o pio do tangurupará. Imediatamente
todo o bando de japins desceu e escondeu-se nas árvores e moitas,
literalmente espavorido.
José
Carvalho tenta uma justificativa singular. Segundo supõe é o
tangurupará a sentinela da floresta, encarregada de anunciar com o
pio inimitável (de tão fácil) aos animais a aproximação de
qualquer perigo. Ouvindo-o, aves, quadrúpedes fogem. A Natureza ou o
clássico “instinto” ensinou a todos que não deviam e não
podiam arremedar o aviso do guarda avançado sob pena de confusão
desmoralizadora. E nem uma ave repete o aviso salvador por interesse
coletivo. O xexéu amazônico foi um dos primeiros a aceitar e
cumprir o pacto de honra.
Da
sua faculdade imitadora já Frei Vicente do Salvador registrara: “–
Tapéis, do tamanho de melros, todos negros, e as asas amarelas, que
remedam no canto todos os outros pássaros perfeitissimamente, os
quais fazem seus ninhos em uns sacos tecidos”.
Proverbial,
entretanto, o seu mau odor, citado no catinga de xexéu, índice,
para os melindres olfativos, da presença de negros.
Injusta
aliás é a imagem ninho de xexéu, valendo desalinho, desarrumação
confusa e grotesca. O ninho do xexéu é obra asseada e muito para
ver-se, cuidada e bonita.
Este
ninho, tecido impenetrável às chuvas e defendido dos ventos,
pendura-se à extremidade do galho, oscilando como um fruto. Dizem
ser obra-prima defensiva do xexéu contra o avanço das cobras
trepadeiras, famintas por ovos. Não há cobra, mesmo de asas, que
consiga invadir um ninho de xexéu. A segunda razão, material e
mecânica, é a situação do mesmo.
A
primeira razão é a tapiucaba, vespa de um centímetro e meio,
anegrada e com a barriga vermelha, voando e zumbindo ameaçadoramente.
São as madrinhas dos filhos dos xexéus. Aliados, compadres,
familiares.
Esta
simbiose já possui bibliografia e vem de uma lenda amazonense que
Barbosa Rodrigues colheu.
Os
pássaros, ofendidos pelos arremedos dos japins, destruíam os
ninhos, quebrando os ovos, matando-lhes os filhos sempre que os pais
se ausentavam. Os japins pediram às vespas que amadrinhassem-lhes os
filhos. As vespas aceitaram com a condição única dos ninhos serem
construídos nas árvores onde elas morassem. Encarregar-se-iam de
defender os afilhados. E cumprem o trato. Onde há xexéu há
tapiucaba na mesma árvore, zumbindo e mordendo qualquer atrevido,
humano ou irracional, tentador.
Há
uma informação fidedigna que o xexéu tributa a maior estima às
tapiucabas, o que não os impede de engoli-las com a maior
sem-cerimônia. Não é sua alimentação cotidiana mas, lá uma vez,
para mudar o cardápio, o xexéu deglute algumas dezenas de comadres
sem que esta traição invalide a continuidade do tratado desde tempo
imemorial.
O
mesmo informador evocava o castigo humilhante que as tapiucabas
tinham dado a um macaquinho-de-cheiro (Saimiri sciurens) que
infringira o direito das imunidades territoriais da residência dos
xexéus e tapiucabas. O infeliz macaco foi coberto pelas vespas
furiosas que o obrigaram a pular de um alto galho, guinchando
desesperadamente de dor na punição pelo atrevimento de ter ousado
desrespeitar os privilégios daquela região neutra. O macaco,
restabelecido, nem mais sequer olhava a cajazeira.
Há
igualmente versão dada fidedignamente de uma outra aliança dos
xexéus com uma certa casta de formigas denominadas tapiu ou tapiúa.
É formiga arbórea, que afugenta todas as demais espécies e ataca
os ninhos, exceto os do compadre xexéu. Afirmam que esta concordata
é comum quanto o contrato de auxílio mútuo e não agressão com as
tapiucabas.
Aves
de bando, vivendo em grupo, mantêm-se em boa educação individual,
valorizando as alegrias do convívio. Nunca as vi empenhadas em
duelos ou rusgas, apesar dos hábitos bulhentos e dos volteios
sonoros ao derredor dos galhos ninheiros.
O
canto próprio não é simples mas variado e longo. Apenas não é
comum ouvi-lo entoar sua partitura, especialmente os xexéus de
gaiola que se viciam nas imitações múltiplas. Terminam fazendo um
pot-pourri agradável mas artificial, resultado dos arremedos
e raros troços de cantiga típica. Guynemer era, desgraçadamente,
um destes. Apesar da antiga e boa amizade, jamais lhes ouvi ou
entendi pronunciar o próprio nome durante o canto, conforme notícia
velha e comum em muitas fontes impressas.
Não
sei se esta aptidão imitativa redunda em louvor para a inteligência
do xexéu. O poder da imitação sonora, para vozes e não para
ruídos como os psitacídeos, para vozes e ruídos como para os
xexéus da mangueira, resulta da flexibilidade da siringe aliada à
faculdade retentiva da ave.
Pode
significar desvalorização do próprio canto, como o dos xexéus,
que o possuem variado e longo, ou substituição pelo rudimentarismo
da voz individual, como a das araras e dos papagaios. Se no homem a
vocação para idiomas e a relativa facilidade de aprendê-los e
manejá-los significa, realmente, não um índice de inteligência no
plano criador (que é a fisionomia positiva da inteligência) e sim
apropriação de formas aquisitivas de cultura pelo aproveitamento
dos meios de comunicação, nas aves esta maleabilidade não importa
em valorização específica. Não é um processo mimético de defesa
nem um elemento sedutor para aproximar a fêmea. Havendo canto típico
e diferenciado para cada família, dentro dos naturais limites onde
as variações aparecem e mesmo modismos que são aspectos do
virtuosismo de certas aves, a técnica da repetição simuladora dos
motivos melódicos alheios é bem mais indicadora de pouca fixação
dos caracteres musicais do grupo do que de aprovada habilidade do
executor.
Sei
muito bem que a ciência do plágio exige sutilezas de observação,
finura mnemotécnica, dotes de adaptação, recriação com
assimilação do material estranho, às vezes superiores ao esforço
de uma própria criação, autenticamente original. Como inteligência
não é boa memória, não tenho o condão imitativo do xexéu em
alta conta. Pássaro chistoso, engraçado, palhaço, é classe
pejorativa; descida visível da própria e natural dignidade
ornitológica. Penso que é uma denúncia segura de aproximação
humana, de reminiscências de alegre cativeiro anterior, jogralices
para divertir os senhores, deméritos jubilosos que se fixaram nos
genes e passaram a constituir permanentes concretas.
Daí
esta impressão de subalternidade serviçal, de meneio doméstico
bajulador, de subserviência funcional da possível e mecânica
inteligência papagaial. Converge para ele o anedotário malandro,
soluções finórias e felizes dos desajustados humanos que o têm
como modelo, parasita consciente, farto e cínico, sem linguagem, sem
ninho, sem costumes, numa perpétua disponibilidade de acomodação
ao ambiente, às sugestões, às doutrinas do momento, hilariante,
tolerado, inferior. Não é possível compará-lo ao bem-te-vi livre
e forte, brigão e voraz, zombeteiro com personalidade, divertindo-se
por sua conta e nos cânones de sua vontade incomprimível. A
conversa usual, sabida e velha, é que todo xexéu é latinista ou
estudante de latinidade nas horas do anoitecer. Espalhados pelos
galhos dão começo a uma sabatina barulhenta e nítida, verificação
melancólica quanto ao adiantamento precário dos alunos, secular e
sucessivamente inscritos no curso vespertino. Sempre há um xexéu
arguente e o bando que responde como pode.
Certo
é que realmente parece versão exata e cômica do canto dos xexéus
a declinação pronominal latina. Ouve-se claramente:
– Quid-quae-quod!
Ablativo do plural?
Frase
pronunciada o mais rapidamente possível e com o final interrogativo.
Vem
a triste resposta errada de um xexéu ignorante e vadio: –
Ab-qua-quo-que, em vez do natural quibus.
Como
para corrigir, o xexéu velho, com ares de decurião, repete a
pergunta e ouve o mesmo erro, voltando a cena a suceder-se até que,
cansados todos, adiam para a tarde imediata a arguição infrutuosa.
– Quid-quae-quod!
Ablativo do plural?
A
noite desceu e todo bando mergulha nos ninhos, guardados pelas
patrulhas das tapiucabas insones. Lá, um ou outro ainda põe a
cabecinha esperta fora do janelão-porta-nobre insistindo na arguição
inútil: – Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
Sente-se
o voo surdeado de uma sentinela verificando a segurança do
acampamento. Depois o silêncio envolve a todos.
Boa
noite!…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
Nenhum comentário:
Postar um comentário