Aquilo
na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que
sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda,
hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da
desordem, e menos da desordem do que do rumor. Depois, os padres
falaram em pôr fim a festas dessas, no Colégio. Quem nada podia
mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de corografia e
história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive, estará
lá já após de velho. E o em-diabo pretinho Alfeu, corcunda?
Astramiro, agora aeroviário, e o Joaquincas — bookmaker e
adjazidas atividades — com ambos raro em raro me encontro, os fatos
recordam-se. A peça ia ser o drama “Os Filhos do Doutor
Famoso”, só em cinco atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os
escolhidos para o representar? Às vezes penso. Às vezes, não.
Desde a hora em que, logo num recreio de depois do almoço, o regente
Seu Siqueira, o Surubim, sisudo de mistérios, veio chamar-nos
para a grande novidade, o pacto de puro entusiasmo nosso avançara,
sem sustar-se. Éramos onze, digo, doze.
Atordoados,
pois. O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação. Donde,
com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três
ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que
empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente,
à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem,
extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse; leu-se
desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e
promoveu risos, de preenchido beócio, que era. Quando o Dr. Perdigão
nos despachou, lembramo-nos de que na turma estavam de mal os dois
mais decididos e respeitados — Ataualpa, que ia ser o Doutor
Famoso, e o Darcy, o Filho Capitão. Mas os mesmos
conviram logo em precisar pazes, sem o caso de a gente bem-oficiar se
oferecendo de permeio. Tocaram de bem, dando ainda o Ataualpa ao
Darcy um selo do Transvaal, e o Darcy a Ataualpa um da Tasmânia ou
da China. Em seguida, eles, de chefes, nos sobreolharam, e pegaram
com ordens: — “Ninguém conta nada aos outros, do drama!”
Concordados, combinou-se, juramos. Careciam-se uns momentos, para a
grandiosa alegria se ajustar nos cantos das nossas cabeças. A não
ser o Zé Boné, decerto.
Zé
Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia
ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria
e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava,
assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava
afinal — figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife.
Dele, bem, se ria. O basbaque. Mesmo assim, acharam que para o teatro
ele me passava; decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por
retraído e mal-à-vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não
fosse o padre Diretor, de bom acaso vindo entrando, declarar que,
aluno aplicado, e com voz variada, certa, de recitador, eu podia no
vantajoso ser o “ponto”. Sorri de os outros comigo, amigos,
mexerem. Joaquincas, o que era para personificar o Filho Padre,
me deu duas marcas novas de cigarros, e eu a ele uma prata de
quinhentos-réis e o meio pão que estava guardando na algibeira. Aí,
o Darcy e Ataualpa, arranjada coragem, alegaram não caber Zé Boné
com as prestes obrigações. Mas o padre Prefeito repreendeu-nos a
soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné tocava, de um
policial, se versava dos mais simples, com escasso falar.
Adiantou nada o Araujinho, servindo de o outro policial, fazer
a cara amargosa: acabou-se a opinião da questão. Não que Zé Boné
à gente não enchesse — de inquietas cautelas. O segredo ia ele
poder guardar?
Aí,
mais, teve-se dúvida. Se os outros alunos se embolassem, para à
força quererem fazer a gente contar a estória do drama? Dois deles
preocupavam-nos, fortes, dos maiores dos internos, não pegados para
o teatrinho por mal-comportados incorrigíveis! Tãozão e o
Mão-na-Lata, centerfór do nosso time. E um, cá, teve a idéia.
Precisávamos de imaginar, depressa, alguma outra estória, mais
inventada, que íamos falsamente contar, embaindo os demais no
engano. E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.
Sem
razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem
na estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia ou
peripécia, logo e mal encartadas em suas fitas de cinema; pois,
enquanto recreios houvesse, continuava ele descrevivendo-as, com
aquela valentia e o ágil não-se-cansar, espantantes. E o Tãozão e
Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam, fingindo decerto não
dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós tramada,
prosseguia, aumentava, nunca terminava, com
singulares-em-extraordinários episódios, que um ou outro vinha e
propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a máscara: “fuça
de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. Ouviam,
gostavam, exigiam mais. Até o pretinho Alfeu, filho da cozinheira, e
aleijado, voltava se arrastando com rapidez para a escutar, enquanto
o Surubim não o via e mandava embora. Já, entre nós, era a
“nossa estória”, que, às vezes, chegávamos a preferir à
outra, a “estória de verdade”, do drama. O qual, porém, por meu
orgulho de “ponto”, pusera eu afinco em logo reter, tintim de cor
por tintim e salteado. Descontentava-me, só, na noite do dia, dever
ficar encoberto do público, debaixo daquela caixa ou cumbuca, que
por ora ainda não se tinha, nos ensaios.
— “Representar
é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira
dignidade” — exortava-nos o Dr. Perdigão, sobre suas sérias
barbas. Ataualpa — o “Peitudo” — e Darcy — o “Pintado”
— determinavam se acabasse, em hora, com essa tolice de apelidos.
Umas donas estariam costurando as roupas que íamos revestir, os
fraques do Doutor Famoso e do Amigo, a batina do Filho
Padre, a farda do Filho Capitão, só trajes. Alvitrou-se
senha de nos tratarmos só pelos nomes em drama: Mesquita o “Filho
Poeta”, Rutz o “Amigo”, Gil o “Homem que sabia o segredo”,
Nuno o “Delegado”. O Dr. Perdigão dirimia os embaraços: em vez
de o “Criado”, o Niboca chamar-se-ia melhor o “Fâmulo”,
Astramiro o “Redimido”, e não o “Filho Criminoso”; eu, o
“Mestre do Ponto”. — “Lembrem-se: circunspecção e
majestade...” proferia o Dr. avante — ... e: “Longa é a
arte e breve a vida... — um preconício dos gregos!”
Inquietávamo-nos, não fossem destituir-nos daquele sonho. Íamos
proceder muito bem, até o dia da festa, não fumar escondido, não
conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas
aulas. Os que não éramos “Filhos de Maria”, impetrávamos fazer
parte. Joaquincas comungava a diário, via-se mesmo só ideal, já
padre e santo. Todas as tardes, a partir do recreio de depois do
jantar, subia-se para o ensaio, demorado, livrando-nos dos estudos da
noite sob o duplo olhar do Surubim; essa vantagem, também, os outros
nos invejavam. — “Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza.
Ad astra per aspera! Sempre dúcteis ao meu ensinamento...” —
o Dr. Perdigão observando. Suspirávamos pelo perfeito, o estricto
jogo de cena a atormentar-nos. Menos ao Zé Boné, decerto. Esse,
entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de
emendar palavra e meia palavra. E já o dia vindo próximo, nem mais
duas semanas. Por que não o trocar, ao estafermo? Não o Dr.
Perdigão: — “Senhores discípulos meus, para persistir no
prepará-los, a perseverança não me desfalece!” Zé Boné, do
tom, tirava algum entender, empinava-se inconfuso e contente. Ah, seu
“ensino”, à rija, à vera, seria para ele nos pagar. Não por
enquanto. Só se ansiava. Sempre juntos, no notável, relegados os
planos para as férias, e mesmo só por alto lembrado o afã do
futebol.
Se
não os tempos e contratempos. Troçavam de nós, os outros? Citando,
com ares, o que não entendíamos, nem. Diziam já saber a verdadeira
estória do drama, e que não passávamos de impostores. De fato,
circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de
todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado, de muita
inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da verdade.
O cume de cachorro! Nele, passada a festa, jurou-se também uma sova.
Por ora, porém, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que
nos deixava humilhados. Repetíamos, então, sem cessar, a nossa
estória, com forte cunho de sinceridade. Sempre ficavam os
partidários de uma e de outra, não raro bandeando campo, vez por
vez, por dia. Tãozão e Mão-na-Lata chefiavam o grupo dos Gamboas?
— “Entreguemo-nos
à suma justiça do Onipotente...” — proferia o Joaquincas. —
“Uma tana! Sento o braço!” — o Darcy rugia, ou o
Ataualpa. Mas: — “... O réprobo, o ímprobo, que me malsina
os dias...” — já, vai vago, desembestando. O Surubim dizia
que o nosso teatro roubava ao ensino, e que não era verdade que, nas
provas, iríamos ganhar boas notas de qualquer maneira. Possível?
Mão-na-Lata estava combinando outro time, porque a gente mal
treinava; misérias! Para ver se Zé Boné enfiava juízo, valia não
o deixar dar mais seu cinema? E, pronto, certas cenas do drama,
legítimas, estavam sendo divulgadas. Haveria entre nós um traidor?
Não. Descobriu-se: o Alfeu. O gebo, pernas tresentortadas e moles,
quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro por
corredores e escadas, feito uma cobra; e que vinha escutar os
ensaios, detrás das portas! Só que, no Alfeu, mesmo pós-festa, não
se podia meter o braço: ele furtava, para a gente, pão, doces,
chocolate, coisas da cozinha dos padres. Tínhamos de alugar-lhe o
silêncio? Tudo, felizmente, por três dias. Já o Dr. Perdigão,
desistido de introduzir no Zé Boné sua parte, intimara-o a
representar de mudo, apenas, proibido de abrir a boca em palco.
Doía-me um dente, podia inchar a cara; ou não, não doía? Tudo por
dois dias, só. Tãozão e Mão-na-Lata, o que ameaçavam? Tudo por
dia e meio, pela véspera. Pelo que, fremia-se e ardia-se. Sendo,
nessa véspera, o nosso ensaio geral.
— “Sus
e eia! Abroquelemo-nos...” O Dr. Perdigão se passeava
levemente. Saía-nos o ensaio geral em brilho e pompa, todos na ponta
da língua seus papéis — para meu desgosto. Não iam precisar de
ponto? Nisso, porém, sobreveio-nos o trom de Júpiter. O padre
Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via
a quem. Sem realces, disse: que nós estávamos certos, mas acertados
demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade
pronta... Despejou conosco, tontos de consternados. E já na noite
tão tarde. Do nosso Dr. Perdigão, empalidecendo até a barba: —
“Senhores meus alunos... Ad augusta per angusta...” —
ele se gemeu. — “Durmamos...”
E
quem disse que, no outro dia, seguinte, domingo — o dia! — íamos
tornar a ensaiar, ensaiar, ensaiar, senhor, mas — com os rebuliços,
as horas curtas, poucas: a missa demorada, a gente ganhando
pão-de-mel e biscoitos no café, tendo-se de ajudar a arrumar o
teatro, a caixa-do-ponto verde, repintada fresca, as muitas moças e
senhoras aparecidas, chegadas as roupas nossas teatrais, novinhas nos
embrulhos, enquanto se dizia que Tãozão e o Mão-na-Lata estavam
reunindo uns, que iam amassar a gente, armar baderna de briga, e
chegando visitas, pais, parentes, de fora, para assistir, corriam o
Colégio, se dizendo agora que o pessoal de Tãozão e Mão-na-Lata,
os Gamboas, iam dar na gente a tremenda vaia! — e o Dr. Perdigão
de repente doente, de fígado, cólicas, a gente com medo que a festa
pudesse não haver, e traziam também os programas prontos do nosso
teatro, até o Alfeu vestido de roupa nova, marinheiro, a mãe dele
fazia-o hoje andar com as muletas, e o Dr. Perdigão já sarado,
levantado, suas sumas pretas barbas, de tarde, o jantar cedo, garrafa
de soda-limonada, e galinha, pastéis, sobremesa de dois doces, nem
pude, pois, que era que vinha vindo, direto para dizer, o Surubim,
satisfeito, bem eu tinha temido caiporismos de última hora, passado
o dia inteiro assim, de orelha com a pulga atrás?
Silêncio.
O Surubim vinha para o Ataualpa. Estava na portaria o tio do
Ataualpa — o pai do Ataualpa era deputado, estava à morte, no Rio
de Janeiro. Ataualpa tinha de viajar, de trem, daqui a duas horas. E
o teatro, o espetáculo? Ataualpa já ia, com o Surubim, mudar
de roupa, arrumar a mala. Mas, o teatro era para impossível de não
haver, era em benefício. E... Só quem podia ser, em vez do
Ataualpa, quem sabia decorados todos os papéis, o Doutor Famoso:
eu! Ah, e o “ponto”? Dúvida não dúvida: o ponto seria, ótimo,
o Dr. Perdigão, sendo. Se disse, se fez.
O
contentamento — o medo. O fraque? O povo. O — ali, quem meio
escondido, me cutucando — o Alfeu! — “Quer um gole?...”
— do que ele tinha furtado: uma garrafa de genebra, da adega dos
padres — falava que era para dar mais alma de coragem. Eu não
quis. E os outros? Zé Boné? O Alfeu não sorria: sibilava. Eu não
queria saber dos outros, já estavam me vestindo, o fraque só ficava
um pouquinho largo, de nada. Os outros também não deviam de gostar
das senhoras e moças passando carmins na cara da gente, o que não
era de homem! — e repintando-nos os olhos. E a hora enorme. O
teatro, imensamente, a platéia: — “Ninguém mais cabe!”
— o povoréu de cabeças, estrondos de gente entrando e se
sentando, rumor, rumor, oh as luzes. O Dr. Perdigão, de fraque
também: — “Excélsior!” — meio desanimado. Não era o
monte de momento, sim, não. Era a hora na hora. Parecia que os
empurravam — para o de todo sem propósito. Me punham para a
frente. Só ouvi as luzes, risos, avistei demais. O silêncio.
Eu
estava ali, parado, em pé, de fraque, a beira-mundo do público,
defronte. E, que queriam de mim, que esperavam? Atrás, os
companheiros tocando-me; isto era hora para piparotes? E oh! —
súbito a súbitas, eu reconhecia na platéia, tão enchida, todos,
em cada um seu lugar: Tãozão, o Mão-na-Lata, o Gamboa, o Surubim,
o Alfeu, o padre Diretor... oh! — e tinha-me lembrado da terrível
coisa, meu-deus, então ninguém não tinha pensado nisso, antes?
Porque, aquele arranjo de todos nós no palco, vindos ao proscêncio,
eu adiante, era conforme o escrito no programa: o Ataualpa, primeiro,
devia recitar uns versos, que falavam na Virgem Padroeira e na
Pátria. Mas, esses versos, eu não sabia! Só o Ataualpa sabia-os, e
Ataualpa estava longe, agora, viajando com o tio, de trem, o pai dele
à morte... Eu, não. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio
e quente, não tendo dá-me-dá, gago de êêê, no sem-jeito, só
espanto.
O
minuto parou. Riam, diante de mim, aos milhares. De lá, da fila dos
padres, faziam-me gestos: de ordens e de perguntatividades, danados
sinais, explicavam-me o que eu já sabia que não sabia, não podia.
Sacudi que não, puxei para fora os bolsos, para demonstrar que não
tinha os versos. Instavam-me. — “Abaixem o pano!” —
escutei a voz do padre Prefeito. O Dr. Perdigão, em seu bobo buraco,
rapava goela. Tornei a não olhar; falei alto. Gritei, tremulei, tão
então: — “Viva a Virgem e viva a Pátria!” — gritei.
Ressoaram
enormes aplausos. — “Abaixem o pano!” — era ainda o
padre Prefeito, no bastidor. Porque, agora, era mesmo a hora, para
ficarmos no palco só o Doutor Famoso e seus quatro Filhos,
daí o pano tornava a subir, para abrir a primeira cena do drama. —
“... o pano!” Mas o pano não desceu, estava decerto
enguiçado; não desceu, nunca. Com confusão. Os que tinham de sair
de cena, não saíam. Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra,
em fila, feito soldados, apalermados. E, aí, veio a vaia.
Estrondou...
A
vaia, que ninguém imaginava. O que era um mar — patuléia, todos
em mios, zurros, urros, assovios: pateada. A gente, nada. Ali,
formados, soldados mesmos, mudando de cor, de amargor. — “Atenção!
Submetam-se!” — mas nem os padres àquilo não podiam pôr
cobro? Por um pouco, o Dr. Perdigão ia se surgir de lá, da caixa,
mas não venceu, e se botou abaixo. A gente, firmes, sem mover o
passo, enquanto a vaia se surriava. A vaia parou. A vaia recomeçou.
Aguentávamos. — “Zé Boné! Zé Boné!” — aqueles
gritavam também, depois de durante, dessa vaia, ou em intervalos. —
“Zé Boné!...” Foi a conta.
Zé
Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de
faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a
representar!
A
vaia parou, total.
Zé
Boné representava — de rijo e bem, certo, a fio, atilado para toda
a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente
não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele
recitava com muita existência. De repente, se viu: em parte, o que
ele representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas
palmas.
O
pasmatório. Num instante, quente, tomei vergonha; acho que os outros
também. Isso não podia, assim! Contracenamos. Começávamos, todos,
de uma vez, a representar a nossa inventada estória. Zé Boné
também. A coisa que aconteceu no meio da hora. Foi no ímpeto da
glória — foi — sem combinação. Ressoaram outras muitas palmas.
A
princípio, um disparate — as desatinadas pataratas, nem que jogo
de adivinhas. Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas réplicas
e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. O
mais eram ligeirias — e solertes seriedades. Palavras de outro ar.
Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito — tudo tão bem
— sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha
e tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido,
estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém
escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via
os do público assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu
via — que a gente era outros — cada um de nós, transformado. O
Dr. Perdigão devia de estar soterrado, desmaiado em sua correta
caixa-do-ponto.
Gritavam
bis o Surubim e o Alfeu. Até o padre Diretor se riu, como ri
Papai Noel. Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes
figuras, mas personagens personificantes. Assim perpassando, com a de
nunca naturalidade, entrante própria, a valente vida, estrepuxada.
Zé Boné, sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé
Boné! — freme a representação. O sucesso, que vindo não se sabe
donde e como; alguém me disse, que estava lá; jurou como foi.
Mas
— de repente — eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro
estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem
fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então?
Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento.
Não podia, não me conseguia — para fora do corrido, contínuo, do
incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de
nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo,
sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais,
bonito — o milmaravilhoso — a gente voava, num amor, nas
palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E
como terminar?
Então,
querendo e não querendo, e não podendo, senti: que — só de um
jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair — do
fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para a frente,
falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes.
Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.
E,
me parece, o mundo se acabou.
Ao
menos, o daquela noite. Depois, no outro dia, eu são, e glorioso, no
recreio, então o Gamboa veio, falou assim: — “Eh, eh, hem?
Viu como era que a minha estória também era a de verdade?”
Pulou-se, ferramos fera briga.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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